Fim trágico da Era Trump expõe novo lugar da direita no imaginário popular
* Rafael Burgos
"Que ano, meus amigos, em que a direita é revolucionária e a esquerda é reacionária". Como registrado por Fábio Zanini, na Folha, foi assim que reagiu Italo Lorenzon, famoso youtuber bolsonarista, às cenas da invasão ao Congresso americano perpetrada por apoiadores de Donald Trump na última quarta (6).
A frase é sintomática de uma nova era, muito bem compreendida pela extrema direita global e bem menos pela esquerda, que, apaixonada pela própria imagem, tem ficado para trás na busca por mobilizar afetos e conquistar uma maioria de eleitores em países como o Brasil, ou mesmo nos Estados Unidos, já que, não fosse a pandemia, o que hoje se insiste em compreender como um repúdio aos quatro anos de Trump estaria dando lugar a análises de teor oposto, diante do segundo mandato que se desenhava antes da peste.
Se os últimos eventos têm algo a nos ensinar é de que, na disputa política, mais importante do que debater a verdade objetiva dos fatos é reconhecer as percepções que predominam na sociedade, assim como os imaginários compartilhados e, por sua vez, assimilados em identidades.
Quero dizer, com isso, que não seremos capazes de compreender o que move o trumpismo — ou o bolsonarismo — por meio de um fact-checking da fala de Lorenzon. Realidade à parte, o fato é que a extrema direita incorpora, hoje, um ethos de revolução, enquanto a esquerda patina para compreender que, na clivagem político-ideológica que vem se desenhando, ela tornou-se o campo conservador do debate.
Desde que passamos a nos situar politicamente por meio desta divisão esquerda-direita — há dois séculos e meio — , grosso modo, as disputas de poder nas sociedades ocidentais estiveram divididas entre a promessa de transformações (sociais, econômicas, culturais) no corpo social e o medo de mudanças bruscas, aliado ao apego por aquilo que, concretamente, é considerado um patrimônio conquistado. Na crise do século XXI, ou na "Era do Imprevisto", como definida pelo sociólogo Sérgio Abranches, a extrema direita inova ao subverter estes referenciais de ordem e transformação, respectivamente atribuídos à direita e à esquerda.
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Se, no fim da década de 60, ser "contra o establishment" significava incorporar os valores da contracultura na defesa de liberdades individuais e da justiça social, hoje, mais de 50 anos depois, o sistema é visto como lugar comum às representações políticas tradicionais, um espaço há muito assimilado pela esquerda pretensamente revolucionária de ontem.
Em 2021 — e certamente não precisaríamos da pandemia para dizer isso — , o futuro soa sempre como um lugar distante e temido. Como disse o sociólogo Zygmunt Bauman, se antes os sonhos coletivos eram formados "à medida da escassez", agora, as nossas utopias — ou retrotopias — são construídas "à medida da superabundância". Em outras palavras, quando sobrava segurança, anseávamos por liberdade; hoje, quando parece sobrar liberdade, voltamos a clamar por segurança. A revolução de nossa época é interromper o curso da História.
Trazendo este debate para o Brasil, otimistas são os que acusam Jair Bolsonaro de pretender desfazer a Constituição de 88 e retornar à época da ditadura civil-militar do último século. O imaginário que permeia o bolsonarismo, e o movimento de extrema direita global do qual ele faz parte, não está em desarranjo com as conquistas das últimas décadas; ele está em desarranjo com os rumos da História desde, pelo menos, o Iluminismo. Na narrativa bolso-olavista, o retrovisor não ilumina décadas de infortúnio, mas séculos; não se trata de pôr um fim às amarras da Nova República, mas de eliminar a separação entre Igreja e Estado.
Essas são algumas das balizas do novo imaginário popular sustentado pela direita no atual momento histórico. Ainda mais melancólico, contudo, é concluir que este é o único imaginário em disputa na arena política institucional. De nada adianta, portanto, apontar as mentiras e conspirações sobre as quais estão construídas as narrativas do trumpismo e do bolsonarismo, sem, antes disso, batalhar pelos espaços simbólicos e de representação de mundo que eles carregam.
Se "é este o século", parafraseando o jornalista Diego Viana, aproxima-se o derradeiro momento, para a esquerda, de superar a própria imagem. Se, por natureza, ela será incapaz de se reconhecer como o novo campo conservador do debate público, a sua sobrevivência política no atual arranjo dependerá da capacidade de resistir à inversão de papéis pretendida pela extrema direita, forçando uma disputa entre dois imaginários anti-establishment, para usar a palavra da moda.
O trágico fim da Era Trump, simbolizado na invasão ao Congresso americano, é sintomático deste novo papel assumido pela direita com altivez — ainda que sem qualquer escrúpulo. Temos ali o genuíno palco da insurreição, a fonte de esperança por destruição num mundo sem utopias.
Vencer disputas circunstanciais no varejo não significará, sob nenhuma medida, desmobilizar esta força. O dilema político ainda não resolvido neste começo de década não é sobre projetos, ele é existencial. Que a imagem do Capitólio sirva de lição ao mostrar a dimensão deste espantalho conservador que se continua a pintar. O jogo mudou e, agora, como bem disse Lorenzon, "a direita é punk".
* Rafael Burgos é jornalista e editor do blog Entendendo Bolsonaro. Autor do TCC "Donald Trump: a redenção pelo regresso"
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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