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Entendendo Bolsonaro

Com eleição de Lira, direita enterra sua própria ilusão da frente ampla

Entendendo Bolsonaro

04/02/2021 11h05

A eleição de Arthur Lira para a Presidência da Câmara deixou evidente uma ironia: a tal "esquerda sectária" foi mais fiel à frente ampla do que os próprios articuladores dessa ilusão. (Crédito: Marcos Correa/PR)

* Igor Tadeu Camilo Rocha

Em 3 de janeiro de 2021, a Folha publicou o editorial intitulado "Filme Antigo", que entre outras coisas argumentava haver uma oportunidade histórica para que o Partido dos Trabalhadores (PT) abandonasse um histórico sectarismo ao apoiar uma frente ampla contra um inimigo comum – no caso, Jair Bolsonaro e seu governo – na eleição da presidência da Câmara dos Deputados.

Aderindo ao bloco articulado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) em torno do candidato Baleia Rossi (MDB-SP), contra um adversário apoiado por Bolsonaro, Arthur Lira (Progressistas, antigo PP – AL), o PT indicaria disposição a uma articulação em prol da democracia que não girasse em torno do partido, seu protagonismo ou autoridade. Não se repetiria, assim, o "filme antigo", por exemplo, de quando o partido não renunciou a uma candidatura, em 2018, em detrimento de Ciro Gomes (PDT).

Mais que isso – aí vai uma interpretação minha do editorial – seria um passo fundamental rumo a um consenso ao centro, que ao mesmo tempo neutralizaria pautas à esquerda e se colocaria frente ao fascismo bolsonarista, protegendo a democracia e as instituições dentro de uma grande articulação nacional.

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Pouco menos de um mês se passou do editorial, e veio a contundente derrota dessa frente de Maia para Arthur Lira, candidato do governo. Derrota esperada, diante de vários outros banhos de água fria que vieram na medida em que a frente ampla multipartidária minguava. E é sobre esse processo que discutirei nesse artigo.

Afinal, se faz necessário compreender os entraves para uma frente ampla, que parece ser tão desejada por muitos, mas também tudo indica que esbarra na realidade do jogo político brasileiro. Mais exatamente em pontos tão incômodos como poucas vezes criticados das ideologias e afinidades políticas compartilhadas pelas direitas moderadas brasileiras. Precisamos, ainda, nos perguntar de que frente ampla falamos, quem a deseja e, claro, fundamental também pensar ao que ela deveria servir e como ela funcionaria.

Tentando responder, remeto a um artigo importante no qual a frente ampla é discutida, também publicado na Folha e com grande repercussão. Assinado por Sandro Cabral, Carlos Melo e Milton Seligman e intitulado "O imperativo da união pela democracia", o texto traz alguns dos questionamentos com os quais gostaria dialogar aqui.

O texto argumenta que partidos e democratas da esquerda e da direita deveriam se unir, mesmo que ao preço de uma trégua entre algumas divergências político-ideológicas – boa parte delas justificáveis, salientam – a fim de derrotar o bolsonarismo. Não fazer isso, explicam, seria pôr a perder tudo o que foi conquistado no Brasil nos últimos 40 anos, em termos de democracia, direitos e instituições.

Parece bem claro qual seria o espírito dessa frente ampla, defendida no artigo como um imperativo ao Brasil atual. Trata-se de uma frente democrática desejada por quem, à direita, centro ou esquerda, defende a democracia e as instituições democráticas construídas no Brasil desde sua redemocratização; sua função seria barrar a escalada autoritária, fundamentalista e destrutiva do bolsonarismo contra essa democracia, de forma que ela sobreviva, até para, posteriormente, o embate político segundo suas regras continuar; e essa frente funcionaria a partir do entendimento de que tais pressupostos são mais urgentes que os interesses políticos e partidários. Construído dessa forma, tudo faz bastante sentido, de maneira a ser bem difícil discordar que tomar a disputa até 2022, pelo menos, por essa chave de leitura e atuação, seja o ideal. E é exatamente nisso que reside um enorme problema.

Mas antes cabe um parêntese para entendermos o tamanho da derrota desse ensaio de frente ampla (acho que podemos entender a articulação de Maia dessa maneira): Arthur Lira venceu para presidente da Câmara com 302 votos, quase a maioria qualificada do Congresso, que são 308. Daí seguem-se outras derrotas, com uma das mais fervorosas olavistas e bolsonaristas do Congresso, Bia Kicis (PSL-DF), sendo indicada para presidir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), considerada por muitos a mais importante das comissões da Casa.

