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Entendendo Bolsonaro

A história não julgará Bolsonaro, esse é um dever do nosso tempo

Entendendo Bolsonaro

19/01/2021 00h46

Houvesse "tribunais da história", exaltar a memória de um torturador levaria alguém à cadeia, e não à Presidência da República. (Crédito: Isac Nóbrega/PR)

[RESUMO] O apelo ao implacável julgamento da história, além de não fazer sentido sob qualquer perspectiva nos estudos históricos, também denota problemas sérios e incontornáveis sobre como nos posicionamos diante de figuras e realidades que nos oprimem. Julgar Bolsonaro é um dever para a nossa geração, e não para falsos tribunais do futuro.

* Igor Tadeu Camilo Rocha

No dia 24 de maio do ano passado, em sua primeira aparição pública como ex-ministro da Saúde, Nelson Teich foi perguntado sobre os motivos de sua saída do cargo. "Quem vai julgar o presidente é o futuro, não vai ser eu", disse, introduzindo a sua explicação de que a origem da demissão estaria na falta de convergência entre ele e o presidente Jair Bolsonaro.

Curiosamente, no mês anterior e na ocasião da posse de Teich na pasta da Saúde, foi a vez de Bolsonaro evocar o julgamento da história ao se referir às divergências que teve com o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, à época recém-saído do ministério: "Lá na frente a história vai nos julgar e eu espero que estejamos certo (sic)", disse o presidente antes de um discreto agradecimento ao ex-ministro.

Em comum, as duas falas citadas ecoam um imaginário um tanto repetido no debate público, que sugere a existência de um "tribunal da história", implacável com os malfeitores e do qual a verdadeira justiça haveria de brotar. No caso, caberá à história, segue o raciocínio, dizer se Bolsonaro ou seus ex-ministros estão certos em relação ao que pensaram e planejaram diante da pandemia.

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Neste começo de 2021, temos assistido atônitos e revoltados o caos vivido pela capital do Amazonas, que atravessa novamente um colapso de seu sistema de saúde provocado pela covid-19. Junto às terríveis notícias, vimos o atual ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já ciente da iminente escassez de oxigênio em Manaus, montar uma força tarefa de médicos defensores de um inexistente tratamento precoce para a doença causada pelo novo coronavírus, promovendo esse engodo nas Unidades Básicas de Saúde da cidade.

Na mesma semana, Bolsonaro voltou a mentir em rede nacional, dessa vez no programa "Brasil Urgente", da Band, em que, diante do apresentador José Luiz Datena, afirmou que a inação do governo federal se deve a um impedimento feito pelo Supremo Tribunal Federal de ele agir junto aos estados e municípios, uma falácia já desmentida incontáveis vezes desde o primeiro semestre do ano passado.

Na mesma entrevista, o presidente soltou a pérola de que o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação (o "diferenciado", nas suas palavras) Marcos Pontes estaria desenvolvendo uma vacina brasileira, dizendo em seguida não saber em qual laboratório isso estaria sendo feito. "Não faço ideia, pergunta pro Marcos Pontes", respondeu Bolsonaro a Datena quando perguntado sobre a informação que deu.

Esses e outros descalabros – como a embaraçosa negociação do Brasil com o governo da Índia a respeito da compra de 2 milhões de doses da vacina AstraZeneca – normalizaram no debate público a ideia de que o destino de Bolsonaro e apoiadores – declarados ou tácitos – seja a lata de lixo da história, como se houvesse em algum lugar do tempo-espaço um implacável julgamento, a ser feito pela História, com "H" maiúsculo, e no qual a verdade, seja ela qual for e doa a quem doer, inevitavelmente aparecerá e colocará cada qual no seu lugar de merecimento. Essa lata de lixo estaria, nesse sentido, reservada a todos os criminosos, negacionistas e inimigos da liberdade e do progresso humano em geral. Mas será que isso existe? Tentarei aqui esboçar uma breve reflexão sobre isso.

Antecipando a resposta, digo que, apesar do uso retórico e de uma função muitas vezes bem definida nos embates políticos, esse apelo ao implacável julgamento da história, além de não fazer sentido sob qualquer perspectiva nos estudos históricos, também denota problemas sérios e incontornáveis sobre como nos posicionamos diante de figuras e realidades que nos oprimem.

Esse julgamento da história, que pode colocar figuras como Bolsonaro numa lata de lixo da memória histórica de um país, remete a uma concepção específica da história já há muito colocada em posição, no mínimo, marginal pelos historiadores, ao sugerir que exista uma história que independa das ações humanas e se desenvolva de maneira autônoma. Pois cabe à humanidade, sob essa perspectiva, quando muito, trazer essa história à luz, revelando-a. Esse entendimento da história caminha próximo de outro que a entende como um caminho inexorável ao progresso, um rumo certo sempre a um futuro melhor que o agora, ainda que haja vez ou outra algum tipo de desvio.

Unindo esses dois entendimentos da história, concepções já abandonadas pela historiografia, mas que possuem algum enraizamento no senso comum e que aparecem nos usos políticos das narrativas sobre o passado, chegamos à ideia de que a história julgará, por exemplo, figuras como Bolsonaro e apoiadores pelos seus atos irresponsáveis na pandemia que matou mais de 200 mil brasileiros. Fica a ideia de que em algum ponto do futuro, quando as coisas – incluindo nós mesmos, enquanto brasileiros e humanidade – forem melhores, a justiça será feita.

