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Bolsonaro sempre sonhou com uma ditadura

Entendendo Bolsonaro

26/02/2020 00h00

Manifestante protesta contra o Congresso Nacional. Nesta terça (25), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) compartilhou vídeo que conclama os brasileiros a emparedar instituições (Dida Sampaio/Estadão)

[RESUMO] Quando o filho Eduardo falou em AI-5, Jair Bolsonaro disse que ele estava sonhando. Pois era justamente isso. Agora é o próprio presidente quem convoca atos para fechar o Congresso. Se um dia esse sonho vai se realizar ou não, é difícil prever. O fato é que a cada dia que passa custa um pouco mais caro para a sociedade brasileira esse cosplay anti-establishment.

*Murilo Cleto

Conforme revelou o BR Político nesta terça (25), o presidente Bolsonaro convocou os seus adeptos, via Whatsapp, a aderir às manifestações marcadas para o próximo dia 15 com o intuito de emparedar os demais Poderes da República.

É oportuno, nesse momento, relembrar episódios anteriores da narrativa de ruptura bolsonarista, que nos ajudam a compreender a lógica em curso.

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Dias antes do segundo turno da eleição, vazou um vídeo em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro discutia com alunos de um cursinho a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal barrar a candidatura de seu pai: "O STF vai ter que pagar para ver. E aí quando ele pagar para ver, vai ser ele contra nós", disse.

É o famoso vídeo do jipe e do soldado, você deve se lembrar. Na ocasião, já havia forte adesão das Forças Armadas à candidatura de Jair Bolsonaro, mas a presidência ainda não estava garantida.

O presidenciável reagiu defendendo o filho de um possível erro de interpretação e cravou: "Se alguém falou em fechar STF, precisa consultar um psiquiatra".

Meio sem jeito, Eduardo Bolsonaro se desculpou e o resto da história todo mundo conhece. Houve manifestações pró-governo, invariavelmente associadas a pautas autoritárias. Mas o Planalto se limitava a dizer que seu objetivo era endossar os entusiastas das reformas. Aqueles que eram flagrados pedindo golpe já recebiam um laudo automático de interdição. "São exceção", ponderavam.

Mais uma vez, agora no final de outubro de 2019 – já enquanto filho do presidente –, Eduardo Bolsonaro foi manchete depois de cogitar à apresentadora Leda Nagle um novo AI-5. Seu comentário avaliava os protestos no Chile e servia de recado para a oposição brasileira. O pai mais uma vez entrou em ação para dizer que "quem quer que fale em AI-5 está sonhando".

Na ocasião, me chamou atenção o uso do verbo "sonhar". Bolsonaro não falou em delírio, nem em pesadelo, mas em sonhar. O AI-5 é o grande sonho dos bolsonaristas: governar sem freios e contrapesos, no Congresso, nas ruas, na imprensa ou no Supremo.

O ato falho do episódio é seguido de incontáveis declarações de admiração por regimes e líderes autoritários que a demissão de Roberto Alvim – secretário da Cultura demitido depois de plagiar o nazista Goebbels – não pode esconder, a começar pelo autor do livro de cabeceira de Bolsonaro, o notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Bolsonaro é fã de Videla, Stroessner, Pinochet, Costa e Silva. É claro que o AI-5 é um sonho.

Se nas manifestações pró-Bolsonaro de maio do ano passado ainda havia algum verniz programático, e os gestos antidemocráticos eram um pouco mais periféricos, agora o cenário é outro.

Paulo Guedes, ministro da Economia, está pela primeira vez em xeque no governo por não entregar resultados eleitoralmente atraentes. Além disso, depois de aprovada a reforma da Previdência, o Planalto não passa de um coadjuvante perdido diante das demais pautas em evidência, como as reformas tributária e administrativa.

E, pior, dessa vez, quem convoca os atos contra Congresso e STF é o próprio presidente, chamando por manifestações agora esvaziadas de conteúdo propositivo, e francamente desafiadoras ao Congresso.

Na semana passada, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, o general Augusto Heleno, foi flagrado reclamando da "chantagem" dos parlamentares por fatias do orçamento impositivo. O projeto foi considerado um dos primeiros gestos de desafio do Poder Legislativo à nova gestão e deve ter os vetos do presidente discutidos nos próximos dias. Desagradou o governo, é verdade, mas é do jogo. Afinal, é o que pressupõe a democracia.

As manifestações do próximo dia 15 são, portanto, resultado de uma ofensiva bolsonarista em busca de três objetivos, fundamentalmente. O primeiro, e mais imediato, é o de manifestar apoio ao general Heleno contra o Congresso nessa celeuma.

O segundo, mais estratégico, é o de reforçar a hegemonia do campo antipetista ao reviver o ato de 15 de março de 2015, quando, cinco anos atrás, o movimento pelo impeachment de Dilma Rousseff atingiu um patamar inédito, com cerca de 1 milhão de pessoas nas ruas de todo país. A direita, é importante lembrar, rachou depois da posse de Bolsonaro. Disputar esse legado é fundamental para o devir desses grupos.

Mas nada disso teria sentido se o ato do dia 15 não realizasse o que mais interessa ao bolsonarismo, que é seguir antagonizando com as instituições para justificar sua existência e sua permanência no poder.

Bruno Castanho Silva, pós-doutorando em Política Comparada da Universidade de Colônia, na Alemanha, cita os casos de Bolívia e Equador para sustentar que, uma vez no poder, líderes populistas comumente recorrem a expedientes similares para não permitir que a sua imagem se misture com a do sistema e, assim, avançar contra agentes da imprensa, do Legislativo, do Judiciário e da sociedade civil.

Para o cientista político Pablo Ortellado, as manifestações de maio passado foram o meio que o bolsonarismo encontrou de resolver a contradição de ser governo e antissistema ao mesmo tempo. Tudo o que fizeram os bolsonaristas desde o primeiro dia de mandato foi performar contra aqueles que estão identificados como parte do sistema: ONGs, universidades, jornais, partidos, Cortes, etc.

Quanto mais tempo passa no poder, mais o bolsonarismo precisa subir a dose desses ataques para se justificar a esse eleitor radicalizado pela profunda crise que passam as instituições brasileiras desde 2013.

Engano de quem acreditou que a ala estabilizadora – para usar a expressão de Marcos Nobre que se refere ao núcleo militar do governo – tutelaria Bolsonaro. Ficaram os mais fanáticos da ala mobilizadora. Mesmo os integrantes do Exército são, em grande parte, como no passado, justamente os menos afeitos às instituições democráticas e que sonharam, junto com Bolsonaro, com uma ditadura para chamar de sua.

Se um dia esse sonho vai se realizar ou não, é difícil prever. O fato é que a cada dia que passa custa um pouco mais caro para a sociedade brasileira esse cosplay anti-establishment.

*Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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Sobre os autores

Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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