Covid-19 pode trazer a política de volta ao mundo real, diz filósofo
Entendendo Bolsonaro
21/03/2020 22h57
Bolsonaro chama humorista para comentar o PIB: quando a performance 'troll' invade o real (Crédito: Reprodução)
[RESUMO] Para o filósofo Moysés Pinto Neto, a pandemia de Covid-19, como força indiferente a quem atinge, representa um choque de realidade a um mundo imerso nas nuvens. Para uma política que escolhe a performance e abandona o concreto, o vírus é um lembrete de que a vida real existe, de que ainda temos um corpo e por isso somos vulneráveis.
* Moysés Pinto Neto
Dizemos que uma pessoa está "no mundo das nuvens" quando está muito distraída, em geral pensando em coisas desligadas do momento real em que está vivendo.
Curiosamente, a nuvem tornou-se uma das principais imagens do nosso tempo. Livros como "Dentro do Nevoeiro", de Guilherme Wisnik, e "A Nova Idade das Trevas", de James Bridle, pensam a experiência do contemporâneo a partir da experiência da nuvem digital.
Estamos permanentemente conectados em nuvens: Facebook, Google, Youtube, Netflix, Twitter, Instagram. E estar vivendo nesse mundo é também, de certa forma, abandonar o mundo da experiência vivida em detrimento desse outro ambiente virtual das plataformas.
Não se trata de simplesmente afirmar que as coisas se opõem: mundo falso, mundo verdadeiro. São dois ambientes. A diferença é que, do lado de cá, das nuvens, as regras quem faz são as próprias plataformas. Por isso, vivemos a sensação do nevoeiro: na mesma medida em que tudo parece transparente, o código que torna as coisas visíveis é, ele próprio, invisível para nós.
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Se aplicarmos esse raciocínio à realidade política brasileira, é possível dizer que Bolsonaro aprendeu bem esse jogo. Seu discurso volta e meia não tem referência material. Ele simplesmente produz o jogo das plataformas, em busca de likes e apoios da sua dedicada claque virtual.
Os trolls que o seguem não estão interessados na velha correspondência entre mundo real e a afirmação dita. O que importa é basicamente a performance. O conteúdo é irrelevante: no final, tudo pode ser só brincadeira mesmo. Como, aliás, funcionam as plataformas: agnósticas em relação ao conteúdo, basicamente preocupadas em nos manter conectados prendendo nossa atenção.
Bolsonaro sabe jogar o jogo, tornando-se o foco da atenção permanentemente. Presidente e humorista confundem-se, são a mesma coisa. Civilidade, liturgia do cargo, tudo isso é a "velha política" das instituições. Aqui, o que importa é performance, espetáculo e mobilização online.
Contra o "establishment", contra o "sistema". Não foi essa a mensagem recente quando confrontou os jornalistas com um humorista o interpretando ao mesmo tempo?
O momento em que o chefe de Estado presta contas ao cidadão normalmente era mediado pelo discurso sério e pesado, denso, em que cada palavra tem um peso gigante. Agora, que peso tem uma palavra? Não importa. Tudo é leve, meio piada, meio sério – a tática é nunca permitir ao interlocutor ter certeza sobre a natureza da performance.
É nesse mundo das nuvens que nossa política tem se passado. O Diário Oficial e a prestação de contas pelos velhos mediadores da imprensa tradicional são trocados pelo Twitter e lives no Facebook.
Mas eis que surge um intrometido para perturbar a festa: o Covid-19. Lembrando sua total indiferença às questões humanas, às performances e aos cargos, o vírus simplesmente invadiu a redoma de proteção presidencial e passou a contaminar sua equipe. O próprio presidente passou a ter suspeita.
A famosa imagem dos "dois corpos do rei", em que um deles é sacralizado e distinto do corpo material – e hoje está nos ambientes das plataformas a partir dos avatares presidenciais – , vê-se forçada a responder diante da vulnerabilidade do corpo físico.
O que parecia ser blindado contra o mundo real, deslocado que estava para o nevoeiro das plataformas, passa agora a se tornar frágil, passível de ser atingido por uma força indiferente a quem está atingindo, ao cargo, ao discurso, aos likes, às hashtags.
Um discurso que se associa – ou pelo menos não se separa – a noções bizarras como o terraplanismo acaba sendo perturbado pela materialidade do mundo. De repente, um fenômeno não humano acorda o sujeito que estava no mundo das nuvens para a vida real.
Só o tempo dirá os efeitos que isso produzirá, mas é impossível não sentir o golpe. O Covid-19 é um choque de realidade que, como corpo invasor, traumatiza quem o sofre, produzindo uma desestabilização de toda ordem – ou mesmo da maneira como estava sendo gerido o caos, para ser mais específico – que antes estava em vigor. Nada poderá continuar igual ao que estava.
O Covid-19 é um lembrete de que o mundo real existe e, por mais que a hiperconectividade tenha nos levado ao mundo das nuvens, ainda temos um corpo e por isso somos vulneráveis.
* Moysés Pinto Neto é doutor em Filosofia pela PUC-RS e professor da Universidade Luterana do Brasil.
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