Vitória de Biden não seria o fim do bolsonarismo
Entendendo Bolsonaro
02/11/2020 23h53
O presidenciável Joe Biden. Num eventual governo democrata, o bolsonarismo somente encontrará a ruína se ele próprio não se dispuser a negociar (Crédito: Kevin Lamarque/Reuters).
* Raphael Tsavkko Garcia
Não é de hoje que se debate na ciência política (e nas relações internacionais) se presidentes democratas ou republicanos seriam melhores (ou piores) para o Brasil. Democratas tendem a ser mais intervencionistas, fazer mais exigências, "marcar em cima", o que acaba colocando um peso maior na relação com outros países (e o Brasil). Republicanos, em geral, tendem a ser mais isolacionistas ou ao menos serem menos exigentes em questões como regras ambientais.
Não resta dúvida que, apesar de toda a história do relacionamento do Brasil com os EUA sob presidentes republicanos ou democratas, a atual situação, na véspera das eleições presidenciais, é única.
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Num interessante artigo para este blog, o professor Vinícius Rodrigues Vieira aponta sem meias palavras que "a eleição americana decretará o fim do bolsonarismo ou do Brasil". Em uma primeira leitura minha reação foi de imediata concordância, mas, passados os minutos e horas, comecei a pensar que as coisas talvez não sejam tão simples assim. A esperança de muitos é que uma vitória de Biden naufrague o bolsonarismo, o isole internacionalmente (mais do que atualmente), ao passo que uma vitória do Trump significaria o possível fim do Brasil no longo prazo. Acredito que são visões excessivamente otimistas.
Não tenho a intenção de me concentrar na possível vitória de Trump, mas sim numa possível vitória de Biden. Sou forçado a discordar da análise de vários colegas que enxergam em Biden uma alternativa tamanha, que se colocaria quase como oposto de Trump. Nada poderia estar mais longe da verdade. Biden é a face mais visível do establishment democrata, seu discurso ambientalista, pró-direitos humanos não passa de retórica vazia. Sem dúvida um governo Biden pressionaria por uma agenda mais progressista que Trump, mas o atual presidente representa um extremo onde cabe pouca comparação. Republicanos e democratas diferem muito pouco em questões centrais de política externa, então é possível pensar que uma vitória do Biden traria alguns ajustes, mas nada muito significativo.
É impensável uma ruptura de relações ou mesmo ações mais pesadas como as da União Europeia implodindo um acordo com o Mercosul por causa da Amazônia. Um governo Biden seria muito mais pragmático do que se quer mostrar. Uma pressão aqui, outra ali, mas dificilmente haveria a ruptura que muitos esperam. O candidato democrata não tem qualquer interesse em fechar as portas para o Brasil, com ou sem Bolsonaro. Em meio aos debates para a implantação do 5G e os conflitos dos EUA com a China, o mercado brasileiro é atraente demais para que questões pontuais (sic) como meio ambiente e direitos humanos fiquem na frente dos interesses comerciais de empresas americanas.
Seria inédito, senão até risível, imaginar os EUA colocando qualquer tema relativo aos direitos humanos na frente de seus interesses comerciais imediatos. Biden jamais permitiria que o Brasil caísse no colo da China, ou mesmo jamais abriria mão de um mercado como o nosso – e do seu histórico quintal. Não é apenas uma questão econômica, mas também histórica e cultural e, acima de tudo, de dominação e controle desde a Doutrina Monroe, ainda no século XIX.
Uma vitória de Biden possivelmente seria melhor para o Brasil (não necessariamente para Bolsonaro), poderia forçar alguns ajustes na agenda brasileira, mas dificilmente faria muita diferença na política interna brasileira ou mesmo seria o fim do mundo para Bolsonaro, como apostam alguns analistas. O fato é que tudo não passa de um exercício de futurologia em que uma das peças é um bobo da corte cujas ações são imprevisíveis. O futuro das relações entre Brasil e EUA, seja sob Biden ou sob Trump, depende menos dos EUA e mais da vontade e do humor do presidente brasileiro.
Sempre é bom lembrar que, apesar das aparentes boas relações de Bolsonaro com Trump, o Brasil tem sofrido inúmeras derrotas comerciais e diplomáticas (em certa medida, como parte de um plano de Bolsonaro para ajudar seu aliado na reeleição, o que por si só já mereceria um impeachment, mas o Centrão ainda não sangrou Bolsonaro o suficiente para partir pra outra), ou seja, o relacionamento "preferencial" do Brasil com os EUA nos trouxe pouco ou nada até o momento. Politicamente é importante para Bolsonaro, mas dificilmente veríamos uma guinada muito significativa com Biden na presidência.
A ideia de que Biden isolaria Bolsonaro me parece completamente deslocada da realidade e apenas wishful thinking com base em uma visão enviesada e completamente equivocada de Biden, dos democratas e da política externa americana como um todo – que jamais foi pautada pelos direitos humanos e sim pelos interesses econômicos do país.
Uma vitória do ex-vice-presidente no máximo causaria uma pequena rachadura no discurso bolsonarista, que perderia um aliado cuja imagem é de grande importância para o imaginário dos apoiadores do presidente brasileiro. Como Vieira mesmo aponta, a política externa brasileira não é tratada como instrumento de Estado, mas operada para maximizar ganhos políticos (não necessariamente econômicos) do bolsonarismo, um instrumento de propaganda e ideologia.
Do lado dos EUA, qual seria o interesse em isolar Bolsonaro e o Brasil? Que ganhos tal medida traria à economia do país? Politicamente o Brasil não é tão relevante quanto pensamos e a retórica de "dar uma lição na extrema direita" dificilmente seria entendida por lá. Parece que as análises sobre o futuro das relações entre Brasil e EUA passam pelo campo moral, de interesses difusos e de uma suposta boa vontade de Biden contra a extrema direita. Não há, infelizmente, qualquer substância nessas análises.
Os EUA têm total interesse em seguir mantendo a Venezuela em cheque, têm total interesse em evitar que a China amplie a presença no seu quintal histórico e têm total interesse em manter o comércio com o Brasil e em ser a escolha para a implantação do 5G no país, ou seja, não há nenhum cenário em que os EUA romperiam relações, isolariam o Brasil ou iriam para além da retórica. Claro, tudo depende também da resposta da diplomacia brasileira após uma possível vitória de Biden. É possível que o Brasil tome medidas para se afastar dos EUA de maneira mais rápida e consistente do que Washington.
Nesse momento, é mais fácil imaginar um cenário em que a diplomacia brasileira prejudique as relações do país com os EUA do que o contrário – uma ação supostamente altruísta de Biden, em defesa da Amazônia ou contra o fascismo. E o bolsonarismo, sabemos, tem total capacidade de fazer inimigos e se isolar politicamente. O cenário apocalíptico-venezuelano que muito se aponta pode efetivamente chegar ao Brasil, mas muito mais pela pandemia e especialmente pela incapacidade de Bolsonaro de governar e de saber o que está fazendo do que como resultado das eleições americanas.
* Raphael Tsavkko Garcia é jornalista e doutor em direitos humanos pela Universidade de Deusto. Contribuiu para veículos como Foreign Policy, Undark, The Washington Post, Deutsche Welle, entre outros.
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