Trinca de ouro do populismo entra no clube do milhão da covid-19
Entendendo Bolsonaro
18/07/2020 00h00
Bolsonaro e Modi, na foto, ao lado de Trump, formam a trinca do populismo de direita global, agora na liderança do ranking de contaminados pela covid (Crédito: Mikhail Klimentyev/AFP)
* Vinícius Rodrigues Vieira
Ontem (17), a Índia se juntou a Estados Unidos e Brasil no topo do nada abonador ranking global de casos de covid-19, após superar a marca de 1 milhão de infectados. Os três páises figuram entre os mais populosos do mundo, mas com uma peculiaridade: estão sob governos que, em maior ou menor grau, celebram traços essenciais do populismo e do nacionalismo de direita, nas figuras do presidente americano Donald Trump, do presidente brasileiro Jair Bolsonaro e do primeiro-ministro indiano Narendra Modi.
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Seria desonestidade intelectual atribuir os males da covid-19 nesses três países apenas aos governos de plantão. Do mesmo modo, incorreríamos em pecado similar caso limpássemos a barra do trio MTB – nessa sequência de iniciais para fazer jus à longevidade da trinca de ouro do populismo global no poder.
Modi ingressou no cargo em 2014 e já ganhou uma reeleição, enquanto Trump se elegeu em 2016 e luta desesperadamente para continuar na Casa Branca apesar de sua presidência caótica. Já Bolsonaro ainda não sabe se terá condições de chegar politicamente vivo a 2022.
O trio MTB arvora-se em supostas soluções milagrosas para defender tratamentos bizarros contra a "gripezinha", na definição de Bolsonaro. Modi defendeu em junho a prática de yoga para combater a doença, já que a tradição milenar indiana aumentaria a imunidade. Trump foi mais radical e sugeriu que injetar desinfetante nas veias mataria o vírus. Bolsonaro continua sendo um ardoroso defensor da cloroquina, cuja eficácia já foi rejeitada por testes rigorosos.
O milagre da covid, se existe, é uma questão de fé pessoal – jamais deveria ser defendido como política pública. Porém, a religião ocupa um lugar privilegiado na plataforma política de cada um dos MTBs. Modi encarna o nacionalismo hindu, que coloca no centro da Índia moderna as tradições que, como a yoga, estão associadas a essa civilização, relegando a segundo plano outras contribuições para a formação de seu país, notadamente aquelas providas pelo islamismo.
Trump, por sua vez, fez uma aliança informal com evangélicos, sobretudo do Sul americano, hoje o epicentro da pandemia nos EUA. Partes da região são conhecidas como bible belt – ou seja, o cinturão da Bíblia, numa alusão à religiosidade que, embora devesse ser privada, transborda para o espaço público.
Tal como em outras dimensões políticas, Bolsonaro copiou Trump nessa seara, alinhando-se a pastores evangélicos, muito embora não tenha tido uma vida muito regrada, à semelhança de seu colega e ídolo americano.
Dos três, Modi é o que menos pode ser responsabilizado pelo caos que avança sobre seus respectivos países. A Índia disputa pau-a-pau com a vizinha e cada vez mais distante China o status de país mais populoso do mundo -ambos são as únicas nações com mais de 1 bilhão de habitantes.
Porém, tamanho não é documento quando se trata de entender o alcance da pandemia. Fatores como concentração demográfica importam na transmissão do vírus. Com base nesse critério, porém, a Índia deveria estar numa situação pior. Enquanto o Brasil soma 23 habitantes por quilômetro quadrado, nos EUA esse índice chega 33,75, contra impressionantes 328 da Índia .
Ademais, a resistência da população às medidas de isolamento nesses países foi maior que, por exemplo, na Europa Ocidental e nos estados desenvolvimentistas – muito embora majoritariamente autoritários – do Leste Asiático, como China, Coreia do Sul e Vietnã. Esses dois grupos de países têm relações de trabalho mais formalizadas e redes de proteção social mais robustas que as nações governadas pela trinca MTB.
Enquanto Brasil e Índia têm uma proporção de informais superior a 50%, nos EUA os direitos trabalhistas são rarefeitos, não havendo legislação nacional sobre licença-maternidade e férias, por exemplo. Diferentemente de Índia e EUA, porém, o Brasil conta com o SUS, sistema de saúde claramente inspirado na lógica do Estado de bem-estar europeu, particularmente o caso do Reino Unido e seu também universal Sistema Nacional de Saúde (NHS).
O trio de ouro, aliás, poderia ser um quarteto se consideramos que, no ranking de mortes, não a Índia de Modi, mas o Reino Unido do também populista de direita Boris Johnson ocupa a terceira posição.
Todos os membros da trinca de ouro do populismo de direita têm, de acordo com as melhores informações disponíveis, baixo índice de testagem. No Brasil e nos EUA, isso é agravado pela ausência de coordenação em escala nacional, enquanto na Índia, depois de um lockdown caótico entre abril e junho, o equivalente ao governo federal relaxou as restrições, delegando aos Estados a decisão sobre restrição à circulação.
O trio MTB poderia pedir música no Fantástico para celebrar essa "conquista" do populismo de direita. Afinal, uma mesma corrente política liderar, em países distintos, tamanho desastre é para poucos. Bolsonaro poderia pedir para tocarem na sanfona "We are the Champions" em sua próxima live, chamando via teleconferência seus colegas desde Nova Déli e Washington.
Isso porque, para quem quis homenagear as vítimas da covid-19 vandalizando a Ave Maria de Gounod, todo respeito ao bom gosto e, sobretudo, a famílias enlutadas de nada vale perante o fanatismo e a busca do poder pela destruição que reside no âmago do populismo nacionalista de direita do século 21.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV
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