Mandetta era quem domava a natureza do bolsonarismo
Entendendo Bolsonaro
16/04/2020 18h11
O agora ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (Crédito: Pablo Jacob/Agência O Globo)
[RESUMO] A saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde conduz o bolsonarismo de volta à sua natureza, a da marcha constante. Sem o ex-ministro, quem conectava Bolsonaro à emergência do agora, retoma-se o único horizonte possível, o pós-pandemia, de maneira que "resolver a questão da saúde" é superar obstáculo. Mantém-se a caminhada, "toca-se o barco", afinal, "vai morrer gente".
* Rafael Burgos
"Pessoal, estou fazendo a minha parte (…) Resolveremos a questão da saúde no Brasil para tocar o barco".
No discurso político, uma simples escolha de metáforas é capaz de jogar luz sobre todo um mar de pressupostos.
As palavras acima foram ditas pelo presidente Jair Bolsonaro ao acalentar apoiadores em Brasília na última quarta (15), um dia antes de anunciar a demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde.
Mundo afora, líderes democráticos, como não poderia ser diferente, enfrentam a pandemia com o objetivo de salvar vidas. Este é – ou deveria ser – o nosso horizonte. Uma emergência pede, antes de tudo, interrupção da caminhada.
No Brasil, entretanto, há algo de excepcional que nos acomete, que nos envenena. A metáfora do barco é elucidativa de como o bolsonarismo – a sua natureza – é movimento. Força de destruição, não poderá compreender o imperativo de uma pandemia, enfermidade que conduz à preservação, um freio cuja aceitação implica resignar-se no agora.
"Vai morrer gente", palavras do líder. Morreram. 1924 brasileiros, até a última atualização. E seguem morrendo. Porém, tragédia nossa, morte é aqui obstáculo, pedra no sapato que nos impede de "tocar o barco". De preferência, rumo a um tempo quando da morte não se seguia o espanto.
É precisamente esse imaginário, componente da linguagem reacionária, que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) acessa em "Retrotopia", última obra escrita pelo falecido autor.
"De volta a Hobbes?", pergunta Bauman no capítulo inicial, respondido em suas últimas linhas em resposta afirmativa. A batalha contra a pandemia é acessória para quem o imperativo categórico é o retorno ao instinto, o estado de natureza descrito por Thomas Hobbes (1588-1679) como aquele em que o homem é o lobo do homem, cenário no qual o imaginário bolsonarista projeta a sonhada "liberação".
Se não ficou claro o parágrafo anterior, melhor ouvir o próprio presidente: "A primeira pessoa que tem que se preocupar com o grupo de risco é você, que tem o pai, a mãe e o avô dentro de casa. Não é esperar que o governo faça alguma coisa. O governo está fazendo, mas não pode fazer tudo que acham que o Estado tem que fazer", disse Bolsonaro, em live do dia 26 de março.
Aliado de seu instinto, Bolsonaro revela-se um líder para quem "resolver a questão da saúde" é mero instrumento, um passo em direção à retomada. A demissão – o expurgo – de Luiz Henrique Mandetta é ato de defesa, de retorno, sobrevida identitária para quem qualquer fuga do horizonte possível – o pós-pandemia – é ameaça.
O que conversei com o dr. Nelson é que temos que abrir o emprego no Brasil gradativamente. Essa massa de humildes não tem como ficar preso em casa. E pior, quando voltar, não tem emprego
Jair Bolsonaro
Trata-se de um devaneio. A superação da Covid-19, a "volta à normalidade", não ocorrerá tão cedo. A revista Science, prestigiada publicação internacional, já considera a hipótese de algum tipo de isolamento social até 2022.
Mas pouco importa. Enquanto os corpos se acumulam e o vírus avança, Bolsonaro respira. Sem Mandetta, elimina-se um obstáculo.
Porque o importante, para o bolsonarismo, é manter a caminhada. É a sua natureza. Entre negá-la e seguir rumo a um futuro que se sabe farsa, ele não hesitará em escolher a segunda opção.
* Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".
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