Bolsonaro, 1964 e o negacionismo como política
Entendendo Bolsonaro
28/03/2019 01h37
(Crédito: Marcos Corrêa/PR)
*Igor Tadeu Camilo Rocha
Na semana que marca os 55 anos do golpe de 31 de março de 1964, que deu início ao mais recente período ditatorial da história republicana do Brasil, tendo chegado ao fim em 1985, o presidente Jair Bolsonaro determinou que se fizessem as "comemorações devidas" à data.
Com a iminência da solenidade, a ser realizada nesta sexta-feira (29), o assunto foi pauta de entrevista concedida pelo presidente ao jornalista José Luiz Datena, da TV Bandeirantes, na última quinta-feira (27). Perguntado a respeito, Bolsonaro negou que tenha havido ditadura no período.
Não se trata de eventos que destoem de outras declarações ou episódios de sua trajetória política, mas discuti-los em si não é o objetivo deste texto.
Pretendo aqui traçar uma breve reflexão sobre a função no debate público atual dessas reelaborações da história da ditadura militar brasileira, tendo em vista que posturas revisionistas ou negacionistas sobre o passado servem mais a ações políticas no presente do que propriamente a uma disputa pela verdade sobre o passado, aspecto que perpassa a produção e escrita da história (no âmbito acadêmico ou não) ao longo do tempo.
Em 1960, o pensador alemão Theodor Adorno respondeu, numa fala famosa, a pergunta incômoda sobre "o que significa elaborar o passado". Para ele, esse procedimento não significa reelaborar algo que passou a sério, ou, noutros termos, disputar uma verdade ou um esclarecimento histórico no âmbito científico ou acadêmico constituído segundo protocolos e critérios de verdade.
Geralmente, (re)elaborar o passado significa encerrá-lo e recontá-lo de outra maneira, constituindo uma redução de alguma questão que remeta a ele, como um trauma, injustiça ou evento limite, de maneira a circunscrever nesse "recontar a história" apagamentos de memória. Isso faz com que na narrativa histórica haja uma reelaboração completa do que se pensa sobre o que se passou, em especial no que se relaciona com culpas ligadas a grupos hegemônicos do presente.
Tal "(re)elaborar o passado", nas gerações seguintes à de Adorno, foi bastante rediscutido pelos historiadores dentro da problemática que envolveu o negacionismo ou revisionismo históricos. Artigo recente do professor da Universidade Federal de Ouro Preto, Mateus Pereira, discute a diferença dessas formas de reler o passado e seus usos no debate público do presente, analisando a memória sobre a ditadura.
Revisionismo, para ele, define uma interpretação livre do passado, que não nega necessariamente os fatos, mas os instrumentaliza para combates políticos do presente. Já o negacionismo seria a radicalização da negação de fatos do passado e do revisionismo, uma falsificação do fato. Ele se vale da contestação da realidade, fato ou acontecimento, na qual percebe-se uma dissimulação da factualidade que ou procura negar o poder de veto das fontes ou fabrica uma retórica com base em provas imaginárias e/ou discutíveis/manipuladas.
Historicamente, há diversos usos nos debates públicos de versões do passado. Robson Loureiro e Sandra Della Fonte analisaram um caso da empresa Aracruz Celulose, que se valeu, em meados dos anos 2000, de reelaborações do passado colonial para elaborar uma cartilha, distribuída em escolas, dentro de um processo de disputa por terras com indígenas. Renato Venâncio criticou o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil pela mesma chave, observando no livro uma série de afirmações como verdade de pontos de vista conservadores, que tocam aspectos que remetem à história de indígenas e negros, por exemplo, de maneira a desqualificar as lutas desses grupos no presente.
Tais negações e revisões do passado encerram visões políticas mais ou menos radicais do presente. Sobretudo os negacionismos são usados na composição de sistemas de verdade mais fechados, próprios de grupos radicais ou fundamentalistas. O olavismo, termo que remete ao comportamento anti-intelectual, afeito a conspiracionismo e negacionismos científicos, associado aos seguidores do ideólogo Olavo de Carvalho, é um perfeito exemplo disso.