Contudo, essa concepção de como as coisas acontecem na história só se sustenta de um ponto de vista metafísico. O problema de entender a história dessa maneira é que, segundo esse raciocínio, há pouco (ou nenhum) espaço para a ação humana nos processos históricos. Ao longo dos dois últimos séculos, a história tem sido pensada, de modos diversos, como produto de ações humanas, conduzidas por pessoas que com seus desejos, medos, organizações, tensões e todas as demais formas de lidar com o mundo desencadeiam processos que movimentam a história.

Ela, a história, é feita e contada por pessoas a partir de diversos embates e tensionamentos, que envolvem suas relações com o passado e presente, além de suas expectativas com o futuro; que também envolvem as relações sociais, lugares a partir dos quais narramos o passado e pensamos o futuro, construindo experiências e identidades; envolvem ainda conflitos e as diversas disputas de narrativas e intersubjetividades que são próprias da construção permanente do passado.

Tudo isso pode parecer muito abstrato, mas um breve olhar sobre os usos que Bolsonaro e apoiadores fazem da história dá mais concretude a esse raciocínio. A ditadura militar brasileira (1964-1985) é exaltada por ele em toda a sua vida pública, além de não raras vezes o atual presidente render homenagens ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Pela concepção metafísica da história que citei acima, esse período e esse tipo de figura já deveriam ter sido julgados e colocados no pior lugar possível na memória de qualquer sociedade minimamente democrática, mas não o foram. Pelo contrário, recorrer a ambos rende capital político para que um presidente seja eleito.

E isso aconteceu não porque tal julgamento da história ainda está por vir ou porque ele falhou: a questão aqui é que as disputas reais entre diversos atores sociais e a construção de uma memória nacional sobre a ditadura – o que envolve o não julgamento dos torturadores, a lei de anistia, a transição pactuada pela democracia, entre outros fatores – estiveram e ainda estão repletas de espaços para que leituras positivas sobre ela possam ganhar espaço.

Como analisou Pierre Vidal-Naquet sobre os negadores do holocausto nazista, no livro Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo (1988), negar os horrores de um período como a ditadura e crimes de torturadores a serviço do Estado produz um assassinato da memória das suas vítimas, privando-as mesmo do direito ao luto e o trauma com o passado, além de construir identidades políticas e sociais em torno dessas negações, aglutinando pessoas e discursos que não possuem qualquer pudor em louvar a barbárie.

Poderia citar outros exemplos de passados mal resolvidos que são retomados, via de regra, reforçando problemas atuais – como é o caso do nosso passado escravista e a estrutura social brasileira – mas o ponto principal aqui é dizer que a história, por ela mesma, não se guiará por algum caminho natural para uma condenação quanto às mortes pela covid-19 a Bolsonaro, Pazuello, disseminadores de fake news ou emissoras de televisão e rádio que deram espaço para negacionistas.

Ao contrário, esse julgamento se inicia hoje, e será fruto de disputas feitas por pessoas como nós ocupando ativamente o debate público nos dias, meses e anos que se seguem à barbárie. A história é feita e escrita por pessoas de carne e osso, comuns, dentro de contextos sociais e vivenciando todos os seus percalços e dramas. E são essas pessoas, nos seus embates, disputas e tensões que definem quem será homenageado ou jogado na lata de lixo da memória coletiva.

Essa confiança no inevitável julgamento da história – na concepção metafísica da qual falei brevemente – diz muito a nosso respeito. Ela revela sobre nós tanto um otimismo de que tudo dará certo num futuro incerto, quanto uma sensação de mal estar e impotência em relação a tudo que vivenciamos, no nosso caso a partir de março de 2020, quando as distopias do governo Bolsonaro e a pandemia global se encontraram.

Essas sensações, de otimismo e impotência, são complementares: o otimismo de que um dia os defensores do "tratamento" preventivo para covid-19, por exemplo, serão julgados, seus crimes revelados e marcados nas memórias das próximas gerações gera um certo conforto, talvez necessário diante da exaustão gerada em nós a cada absurdo diário que vemos nos noticiários.

Porém, concluindo, é necessário estar ciente de que esse julgamento não acontecerá. Pelo menos não naturalmente, como um fato incontornável de um suposto progresso contínuo pelo qual passaríamos como humanidade. A história não julga ninguém sozinha. Aliás, ela sequer existe sozinha, independente do que fazemos.

A decisão sobre qual lugar ocupará na memória do país um indivíduo que minimizou e fez piadas sobre a morte de centenas de milhares de pessoas dependerá de como tentamos, da forma como podemos, expor e desconstruir cada mentira e negacionismo, denunciar e combater cada crime, cada irresponsabilidade e cada política pública pensada para qualquer outra finalidade que não o bem-estar de todos.

São e sempre serão essas disputas permanentes em torno de narrativas no debate público, e não um caminho inevitável e natural das coisas, que definirão quem vai ou não para essa tal da lata de lixo da história. Como toda sociedade democrática, o Brasil possui caminhos institucionais para lidar com autoridades criminosas, tornando-as responsáveis pelas atrocidades cometidas contra os cidadãos. Julgar Bolsonaro, esse é um dever para a nossa geração, e não para falsos tribunais do futuro.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.


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