Cabe ainda falar dos 145 votos para o candidato de Maia à presidência da Casa, o que significa uma derrota considerável se levarmos em conta as expectativas criadas quanto a essa articulação. Inicialmente, tratava-se de um grupo de 11 partidos — PT, PSL, MDB, PSB, PSDB, DEM, PDT, Cidadania, PV, PCdoB e Rede. Chegou-se a haver expectativa de se conseguir com ele mais de 280 votos, o que não se concretizou dadas as "traições", desembarques e diversos outros fatores.

Desnecessário dizer que havia, no mínimo, um otimismo excessivo em acreditar na permanência do PSL, ex-partido de Bolsonaro, no bloco de Baleia Rossi. Mas chamam muito mais atenção outras "traições" ao bloco: PSDB e DEM.

No caso do PSDB, o candidato derrotado no pleito presidencial de 2014 e atual deputado pela legenda, Aécio Neves (MG), articulou um desembarque da legenda do bloco de Rossi, o que foi apenas parcialmente revertido pelo governador de São Paulo, João Doria. Já o DEM, a partir de decisão do presidente da legenda, ACM Neto (BA), liberou o voto dos seus deputados, o que tem gerado uma expectativa grande de cisão interna, até com possível saída de Rodrigo Maia.

Diante disso, é altamente provável que somente uma parte dos 31 deputados do PSDB tenha votado em Rossi, valendo o mesmo quanto aos 30 do DEM. Assim, é plausível conjecturar que mais da metade dos votos a Rossi tenha vindo dos deputados de PT, PDT e PSB (respectivamente com 54, 26 e 30 representantes). Isso significa que a mesma centro-esquerda que despertou a desconfiança de sectarismo como um entrave à frente ampla parece ter sido um bloco mais fiel (ou menos resistente) à tal frente democrática articulada pela centro-direita que os próprios partidos da centro-direita.

Daí, vejo um indício consistente de que a principal barreira para a desejada frente ampla democrática não esteja nem na esquerda e centro-esquerda institucionais e partidárias, muito menos numa esquerda radical, sem representação parlamentar. O problema está na direita moderada, que se apresenta como centro, oferecendo-se como uma alternativa democrática contra o bolsonarismo. Sua atual força política, aparentemente, é superdimensionada por esse campo ideológico e partidário. Além disso, a forma como esse campo apresenta o imperativo de uma frente nos seus termos como uma obviedade, "bom senso", cobre alguns de seus pressupostos ideológicos, fundamentais para entender os limites de amplitude dessa frente.

Sobre a força real dessa centro-direita, é necessário observar sua retração no curso de uma radicalização do campo nos últimos anos. Uma análise publicada no Nexo ao final do primeiro turno das eleições de 2018, assinada por Fernando Guarnieri e Felipe Munhoz de Albuquerque, já apontava para o encolhimento das direitas tradicionais, em especial MDB e PSDB. Por uma série de motivos que não cabem ser discutidos aqui, o voto da direita saiu desses partidos: as direitas mais moderadas e inseridas no establishment político minguaram frente a figuras mais radicais no mesmo espectro, como Bolsonaro, partidos como PSL e Novo, grupos como MBL e outros, dentro de um processo de hiperpolitização da disputa política no Brasil, entre 2013 e a atualidade.

Por sua vez, a direita que saiu fortalecida nas eleições de 2020 e confirmou sua hegemonia no quadro político atual depois da eleição para a Câmara é a do centrão, grupo caracterizado por orbitar o Poder Executivo, trocando emendas, cargos e posições por apoios, votos e maioria no Congresso. Tradicionalmente, representa interesses do empresariado, além de oligarquias tradicionais e/ou regionais. Não possui agenda muito bem delimitada, tendo como marca distintiva seu adesismo.

