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Entendendo Bolsonaro

Com instituições em sufoco, impeachment ainda é miragem

Entendendo Bolsonaro

21/01/2021 13h33

(Crédito: Alan Santos/PR)

Vinícius Rodrigues Vieira

A Presidência da República está, de fato, vaga. Jair Bolsonaro não mais exerce a função de presidente — se é que algum dia já a exerceu. Ele apenas ocupa o cargo de presidente. Sem função, todo cargo é, a princípio, decorativo. Já faz quase um ano que governadores e secretários de Saúde se articulam sem a mediação de Brasília para combater a pandemia, potencializada pelo coquetel de ignorância e incompetência de Bolsonaro.

Foi assim que ele, negligente, rejeitou ampliar o leque de vacinas à disposição dos brasileiros, hoje dependentes apenas da Coronavac, fruto da ação das instituições paulistas sob o comando do tucano João Doria. Portanto, Bolsonaro não é apenas decorativo: ele virou um estorvo sem o qual — pode-se concluir sem nenhum exagero — estaríamos muito melhores na guerra à covid-19. Assim, por que o impeachment ainda é miragem ainda que o assunto tenha voltado com força nas redes e altas rodas do poder?

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São três os fatores principais. Em primeiro lugar, muitos devem pensar como o senador oposicionista Cid Gomes (PDT-CE): não se pode vulgarizar o impedimento de um presidente. Tivemos um (controverso) impeachment há quase cinco anos. Se Bolsonaro for impedido, teremos três dos cinco presidentes eleitos no pós-ditatura impichados. Em tal cenário, apenas FHC e Lula teriam se safado desse destino inglório.

Isso desmoraliza qualquer sistema político — mas, sem dúvida, não compromete ainda mais as nossas instituições, que permanecem funcionais apenas na cabeça daqueles que mantêm o estômago forrado e a consciência intocada apesar das sucessivas crises que enfrentamos desde 2013. Talvez esteja na hora de voltarmos ao debate sobre o parlamentarismo ou, pelo menos, um sistema semipresidencial tal e qual o francês, em que o presidente detém autoridade sobre defesa e política externa, mas nomeia um primeiro-ministro.

Depois temos o fator pandemia. Muito embora Bolsonaro sabote o combate a ela, adicionar instabilidade política à crise sanitária pode ser explosivo. Isso ocorre porque, em meio a uma eventual tentativa de remover o presidente pelos meios legais, há o risco nada negligente de a falta de coordenação entre União, estados e municípios se agravar.

Tal risco está associado ao principal anteparo bolsonarista no poder. Não falamos da militância aguerrida que, para além de bots virtuais, é parte essencial da manutenção da aprovação do presidente em patamares relativamente elevados. JB não fica no poder sem o EB — isto é, o Exército Brasileiro, se bem que, na toada atual, a sigla pode vir a significar, no futuro, Exército Bolsonarista.

O EB se diz uma instituição de Estado, mas caracteriza como golpismo toda e qualquer crítica legítima a um presidente que contradiz seu juramento constitucional de "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil". Temos tudo, exceto bem-estar nesta pandemia.

Nesse cenário, Bolsonaro continua a não ter papas na língua: disse em meio ao nadir de sua incompetência e má-fé que são as Forças Armadas que garantem a democracia. Vivemos com a espada de Caxias no pescoço desde pelo menos aquele tweet do então comandante do Exército, General Eduardo Villas-Bôas, endereçado ao Supremo Tribunal Federal às vesperas do julgamento que selou o destino de Lula e, portanto, das eleições de 2018. Isso para não citar o temor de golpe às vésperas da eleição, conforme manifestado pelo então presidente do STF Dias Toffoli.

A última chantagem da turma do "braço forte, mão amiga" parece ter sido endereçada via Procuradoria-Geral, que, em nota, sugeriu que o estado de calamidade da pandemia seria a antessala de um Estado de Defesa — recurso que, de maneira justa, Villas-Bôas teria negado no contexto do impeachment de Dilma. Relatório do site jurídico JOTA sugere que o recurso do Estado de Defesa seria cogitado para debelar eventuais ameaças ao mandato de Bolsonaro, que, nessa narrativa auto-indulgente, não conseguiria governar por conta da oposição.

