Antes de Guedes, Gentili foi ponte entre Bolsonaro e liberais
Entendendo Bolsonaro
11/05/2019 02h17
(Crédito: Reprodução/SBT)
* Ivan Paganotti
Muito antes do economista Paulo Guedes, era no comediante Danilo Gentili que Jair Bolsonaro enxergava uma ponte para conquistar novos públicos e modular seu discurso.
Durante a eleição de 2018, o apoio do economista formado pela tradicional Universidade de Chicago foi um afago explícito para os mercados. Foi um alívio para eleitores liberais, que ainda se preocupavam ao lembrar dos primeiros anos de Bolsonaro como deputado, quando defendia propostas que iam de maior intervenção do estado na economia até fuzilamentos – e vale destacar que, nos últimos anos, a primeira medida parece ter se tornado a menos palatável para lideranças políticas.
Paulo Guedes funcionava como um selo de garantia liberal para o futuro governo Bolsonaro. Apelidado de "Posto Ipiranga", traria novo rumo e gás para uma economia que patinava, com privatizações, cortes de gastos e redução de impostos.
Mas anos antes, a primeira ponte que Bolsonaro construiu para ampliar sua base de apoio em segmentos liberais (ou seja, que resistem à intervenção do Estado sobre interesses privados) não se baseou no terreno econômico. No princípio, era o verbo; a ação era combater o politicamente correto.
As linguistas Edwiges Morato e Anna Christina Bentes, da Unicamp, consideram que o politicamente correto (ou PC, para os íntimos opositores) surge de uma preocupação com os efeitos negativos de termos considerados como ofensivos, normalmente atrelados a minorias. Para combater discriminações, o PC pode ser visto como uma lista de palavras que deveriam ser evitadas ou substituídas por eufemismos. Essas recomendações acabavam tendo uma força impositiva, pois quem não seguir sua cartilha pode ser alvo de críticas pela falta de sensibilidade.
Para seus opositores, o politicamente correto limita a expressão e pode ser um instrumento autoritário, imposto de cima para baixo. Nesse sentido, a professora de filosofia da USP, Silvana de Souza Ramos, considera que grupos antes majoritários passam a resistir a essas mudanças e ressentir às críticas que apontam suas falas como preconceituosas. Com isso, apresentam-se como vítimas dos que antes eram excluídos e agora disputam espaço no debate público – inclusive discordando sobre as palavras mais apropriadas para nomear os diferentes grupos.
Essa disputa sobre a vitimização é bastante evidente no caso do atual presidente dos EUA, e foi instrumental para sua eleição. Em 2016, Donald Trump ganhou a atenção do público ao defender a construção de um muro no sul do país, descrevendo mexicanos como criminosos, traficantes e estupradores, em flagrante desafio às normas de moderação da linguagem para não ofender minorias latinas, influentes no eleitorado desse país.
Além de conquistar espaço na cobertura jornalística em uma eleição tumultuada pelo elevado número de pré-candidatos, essas declarações incômodas mostraram que o empresário não tinha medo de falar o que pensava nem receio de chocar as sensibilidades das minorias.
O discurso ofensivo de Trump soou como música para muitos norte-americanos que sentiam ter perdido espaço para minorias em ascensão, como os migrantes. Suas palavras duras davam voz ao que muitos não conseguiam expressar sem sofrer críticas. O que antes era vaiado como preconceito parecia reconquistar aplausos no debate público.
Nesse sentido, um trio de pesquisadores dos EUA identificou que eleitores que sentiam sua voz ser silenciada ou ignorada tinham justamente uma chance maior de votar em Donald Trump. Os psicólogos Conway, Repke e Houck demonstraram que o posicionamento sobre normas para evitar ofensas (como o politicamente correto) era um fator central no alinhamento entre eleitores e candidatos.
Na pesquisa, eleitores alertados sobre limites do politicamente correto tinham uma propensão maior para apoiar Trump para presidente. A conclusão do estudo é que a vigilância do politicamente correto, mesmo que bem-intencionada, pode ter saído pela culatra, gerando lideranças com apoio popular por falar o que não deveria ser dito. Pelo jeito, eleitores norte-americanos não estavam votando em Trump apesar das suas falas ofensivas, mas por causa delas.
Se muitas vezes Bolsonaro é criticado por seguir a cartilha que elegeu Donald Trump para presidente, nesse caso o Brasil se antecipou aos EUA. Bolsonaro já adotava essa mesma estratégia muito antes de Trump, colecionando declarações que ofenderam minorias como quilombolas, indígenas e mulheres. Pesquisa do cientista político João Feres Júnior, do Iesp-UERJ, aponta que Bolsonaro é reconhecido por comunidades em redes sociais como um dos tradicionais porta-vozes do discurso contrário ao politicamente correto no Brasil.