E esse grupo não mostra e jamais indicou qualquer razão para aderir a uma frente anti-Bolsonaro ou pela defesa da democracia. Afinal, a democracia, nos moldes da que temos no Brasil, é bem funcional ao centrão, tanto que esse grupo é a marca institucional mais acentuada na política da Nova República e remete a estruturas bem longevas na nossa história política. Muito se fala da vitória de Bolsonaro com a eleição de Lira, mas é necessário entender que o mesmo centrão assumiu de vez o controle do governo, de forma que uma queda significativa de popularidade do presidente ou o não cumprimento dos acordos do Executivo com esse grupo nos próximos meses pode tornar Bolsonaro descartável. Assim, o crescimento do centrão e o encolhimento de uma centro-direita tradicional servem como fatores de fundo estrutural que respaldam a debandada de PSDB e DEM do grupo de Baleia Rossi.

Além disso, entendo haver entre parte dos defensores de (ou sonhadores com) tal frente ampla um wishful thinking de que esses dois partidos, mais alguns quadros do MDB, representam a via moderada entre as disputas ideológicas, tendo a racionalidade e o capital ético necessários para domar o bolsonarismo. Porém, essa forma de ver a política, importante como autorrepresentação dessa centro-direita, não se sustenta. Além disso, esconde afinidades político-ideológicas, diluídas em pós-política (apresentadas como obviedades, bom senso), que aproximam a tal centro-direita mais do bolsonarismo que elas queiram admitir e menos de alternativas democráticas de outros campos ideológicos dispostos a renunciar a algo para uma frente ampla.

Uma dessas afinidades político-ideológicas é quanto à agenda econômica. Uma grande parte da centro-direita brasileira está disposta a repudiar o bolsonarismo, mas defendendo a ferro e fogo o "guedismo", como se isso fosse possível. Desse ponto de vista, o risco à democracia representado por Bolsonaro é um problema na medida em que impede ou torna mais lenta um conjunto de reformas neoliberais. Mais que isso, o autoritarismo ou o negacionismo do presidente com a pandemia ficam menos inaceitáveis se acontecerem as privatizações, uma reforma administrativa que mantenha privilégios de algumas categorias – judiciário e militares, por exemplo – e precarize as demais, uma reforma tributária que mantenha a estrutura regressiva e, claro, haja a manutenção da Emenda Constitucional 95 e o "teto de gastos" por 20 anos.

Outra afinidade desse tipo é em torno de um anti-esquerdismo, materializado no antipetismo e na própria repulsa à figura de Lula, equiparado por falsa simetria a Bolsonaro. O curioso, novamente, é que esse tipo de narrativa existe junto com a constante expectativa de que PT e toda a esquerda inviabilizem a frente ampla por sectarismo, sendo que a resistência a fazer parte de uma frente com partidos desse campo vem consistentemente dessa centro-direita. Como exemplo recente, cabe lembrar que uma das justificativas para a saída do PSDB do bloco formado por Maia tenha sido evitar o PT na mesa diretora da Câmara.

Uma última afinidade política que impede uma oposição mais aguda ao bolsonarismo da centro-direita se dá em torno do lavajatismo. Mesmo diante das revelações da Vaza Jato, cristalizadas na recente publicização de conversas entre o ex-juiz Sergio Moro e procuradores da "República de Curitiba" no âmbito da Operação Spoofing, a autocrítica dessa centro-direita por ungir a Lava Jato como salvação nacional contra a corrupção está longe de acontecer.

Partidos como PSDB e DEM, bem como variadas figuras políticas desse campo e editoriais de grandes grupos de imprensa, ainda hesitam quanto a isso. Moro aparece frequentemente em pesquisas extemporâneas de intenção de voto para a presidência em 2022, e as conversas mencionadas acima, que desvelam ilegalidades absurdas, repercutiram muito menos que deveriam no debate político.

Esse conjunto de fatores é suficiente para fazer da defesa das instituições ou da democracia uma mera abstração. Diante de imperativos conjunturais e um conjunto de pressupostos ideológicos, a centro-direita brasileira permanece entre o infame "Uma escolha muito difícil" de 2018 e um adesismo de ocasião ao governo Bolsonaro, sendo que neste último aspecto o centrão cobre tal papel com muito mais competência.

Assim, se houve um ensaio geral em 1º de fevereiro de 2021 sobre uma frente ampla em 2022, sabemos que ele foi péssimo. Se havia o objetivo de uma frente que, ao mesmo tempo, esvaziasse agendas de oposição à esquerda e fizesse frente ao bolsonarismo por um viés de centro-direita moderado, isso, na prática, mostrou-se pouco viável. Para 2022, que fique a reflexão sobre tudo o que nos levou a esse quadro. E, claro, que alguns erros sejam deixados de lado até lá.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.


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