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Entendendo Bolsonaro

Bolsonarismo criou tempestade perfeita para o Brasil em 2020

Entendendo Bolsonaro

31/12/2020 09h32

Da 'gripezinha' à militância antivacina, o negacionismo de Jair Bolsonaro tem acompanhado, tragicamente, a linha do tempo da covid-19 no Brasil, contribuindo, decisivamente, para agravar a nossa crise (Crédito: Adriano Machado/Reuters).

[RESUMO] Num olhar retrospectivo para a crise sanitária, social e econômica que atingiu o Brasil em 2020, o artigo destaca os componentes-chave do bolsonarismo que contribuíram para fazer do país o mais atingido pela covid-19 em todo o Hemisfério Sul.

* Cesar Calejon

No Brasil, a crise causada pela covid-19 combinou-se com o bolsonarismo e a instabilidade política preexistente e ganhou novos contornos, o que gerou múltiplos planos de conflito institucional – (1) dentro do próprio governo federal; (2) entre os níveis federativos (com governadores e prefeitos estaduais); (3) com os demais poderes da República (Judiciário e Legislativo) e (4) junto à sociedade internacional – e produziu as causas centrais do agravamento do que se tornou uma sindemia no país em 2020.

Dentre essas causas, destacam-se: (a) o simbolismo presidencial, que ao longo de toda a crise sanitária negou a ciência e as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) junto à população brasileira; (b) a ausência do federalismo cooperativo, como resultado da falta de liderança, coordenação e articulação da administração Bolsonaro nos âmbitos federal, estadual e municipal para a formulação de políticas públicas eficazes, (c) a gestão do Ministério da Saúde, que teve as suas lideranças alteradas diversas vezes ao longo da pandemia e (d) a subdiagnosticação/subnotificação de casos, devido aos baixíssimos níveis de testes que foram realizados na população brasileira, à morosidade do governo federal em adquirir os reagentes necessários para viabilizar o processo em ampla escala e à politização irrestrita que o bolsonarismo imprimiu ao tema.

O resultado foi a formação da tempestade perfeita para o Brasil. Um cenário de incertezas, insegurança pública, descrédito internacional, ausência de harmonia institucional e recessão econômica poucas vezes – ou talvez jamais – verificado na história da República.

No último mês de 2020, após todas as ações e omissões da administração Bolsonaro, o Brasil finalmente encontra-se no vórtice dessa tempestade: mais de 190 mil mortes em decorrência da pandemia, escândalos de corrupção e desvios do governo, um colapso econômico, com desemprego recorde de 14,4% (na quarta semana de setembro de 2020), atingindo mais de quatorze milhões de pessoas e especialmente a parcela mais jovem da população, taxa de conversão do dólar estadunidense em R$ 5,61 , o litro da gasolina variando entre R$ 4,385 (região Sul) e R$ 4,748 (região Norte), o botijão de gás de cozinha de treze quilos em R$ 105, o pacote de cinco quilos de arroz, normalmente vendido por aproximadamente R$ 15, ultrapassando a marca de R$ 40, o aumento da desigualdade social de forma expressiva na comparação com os anos anteriores – processo que se acentuou em virtude de medidas econômicas neoliberais adotadas antes da pandemia sequer chegar ao Brasil –, a pobreza assombrando quase 52 milhões (menos de R$ 5,50 por dia) e a pobreza extrema afetando 13,7 milhões de brasileiros.

Múltiplos planos de uma crise institucional

O governo "minimiza a pandemia", alegou Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, em diversas ocasiões públicas entre abril e julho de 2020, meses que selaram o auge da crise sanitária no país. Neste cenário, figuras emblemáticas do bolsonarismo ameaçaram publicamente o fechamento de órgãos do Poder Judiciário e atacaram alguns dos principais representantes do Poder Legislativo, bem como atores centrais do tabuleiro geopolítico global. Além disso, o presidente, o vice-presidente, ministros e membros do próprio governo brigaram internamente ante ao escrutínio público com muita frequência.

Essa falta de harmonia institucional, que foi inflamada principalmente pelas falas de Jair Bolsonaro, impediu a elaboração de ações coesas entre os níveis federativos, os poderes da República e o restante do mundo, o que custou caro à população brasileira considerando a perda de vidas e o número de pessoas infectadas.

