Reunião ministerial é teste de fidelidade a líder narcisista
Entendendo Bolsonaro
23/05/2020 04h03
(Crédito: Marcos Corrêa/PR)
[RESUMO] A reunião ministerial de 22 de abril pouco revela de novo sobre quem é Jair Bolsonaro. O vídeo, contudo, é importante para mostrar o alcance da paranóia presidencial sobre os seus ministros. O tom de palanque do encontro demonstra como, sob a liderança de um narcisista, reuniões internas transformam-se num permanente teste de fidelidade, no caso, um concurso para eleger o ministro mais fiel às tentações autoritárias do Planalto.
* Rafael Burgos
Desde que deixou o governo em fevereiro de 2019 até os seus últimos dias de vida, o ex-ministro Gustavo Bebianno, coordenador da campanha de Bolsonaro à Presidência, sempre foi uma voz importante a apontar, em entrevistas na imprensa, o perigo da personalidade narcisista de Jair Bolsonaro – um presidente desconfiado de tudo e de todos, menos do seu círculo familiar.
Bebianno, morto em razão de um infarto fulminante em março deste ano, não poderá comentar o vídeo da reunião ministerial divulgado na sexta (22). O conteúdo do encontro, contudo, confere uma imagem importante à tese sustentada pelo ex-ministro: o governo Bolsonaro está erguido sobre um chão de paranóia, e o vídeo é cristalino ao revelar o alcance da paranóia presidencial sobre os demais ministros de Estado.
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De Damares a Weintraub, passando por Ricardo Salles ou mesmo Paulo Guedes, as intervenções são sugestivas de um tom muito particular para uma reunião governamental: os ministros – como reação ao presidente – parecem discursar em palanques eleitorais, numa gramática muito parecida com a das redes sociais.
No próprio debate das redes, surgiram teses sugerindo ser a reunião uma espécie de armadilha, já que o discurso propriamente eleitoreiro e populista revelaria um plano premeditado para provocar a quebra de sigilo.
Ocorre que há razão para que, espontaneamente, a reunião fosse um palanque, e este é um ponto-chave para compreender a dinâmica interna do governo Bolsonaro: a natureza centralizadora e paranóica do líder narcisista encurrala os ministros ali presentes. Se há uma palavra que descreve o ambiente da reunião, esta palavra é desconfiança.
Nesse sentido, chama atenção o discurso de Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional, um dos primeiros a falar na reunião. Único de retórica insurgente na sala, antevendo movimentos, Marinho parecia fazer uma censura prévia ao tom que seria predominante entre os seus pares."Vou partir do princípio de que todos que estão aqui são bem intencionados e querem o bem do Brasil. Não acredito em teoria da conspiração nem que ninguém quer solapar os alicerces da República nem abalar a administração do presidente Bolsonaro, pelo contrário".
O programa de governo em discussão ali não era como salvar vidas numa pandemia – assunto totalmente desprezado – ou como estruturar uma resposta organizada e harmônica à crise – o que se espera de qualquer governo numa situação de emergência. Ao contrário, a agenda da reunião do dia 22 tratava de como ser fiel a Jair Bolsonaro.
O tom era resposta aos 15 minutos de intervenção do presidente, voltada, basicamente, a emparedar os seus ministros, cobrando radicalidade no enfrentamento dos demais Poderes e na abordagem à imprensa.
Vamos ter que reagir, pessoal! É outra briga. Tem que ser um governo com altivez. Se expor, mostrar que nós temos o povo do nosso lado, que nós somos submissos ao povo.
Jair Bolsonaro
O que o vídeo escancara de mais grave sobre a paranóia bolsonarista é que ela não se manifesta somente em direção aos outros Poderes, ou àqueles considerados "inimigos" do presidente.
O chão de desconfiança próprio em que opera o líder narcisista, o vídeo comprova, está na essência do relacionamento entre os próprios membros do governo, cenário provocado deliberadamente pelo presidente como um método de testar a fidelidade de seus ministros.
E, com exceção de Rogério Marinho, que parecia um estranho naquela sala, todos se saíram bem. Desde prender prefeitos, governadores e ministros do STF a "passar a boiada" sobre a proteção ambiental, não faltaram provas de radicalidade para, sob ameaça, prestar contas ao líder.
* Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".
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