Depois de eleito, Bolsonaro aproveitou um discurso em Washington, durante visita aos EUA em março, para destacar valores que misturam elementos conservadores e liberais: "Acreditamos na família, acreditamos em Deus, somos contra o politicamente correto, não queremos a ideologia de gênero e queremos, sim, um mundo de paz e liberdade".
Pode parecer contraditório, mas Feres Júnior concluiu em seu estudo que discursos ofensivos ou politicamente incorretos foram defendidos pelo mesmo grupo político que abraça uma pauta moralizante, como a denúncia de temáticas sexuais na educação ou em obras de arte.
Em outras palavras, quem defendia a liberdade contra o politicamente correto mudava de posicionamento quando se tratava de valores tradicionais, como a sexualidade, e demandava censura. Na visão do cientista político da UERJ, essa seria uma estratégia política que permitiu ao discurso liberal, tradicionalmente impopular nas eleições, alinhar-se com demandas de grandes grupos tradicionais, como os religiosos.
Essa popularização do discurso liberal se deu ao mesmo tempo em que a resistência ao politicamente correto dava luz ao seu oposto. Os pesquisadores Josnei Di Carlo e João Kamradt, da UFSC, identificaram uma correlação, na última década, entre protestos antissistema, a insatisfação com a esquerda e a popularização de discursos provocadores, ofensivos ou que contestavam práticas e saberes instituídos, elementos que definem o chamado "politicamente incorreto".
Nessa categoria se incluem humoristas como Danilo Gentili e jornalistas como Leandro Narloch, autor de uma série de guias politicamente incorretos que propõem subverter o relato de eventos históricos. A dupla de pesquisadores da UFSC analisa especificamente o sucesso desse fenômeno editorial e como Bolsonaro acaba se tornando "seu tradutor ao grande público" ao negar violências da ditadura ou da escravidão. Usando uma linguagem popular, provocadora e com muito humor, esse novo movimento da direita tem combatido o saber produzido pelas ciências humanas e que fornecia bases para demandas de grupos discriminados.
A popularidade desses livros e dos humoristas ampliou a animosidade de novos segmentos contra o politicamente correto e o PT, identificado como seu defensor no país. Mas a imprensa tradicional talvez seja o epicentro desses abalos políticos que alinharam as placas tectônicas do liberalismo e do conservadorismo em colisão com a esquerda petista.
No livro Politicamente correto, uma categoria em disputa, a jornalista Nara Lya Cabral Scabin analisa como esse conceito foi discutido em artigos publicados na Folha de S. Paulo. Nos anos 1990, o politicamente correto era apresentado como uma tendência de comportamento individual importada dos EUA, e aos poucos passou a ser filiado ideologicamente com a militância da esquerda. Nas últimas duas décadas, os artigos da Folha também denunciavam seu uso político como uma ameaça à liberdade de expressão.
Vale lembrar que a Folha tem apresentado uma postura bastante crítica em relação a medidas de Bolsonaro, e inclusive já foi ameaçada pelo atual presidente e seus apoiadores. Mas a pesquisa de Scabin indica que a crítica ao politicamente correto como ameaça da esquerda à liberdade já se encontrava nas páginas da grande imprensa a partir do que a autora qualifica na página 111 como a "visão liberal" do jornal, que resiste contra limites para a expressão na democracia.
Assim, os leitores de veículos tradicionais como a Folha encontraram ecos desses argumentos nas críticas de políticos até então marginais, como Bolsonaro. O discurso de um radical representante do folclórico baixo clero da Câmara dos deputados alinhava-se, de forma surpreendente, com a imprensa tradicional. Em resenha sobre o livro de Scabin, já sugeri que a militância pelo politicamente correto acabou aglutinando, em seu polo opositor, defensores da liberdade de expressão, como parte da grande mídia, e discursos antes incômodos e marginais, mas que agora se vendiam como "politicamente incorretos" para públicos mais amplos.
Em 2019, a Folha e Bolsonaro vivem uma batalha contínua, mas na década passada ambos se encontravam inesperadamente aninhados no mesmo front contra o politicamente correto. Essa proximidade construiu uma das primeiras bases para expandir o apoio marginal de Bolsonaro para o centro do debate público, usando argumentos liberais como surpreendente cabeça de ponte.
O debate sobre o politicamente correto foi um dos primeiros caminhos para a popularização bolsonarista entre liberais preocupados com intromissões públicas em práticas particulares – um caminho consolidado em 2018 com a adoção do receituário de austeridade do economista Paulo Guedes e ampliado, em 2019, com menor regulação e fiscalização ambiental adotada pelo ministro Ricardo Salles.
Ao alinhar liberais e provocadores na crítica ao controle da linguagem, o politicamente incorreto pode ter sido a semente de um inesperado fenômeno eleitoral que elegeu defensores do estado mínimo adotando uma linguagem provocadora contra minorias.
* Ivan Paganotti é professor do Mestrado Profissional em Jornalismo da FIAM-FAAM, e doutor em ciências da comunicação pela USP, com doutorado-sanduíche na Universidade do Minho, em Portugal.
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