Contra o racismo de Trump, Biden oferece união em vez de identitarismo
Entendendo Bolsonaro
06/10/2020 08h53
O candidato democrata Joe Biden, em debate presidencial da última terça (29) (Crédito: Jim Watson/AFP).
* Bruno Frederico Müller
A primeira pesquisa de intenção de votos após o debate da semana passada entre Donald Trump e Joe Biden trouxe sinais animadores para o desafiante democrata à Casa Branca. A diferença de 14 pontos (53% x 39%), registrada pela NCB e pelo Wall Street Journal, coroa a péssima postura do presidente naquele que foi o pior debate presidencial da história americana.
À medida que a corrida eleitoral afunila, comentaristas chamam atenção, com cautela, para as possibilidades eleitorais de Trump, afinal, em 2016, o então candidato saiu vencedor mesmo sem alcançar uma maioria de votos. Chamam atenção, também, para similaridades entre as pesquisas, que, à época, mostravam vantagem para a democrata Hillary Clinton.
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Biden e Hillary têm muito em comum, é verdade. Ambos serviram ao governo Obama em cargos-chave: ela, secretária de Estado (equivalente ao nosso ministro das Relações Exteriores), ele como vice-presidente. Ambos são mais ou menos da mesma geração (Biden um pouco mais velho), e têm os mesmos pontos fracos: próximos demais de Wall Street e das grandes corporações para quem se diz parte de um partido que representa os interesses do povo; ambos apoiaram o impopular NAFTA, Acordo de Livre Comércio da América do Norte, que destruiu empregos, e a política de encarceramento em massa do governo Bill Clinton (1993-2001) – cuja lei foi redigida por Biden. Na gestão G. W. Bush (2001-2009), os dois votaram a favor da Guerra do Iraque e da Lei Patriota, que limitou os direitos civis americanos. Nenhum dos dois representa de fato a ala esquerda do Partido Democrata.
Em 2016, Hillary tentou compensar as limitações de seu histórico com um discurso vago de união, voltado especialmente às minorias, e um apelo à emoção baseado fundamentalmente na ideia dela se tornar a primeira presidente mulher, e denunciando os apoiadores de Donald Trump como um "cesto de deploráveis" – dentro deste cesto, além dos conservadores e racistas tradicionais, havia uma multidão de trabalhadores brancos de baixa renda, tradicionalmente democratas, que votaram em massa em Barack Obama em 2008 e 2012, mas foram alienados do partido por duas razões: a etiqueta de representante do povo não colava mais numa agremiação que presidiu a desindustrialização do Meio-Oeste, gerando desemprego e empobrecimento dos trabalhadores de segundo setor, sem qualquer plano de recuperação da economia da região.
Além disso, Clinton e os democratas tomaram como certo que esses trabalhadores brancos empobrecidos votariam com ela por lealdade ou intimidação – para não ficarem para sempre marcados como incorrigíveis homens brancos, machistas, racistas e privilegiados, não importando o quão difícil fosse sua vida.
Trump farejou a oportunidade e, prometendo empregos e o fim da exportação de indústrias para a China, conquistou três tradicionais estados democratas – Pensilvânia, Michigan e Wisconsin. E, com eles, ganhou a eleição. Se os democratas tivessem retido ao menos dois destes estados, Trump teria sido relegado pela eternidade ao mundo da sátira em que sempre viveu, em vez de se tornar a maior ameaça à democracia americana, que somente se tornou plena com o fim da segregação racial nos anos 1960.
Mas destaco, aqui, uma diferença fundamental entre Biden e Hillary: o que o ex-vice-presidente apresentou no debate da semana passada, o primeiro da corrida presidencial americana, foi outra estratégia. Ao contrário da belicista lacradora Hillary Clinton, Biden manteve o discurso identitário sob controle. De fato, é importante diferenciar o identitarismo – que foi o discurso fragmentário, divisivo e vazio de conteúdo que Clinton usou para conquistar a simpatia das minorias, com o efeito colateral de afastar o eleitorado branco empobrecido – e a denúncia do racismo que se tornou explícito e potencialmente violento na Era Trump.
O racismo existe independente do identitarismo, que é uma forma estúpida de combatê-lo (assim como a outras formas de discriminação), e Biden não se furtou de denunciá-lo nos termos mais duros, dizendo claramente que Trump incita o racismo e dá respaldo aos supremacistas brancos. Mas o candidato desafiante não parou por aí.