Deus, perdoe os oficiais que empunham a espada de Caxias, símbolo da graduação em Agulhas Negras! Talvez não saibam o que fazem. Aparentemente, em vez de aprenderem a defender a nação, foram treinados para combater inimigos internos, dentre eles um "tigre de papel" chamado comunismo, morto e enterrado desde o início dos anos 1990 (camaradas, a China é uma ditadura, mas é comunista só no nome!).

Quiçá nossos ex-cadetes tenham esquecido não ter havido desonra maior àquela espada senão o conjunto de ações terroristas, em meados dos anos 1980, que levaram à reforma o capitão Bolsonaro — o mal militar, na precisa definição do general Ernesto Geisel, presidente durante a ditadura militar entre 1974 e 1979.

Ironicamente, foi sob Geisel que a política externa brasileira deu seus lances mais ousados, durante a era do pragmatismo responsável. Domesticamente, a busca por alianças políticas no mundo em desenvolvimento se justificava no contexto do II Plano Nacional de Desenvolvimento, que nos legou, por exemplo, a indústria química tal como a temos hoje. Na Índia, por exemplo, esse ramo da economia foi a base de sua monstruosa competitividade no setor farmacêutico, inclusive na produção de vacinas. Sem isso, os indianos não produziriam hoje uma das versões do imunizante desenvolvido pela Astrazeneca em parceria com a Universidade de Oxford.

Geisel deve se remexer em seu túmulo. Além de ter deixado o Brasil de joelhos, implorando por vacinas e insumos para fabricá-las, Bolsonaro representa o triunfo da linha dura que aquele general-presidente debelou ao demitir, em 1977, o general Sylvio Frota. A mesma linha dura que, aliás, teria ganhado sobrevida caso Paulo Maluf tivesse ganhado de Tancredo Neves no colégio eleitoral, em 1985.

De fato, cabe aqui lembrar o que um dos próceres da ditadura, Antonio Carlos Magalhães, disse a respeito da eleição de Maluf: "Trair a revolução de 1964 e a memória de Castello Branco e Eduardo Gomes é apoiar Maluf para presidente. Trair os propósitos de seriedade e dignidade da vida pública é fazer o jogo de um corrupto, e os arquivos dos órgãos militares estão com as provas da corrupção e da improbidade."

Era o sujo falando do mal lavado, mas, dentro da narrativa do Exército, se o golpe de 1964 foi uma revolução (algo do qual discordo), a eleição de Bolsonaro foi a contrarrevolução dos linhas-duras aliados a pretensos liberais, comprometendo talvez irreversivelmente nossa já combalida estrutura econômica e científico-institucional. Foi sob o governo autoritário que o sistema de universidades federais se consolidou, enquanto a industrialização avançava. Não por coincidência esse nacional-desenvolvimentismo seria emulado, sem sucesso, à esquerda, por Lula e Dilma entre 2006 e 2013.

Muito embora o bolsonarismo tenha afinidades com o tradicionalismo pré-iluminista encarnado em outros movimentos de extrema-direita mundo afora, trata-se sobretudo de uma corrente política que, no contexto brasileiro, vê-se como herdeira do trabalho supostamente incompleto da ditadura. O efeito colateral de tal missão consiste em desmontar aquilo que os militares legaram ao Estado brasileiro e que, com certas diferenças, poderia ter continuado a ser edificado pela democracia de 1946. Cria-se, assim, terreno fértil para poderes paralelos, tais como as milícias, e o patrimonialismo, encarnado na investida de pastores e afins sobre o Estado e suas políticas públicas.

A cereja do indigesto bolo bolsonarista é o centrão, que, aliás, cimenta todo e qualquer pacto político brasileiro desde 1930, desde a posse de JK até o PT no poder, passando pela eleição de Tancredo, o impeachment de Collor e o governo FHC. Com os espaços abertos para exercer o patrimonialismo, o centrão — na figura do candidato de Bolsonaro à Presidência da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) — não tem hoje incentivos para se alinhar a forças progressistas, sejam elas de esquerda ou de direita.

Tal como a Presidência, as ruas estão vazias. Somente o povo no asfalto teria poder para levar os patrimonialistas a caírem em si e se lembrarem que, se as instituições seguirem ladeira abaixo sem freio, não haverá nada para se dilapidar. Ou seja, ao centrão não interessa a desconstrução total do país, nos moldes bolsonaristas e da linha-dura da ditadura. O ponto de ruptura dos patrimonialistas com o bolsonarismo, porém, ainda não surge no horizonte. Por ora, apenas nos perguntamos quantos mais terão de morrer sufocados antes que a democracia brasileira volte a respirar.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


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