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Na Quaresma, bolsonarismo lança a sua última tentação autoritária

Entendendo Bolsonaro

26/02/2020 23h54

Papa Francisco preside a Missa de Imposição das Cinzas em Roma. A um mundo secular em busca de norte político, a Quaresma deve servir como metáfora (Crédito: Vatican News)

* Vinícius Rodrigues Vieira

Terminado o Carnaval, é hora de rasgar a fantasia: temos um governo que, de passo em passo, não apenas flerta, mas quer levar ao altar o autoritarismo e com ele se unir em enlace eterno ainda que não ouse sequer sussurrar o nome do amado.

Para além das metáforas que comparam fatos políticos a situações típicas de casamento, a convocação do presidente Jair Bolsonaro durante o Carnaval a seus adeptos, via Whatsapp, para saírem às ruas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) em 15 de março assemelha-se à última tentação que Cristo enfrentou ao jejuar 40 dias no deserto — ato representado por cristãos na Quaresma, que tem início ao meio-dia da Quarta-Feira de Cinzas.

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O que se segue nada tem de herético ou desrespeitoso contra uma figura religiosa. Afinal, como se diz em alguns círculos católicos, cada um carrega sua cruz — deixando implícita a dimensão humana de Jesus e, portanto, análoga às vicissitudes que todos nós enfrentamos ao longo da vida.

Neste caso específico, falamos da vida da democracia brasileira, esse paciente enfermo aos 35 anos, solapado pelo vírus da corrupção, ineficiência e os remédios autoritários supostamente capazes de curá-la.

Segundo a Bíblia, após ser batizado por São João Batista, Jesus seguiu rumo ao deserto para jejuar antes de começar a cumprir sua missão e pregar a palavra de Deus. Nas igrejas Católica e Ortodoxa, além de denominações protestantes históricas, esse período é simbolizado pela Quaresma — ou seja, os 40 dias entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Semana Santa. Trata-se de uma época de reflexão e, em tese, de renúncia aos prazeres terrenos.

Daí a tradição entre alguns mais religiosos de não comer carne ou a recomendação de padres de abandonar vícios — inclusive os contemporâneos, como acessar frequentemente o celular, conforme salientado pelo Papa Francisco.

Entre os evangélicos, cabe salientar, o significado da Quaresma não é consensual, sendo até mesmo repudiado por supostamente negar, nos demais períodos do ano, o devido respeito ao Salvador e sua palavra  veja um resumo do debate aqui.

Nessa jornada — similar à solidão que nós, meros mortais e eleitores, temos de enfrentar na vida pessoal ou, por exemplo, perante a urna eletrônica — , Cristo foi tentado três vezes pelo diabo. Na primeira vez, ele sugeriu a Jesus transformar pedras em pães e, assim, saciar sua fome no deserto, desviando-se, assim, de seu testemunho de fé e missão de levar a palavra de Deus à humanidade. Políticos, de diversos matizes, seduzem eleitores a tolerar a corrupção em troca de benesses pontuais em vez de direitos plenos.

Na segunda vez, o coisa ruim sugeriu a Jesus que se jogasse de um lugar alto — para um humano qualquer, equivale a enfrentar o desconhecido numa aposta arriscada. O eleitor sucumbiu a uma tentação similar ao votar na "nova política" — bolsonarismo incluso — apesar dos riscos de levar ao poder pessoas inexperientes e com ligações suspeitas como grupos que agem à margem da lei, como milícias.

A última tentação que Jesus enfrentou no deserto foi renunciar à sua missão em troca de todo o poder do mundo. Na política, isso equivale propor ao eleitor abandonar a democracia em troca de soluções pretensamente mágicas — o autoritarismo, hoje representado não apenas pela convocação aos atos de 15 de março, mas também por todos os recentes eventos que escancaram a ambição bolsonarista de criar um ambiente de instabilidade que justifique posteriormente uma guinada centralizadora, para não dizer ditatorial.

Bananas a jornalistas, ofensas de cunho sexual a uma repórter mãe de família — como os conservadores salientariam em outras circunstâncias — , ministro militar mandando um f***-se para o Congresso, desencadeando a crise atual, policiais militares amotinados e um tiro quase fatal contra um Senador da República que, sim, agiu de maneira temerária.

Há algo de podre na política nacional e não é desde os dias que antecederam a folia. O corpo ainda vivo — porém em estado de putrefação avançada — é a democracia brasileira. Ela não pode se dar ao luxo de ser um Lázaro esperando ser ressuscitado pelo Messias.

Pelo contrário: quem tem mais chances de dar o tiro de misericórdia ou a dose letal de veneno no enfermo Brasil — aliás, bastante paciente — é a direita hoje instalada no poder, lastreada numa interpretação peculiar do cristianismo, calcada no ódio, não na piedade que Cristo pregava.

Por quanto tempo mais resistiremos a um autoritarismo explícito? Enquanto parte do alto escalão militar procura se afastar do bolsonarismo, a base das Forças Armadas cerra fileiras com o presidente. Essa base, somada aos oficiais de baixa patente das polícias militares, teria condições de promover a "revolução"— ou melhor dizendo, golpe — ao primeiro toque do clarim, emitido via WhatsApp desde a conta do presidente da República.

Messias — o Jair, de arma na mão, bem lembrado pelo enredo da Mangueira que recordou que Jesus habita sobretudo os fracos e oprimidos — ou qualquer outro político não vai nos salvar. Quanto a Cristo, é uma questão de foro íntimo — afinal, seu reino não era deste mundo e, como ele mesmo disse, "dê a César o que é de César, e a Deus o que é Deus", no que talvez tenha sido a primeira delimitação feita entre Igreja e Estado estabelecida por um líder religioso.

Dito isso, a Quaresma aplica-se como metáfora que oferece ao mundo secular um norte político. Em público, cabe somente defender acima de todos os credos a pior das utopias políticas exceto as demais: a democracia.

Quem disse algo parecido foi um conservador de verdade, Winston Churchill, não um simulacro de Hugo Chávez — o qual transformou a Venezuela numa ditadura de fato com a ajuda de colegas militares  que, ungido pelo voto, parece ter chegado ao Planalto com a missão de ser a última tentação contra a democracia brasileira no deserto que ela atravessa desde sempre.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Oxford, professor da Faap e da pós-graduação na FGV.

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