Consciente ou intuitivamente, mostrou que se pode denunciar e combater o preconceito de forma mais eficaz. E justamente quando o extremismo de direita torna o preconceito mais forte e visível, e as minorias mais vulneráveis, Biden, em vez de simplesmente denunciar o racismo da América de Trump, também destacou que os subúrbios são hoje mais diversos e multiétnicos do que jamais foram; alertou para o perigo que tanto Trump quanto sua política negacionista, que agrada apenas à sua plateia de extrema-direita, apresentam para a democracia americana, a saúde pública e o clima global.
Diferente de Clinton, que não tinha um programa de governo para dar robustez às suas palavras de ordem, Biden tenta equilibrar-se entre seu histórico de centro-direita e as ousadas propostas do senador Bernie Sanders – no meio ambiente, defendeu o retorno ao Acordo de Paris e uma proposta não detalhada de migração para uma economia verde, ressaltando que ela não é apenas ecológica, mas criadora de empregos; no campo econômico, defendeu o fim dos cortes de impostos para ricos que marcaram o governo Trump e, ao invés disso "investir em quem realmente precisa"; no campo da saúde, defendeu a expansão do "Obamacare" (nome pejorativo criado pelos republicanos para o plano de saúde privado criado por Barack Obama) com a inclusão de uma opção pública para quem não pode pagar pelo seguro.
Desse modo, Biden mostrou a disposição de, em vez de uma coalizão de minorias que, propositadamente ou não, hierarquiza e aliena os eleitores com base em sua cor e sexo, investir numa coalizão de apelo a todos os americanos – uma união não só das sobreditas minorias, mas da esquerda, dos moderados e dos independentes. Uma coalizão popular e democrática contra um protoditador abertamente racista, aliado de supremacistas brancos e com inclinações fascistas, para resgatar a democracia americana e, talvez, reformá-la. Justamente o oposto do que dita a intuição identitária.
O identitarismo, que se transformou nos últimos anos na face do progressismo, é afinal uma ideologia que, ao enxergar apenas grupos em vez de indivíduos, e dividi-los entre oprimidos e opressores, sem tons de cinza, apaga as diferenças intragrupos (tornando "traidoras" as vozes dissidentes dos grupos oprimidos), magnifica as diferenças intergrupos (dificultando bastante o diálogo entre os grupos "oprimidos" e os setores desfavorecidos dos grupos tidos como homogeneamente opressores). Isso gera mal-entendidos, divisão, desunião e muita injustiça.
O identitarismo está mais preocupado em ter uma mulher na Casa Branca, em vez de um programa de reformas sociais; em ter uma negra na Casa Real britânica, em vez de questionar a instituição da monarquia; em ter mais CEOs mulheres em vez de discutir os supersalários dos executivos.
E é justamente por isso que, sobrigado sua retórica radical, ele se ajustou tão bem à ala predominante do Partido Democrata, de direita liberal. Mais estranho de entender é a forma acrítica com que foi recebida em outros cantos do mundo, como na esquerda brasileira, tendo sempre o mesmo efeito: mascarar políticas do status quo com uma retórica radical.
Cabe, enfim, questionar se o identitarismo – com essa visão de mundo tribal, que, sob o véu da defesa das minorias, cala a divergência intragrupos, abrindo margem às opressões que diz combater, e atira grupos supostamente homogêneos uns contra os outros, anti-iluminista por definição – pode realmente reclamar sua posição dentro da história dos movimentos por justiça, progresso e igualdade – além de ser, do ponto de vista estratégico, pouco confiável para disputas eleitorais, para se dizer o mínimo.
Duas questões sobram dessa análise: uma coisa é prometer reformas, outra é promovê-las. Para isso, além da boa vontade do próprio Biden de transformar em realidade aquilo que prometeu, o Congresso americano precisará de uma maioria democrata disposta, e as ruas precisarão estar mobilizadas para cobrar as promessas do candidato, se eleito.
A segunda questão é: Biden sinaliza que, nessa era de identitarismo versus extremismo (inclusive na sua faceta de discriminação racial, de gênero, sexualidade etc.), é possível combater o segundo sem rebaixar-se ao primeiro.
Assim sendo, e sem nenhuma ilusão excessiva com uma figura da velha guarda da centro-direita democrata, será interessante de se avaliar qual será o futuro para o identitarismo como ideologia hegemônica do dito campo progressista, caso Biden seja eleito e assuma seus compromissos de campanha e abra a mesa de negociações com a esquerda reformista a partir de bases programáticas – reforma do sistema de saúde, combate às desigualdades e às mudanças climáticas – em vez de identitárias.
* Bruno Frederico Müller é doutor em História pela UERJ, escritor e tradutor.
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