Simbolismo presidencial

Teoricamente, o simbolismo presidencial é o conjunto de processos de comunicação exercido pelo presidente da República e membros do seu gabinete para infundir o debate público e espiritar a vida social, política e econômica da nação.

Na prática, essa força presidencial estimulou a multiplicação desenfreada de milícias de extrema direita entre os anos de 2019 e 2020, por exemplo. Num período de dois anos, entre maio de 2018 e de 2020, a criação de novas páginas de internet com conteúdo relacionado ao nazismo cresceu mais de 700% no Brasil, segundo a ONG Safenet.

Ou seja, o simbolismo presidencial é uma das principais forças de qualquer gestão federal nos estados modernos, porque as ideias adotadas e avançadas pelo presidente da República e quadros da sua composição política ganham ressonância na cultura popular do país e se consolidam em ações práticas que orientam o rumo da nação, principalmente em momentos de crise. Jair Bolsonaro usou o simbolismo presidencial para orientar os brasileiros a invadirem hospitais (para verificar se os leitos reservados à doença estavam ocupados) e correu atrás de uma ema com uma caixa de cloroquina nas mãos. O simbolismo presidencial é a principal força para refletir sobre o atual trágico cenário brasileiro.

A ausência do federalismo cooperativo

No dia 20 de março de 2020, Jair Bolsonaro promulgou a Medida Provisória n° 926 e alterou o texto da lei 13.979, estabelecendo que as medidas de resposta à crise sanitária seriam geridas no nível subnacional, ou seja, pelos próprios estados e sem a coordenação federal, o que enfraqueceu o já combalido federalismo cooperativo, as portarias anteriores emitidas pelo próprio Ministério da Saúde e a lógica de funcionamento do Sistema Único de Saúde, que pressupunha a coordenação e a articulação do nível federal.

De fato, o federalismo cooperativo – que foi introduzido pela Constituição Federal de 1988 – propõe uma distribuição descentralizada dos poderes de forma equilibrada, considerando os diferentes níveis de governo no Brasil. Contudo, este parâmetro constitucional visa a estimular o fortalecimento das relações de cooperação e coordenação entre os entes federativos e o governo federal. Nesse sentido, o parágrafo único do artigo 23 discorre sobre as competências comuns de caráter cooperativo, com o objetivo de equacionar o equilíbrio do desenvolvimento e o bem-estar de toda a nação e que devem ser reguladas por leis complementares.

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A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos seus entes federativos , que juntos devem atuar para o desenvolvimento nacional , com competências comuns relevantes: políticas de saúde, acesso à educação, proteção do meio ambiente e do patrimônio público e saneamento básico, por exemplo. Portanto, o caráter cooperativo é fundamental para reger as relações federativas no Brasil. Esse é o pressuposto do federalismo cooperativo brasileiro.

Apesar disso, durante a pior pandemia do último século, a gestão Bolsonaro e diversas autoridades da vida política brasileira exaltaram este parâmetro da Carta Magna para avançar que o estabelecimento de um nível de autonomia político-legislativa entre as entidades federativas e o governo federal era o caminho mais adequado para lidar com a complexidade da crise sanitária, algo que contrariou o que fizeram basicamente todos os países que foram capazes de lidar com a crise de forma eficaz e criou desavenças de todas as ordens entre algumas das principais forças políticas do país.

A gestão do Ministério da Saúde

Imagine que, para efeito de compreensão, o papel do Ministério da Saúde do Brasil durante grandes crises sanitárias possa ser comparado às atribuições de um maestro frente à orquestra. Cabe ao regente harmonizar os atores musicais para que cada membro da formação possa prover os seus recursos sonoros de forma coesa e no tempo mais adequado. No Brasil, em 2020, a sinfonia desafinou devido à inépcia da administração Bolsonaro.