Ditos tais pressupostos, podemos nos perguntar: o que, dentro do debate público, significa a exaltação que o presidente Jair Bolsonaro, no exercício de sua função, faz da ditadura militar? Há, antes de tudo, implicações éticas óbvias. Os relatórios da Comissão Nacional da Verdade mostram haver violências que ainda sequer foram devidamente estudadas pelos historiadores, como os milhares de indígenas mortos ao longo da expansão agrícola e das grandes obras no contexto do "milagre econômico" brasileiro.
Há incontáveis casos de perseguidos, desaparecidos, torturados e mortos, que incluem militares, crianças, militantes políticos e diversas outras pessoas. Fora isso, a desigualdade e concentração de renda cresceram entre 1964 e 1985. Existem mazelas o suficiente relacionadas a tal período que tornam, no mínimo, questionável o apreço de um presidente a ele – insatisfação mostrada, por exemplo, por Ministério Público Federal, Ordem dos Advogados do Brasil e Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos), entre outros.
Possivelmente, com a comemoração, Bolsonaro busca um aceno para sua militância mais radical, formada por uma direita identitária, negacionista quanto à ditatura e que toma essa leitura da história brasileira como parte componente de sua visão da realidade, permeada por conspiracionismo anticomunista, fundamentalismo religioso, moralismo, punitivismo e discurso pró-armamentista. Dito com outras palavras, o presidente estaria falando para a sua "bolha", talvez devido a sua queda de popularidade apontada por institutos de pesquisa.
Dentro desse grupo de apoiadores, o presidente tem encontrado um e outro apoio em relação a sua postura sobre o golpe de 1964, como o caso do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel e o deputado federal General Peternelli (PSL), além do declarado pelo ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo (de maneira um tanto contraditória, diga-se). Porém, observando-se do ponto de vista pragmático, "falar para a bolha" pode também significar problemas ao presidente, haja visto críticas recentes que recebeu de uma apoiadora, a deputada estadual de São Paulo Janaína Paschoal, ou mesmo a postura de maior cautela quanto à comemoração tomada pelo ministro da Defesa.
A despeito do Brasil ter enormes falhas, comparados a outros países que viveram mesmo trauma de uma ditadura recente, no que diz respeito a um trabalho de memória, há de se pensar duas situações relacionadas à posição laudatória do presidente quanto aos governos militares. Primeiro, que por ela remeter a um negacionismo que tende, no geral, a agradar e compor visões de mundo de grupos mais radicais de apoiadores, é de se esperar que ela não agrade apoiadores mais moderados. É de se perguntar se, de fato, esse negacionismo dos crimes e a apologia à ditadura podem ou não render capital político a Bolsonaro.
Talvez, pensando a composição da sociedade brasileira, seja óbvio que ela é grande o suficiente para dar suporte a um deputado federal, mas não é possível ter tanta certeza disso tratando-se de um presidente. A segunda é que a própria oposição à ditadura tem sido um capital político significativo no Brasil pós-1989, uma vez que o próprio Bolsonaro é somente o segundo dos presidentes eleitos desde então que não tenha, em algum momento, sido perseguido ou preso pela ditadura militar em sua trajetória política.
Considerando a realidade de um presidencialismo de coalizão (em crise, mas sem uma alternativa óbvia a ele no horizonte), no qual o apoio da sociedade civil e o trânsito com as demais forças políticas são fundamentais para o sucesso do poder executivo, podemos estar diante de indicativos problemáticos ao andamento do governo.
Bolsonaro e alguns apoiadores, talvez, não observem devidamente que negacionismos como o da ditadura militar só funcionem plenamente com aqueles "iniciados", que compartilham dos "ecossistemas" de informação específicos de redes de grupos fortemente ideologizados, e que tendem a encontrar resistência fora dele.
*Igor Tadeu Camilo Rocha é mestre e doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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