Um relatório apresentado em julho de 2020 pelo Tribunal de Contas da União (TCU) afirma que o Ministério da Saúde utilizou somente 29% do dinheiro que estava ao seu dispor para as ações de enfrentamento à pandemia.
A análise estudou os gastos da instituição pública desde março e, de acordo com o documento, o Ministério da Saúde recebeu, até o último dia de junho de 2020, R$ 38,9 bilhões para as ações específicas contra o coronavírus, que deveriam ser empregadas da seguinte maneira, segundo o TCU: R$ 16 bilhões para os fundos municipais de saúde; R$ 9,9 bilhões para os fundos estaduais de saúde; R$ 11 bilhões em ações diretas do próprio Ministério da Saúde, como compra de respiradores, testes e equipamentos de proteção, e R$ 542 milhões em transferências para o exterior para a aquisição de insumos importados.

Segundo os auditores do TCU, dos quase R$ 39 bilhões, o Ministério da Saúde utilizou somente R$ 11,4 bilhões até o fim de junho de 2020: 29% de tudo o que recebeu para combater o coronavírus durante o momento mais agudo da crise sanitária no país.

Assim, o Tribunal de Contas da União, cujo papel é exercer o controle externo do governo federal e auxiliar o Congresso Nacional na missão de acompanhar a execução orçamentária e financeira do país, apontou a omissão e a falta de coordenação e de critérios do Ministério da Saúde sob a gestão Bolsonaro para a distribuição dos recursos por estados.

Outro fato alarmante e que demonstra bem os aspectos ressaltados pelo TCU é a subutilização dos exames RT-PCR durante o auge da pandemia no Brasil. Ao todo, o Ministério da Saúde investiu R$ 764,5 milhões em testes e deixou 6,86 milhões de unidades, que custaram R$ 290 milhões desse recurso, simplesmente estocados em um armazém do governo federal na cidade de Guarulhos, em São Paulo, quando poderiam ter sido distribuídos para a rede pública. Com três trocas de lideranças durante os primeiros seis meses da pandemia no Brasil, o Ministério da Saúde sob o bolsonarismo foi inutilizado, basicamente.

Subdiagnosticação e subnotificação de casos

Existe uma diferença elementar que precisa ser bem compreendida para abordarmos o tema deste capítulo: subdiagnosticação é o termo usado para expressar a baixa quantidade de casos que foram identificados no Brasil com relação à totalidade das infecções e mortes geradas pela covid-19 em território nacional, o que se deu por conta da falta de um plano sólido de testagem em massa da população.

Subnotificação é a palavra utilizada para descrever a baixa taxa e a falta de qualidade da comunicação que foi efetivada pelas autoridades governamentais junto à população considerando os casos que foram diagnosticados, efetivamente, o que ocorreu por conta da inépcia do bolsonarismo frente à gestão da área de saúde durante a crise.
Para ambos os casos, devido aos baixíssimos níveis de testes que foram realizados na população brasileira, à morosidade da administração Bolsonaro em adquirir os reagentes necessários para viabilizar esse processo em ampla escala e à politização da divulgação dos dados imprimida ao tema, toda a classe científica das ciências médicas e sociais brasileiras foi obrigada a enfrentar a maior pandemia do século até o presente momento sem dados acurados para pautar as suas decisões e organizar as melhores estratégias. No escuro, basicamente.

Diferentes estudos foram conduzidos por pesquisadores brasileiros para dimensionar a real extensão da subdiagnosticação e da subnotificação de casos de covid-19 no Brasil. Apesar de ser impossível cravar com precisão absoluta, essas investigações indicam que o número real de casos no país (mortes e infecções) pode ser entre sete e onze vezes mais alto do que o número oficial de casos diagnosticados e notificados.

Evidentemente, essa altíssima quantidade de vítimas fatais verificada pelo Brasil durante a pandemia reflete fatores que transcendem a administração bolsonarista. A ausência de saneamento básico para mais de cem milhões de brasileiros, o baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a concentração de capital e de renda exacerbada que vigora no Brasil são, inquestionavelmente, aspectos históricos e socioculturais que foram preponderantes para que o país se tornasse a nação mais atingida pela covid-19 em todo o Hemisfério Sul. Contudo, a atuação do governo de Jair Bolsonaro é o outro ponto nevrálgico para explicar o agravamento da crise sanitária por aqui.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).


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