Bolsonaro tentará emular Trump, mas Brasil tem suas vacinas
Entendendo Bolsonaro
10/01/2021 22h44
(Crédito: Adriano Machado/Reuters)
* Vitor Marchetti
Não é novidade que Bolsonaro compartilha do mesmo método de Donald Trump para vencer eleições e governar. Um dos eixos fundamentais desse método é deslegitimar e lançar toda a sorte de dúvidas sobre as instituições do país. Faz anos que o presidente norte-americano acusa o sistema eleitoral dos Estados Unidos de fraudar os resultados eleitorais. Seu mais ferrenho seguidor dentre as lideranças mundiais age igual por aqui, mesmo tendo sido eleito sete vezes deputado federal e vencido a última eleição presidencial.
É importante, porém, marcarmos algumas diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos antes de afirmarmos que o mesmo que ocorreu por lá ocorrerá por aqui. Ou, pelo menos, cabe avaliarmos as vacinas disponíveis por aqui contra o espírito antidemocrático do presidente.
1) Governança eleitoral: a democracia norte-americana não conta com instituições nacionais consolidadas para organizar e gerir as suas eleições. Este fato passou incólume pelos últimos séculos, mas, desde pelo menos as eleições de 2000, quando Bush foi derrotado em número de votos e a eleição foi decidida pela Suprema Corte em razão dos litígios na contagem de votos na Flórida, o debate cresceu e ganhou bastante espaço entre especialistas e acadêmicos.
Com todos os defeitos que a governança eleitoral brasileira possa ter, uma de suas virtudes é a de garantir uma gestão bastante eficiente das eleições, reduzindo e muito qualquer margem de questionamento sério sobre os resultados eleitorais. O mesmo não pode ser dito sobre os EUA, onde a ausência de coordenação nacional e as idiossincrasias regionais abrem brechas bastante preocupantes para o questionamento dos resultados.
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2) Sistema eleitoral: o sistema de eleição indireta do presidente, por meio de um Colégio Eleitoral, torna o modelo norte-americano único no mundo. Aquele que poderia ser considerado um grande símbolo do seu pacto federativo e de como operam as históricas relações entre os governos regionais e o governo central tem produzido grandes distorções.
Em primeiro lugar, porque abre a possibilidade do presidente ser eleito apesar de receber menos votos (para se ter uma ideia, apenas cinco presidentes foram eleitos nessas condições ao longo de toda a história, três no século XIX, mas dois bastante recentes, 2000 e 2016). Em segundo lugar, o sistema acaba supervalorizando os resultados regionais, uma vez que o vencedor leva todos os delegados no Estado, mas não define nenhum critério nacional comum para a realização dessas eleições. Daí que derivam calendários e métodos distintos e desencontrados, gerando toda forma de se computar o voto que a criatividade humana é capaz de produzir.
No caso brasileiro, além da bem-sucedida experiência da urna eletrônica, temos uma governança eleitoral que garante a padronização do voto em todo o território. Além disso, o sistema majoritário em dois turnos com voto em uma única chapa tem conferido racionalidade e legitimidade ao sistema. Muito maior, inclusive, do que já praticamos por aqui entre 1946 e 1964, quando não havia a obrigatoriedade do voto em chapas (o eleitor poderia votar em um candidato de determinado partido para a presidência e um candidato de partido rival para vice-presidente) e quando era preciso formar apenas maioria relativa dos votos para ser eleito.
3) Suporte no Parlamento: a força do sistema partidário norte-americano possibilitou que Trump constituísse bom suporte no Parlamento. Mesmo nesse momento em que radicalizou sua posição, conseguiu a adesão de mais de uma centena de deputados e uma dezena de senadores. Ademais, pôde se manter no mandato por todo esse tempo contando com uma base sólida no Congresso.
Por aqui, a grande fragmentação do sistema partidário e a baixa organicidade do bolsonarismo oferecem obstáculos importantes para a concentração de poderes no presidente e forçam aberturas de negociação com o Legislativo. Por isso, é tão importante a próxima eleição das presidências das casas. Um presidente da Câmara não alinhado a Bolsonaro pode ser uma barreira institucional decisiva ao espírito autoritário do presidente.
4) Força dos mecanismos nacionais de controle: há anos debatemos as consequências do ativismo exacerbado de nossos órgãos de controle democrático. Do ativismo dos ministros do Supremo Tribunal Federal ao voluntarismo dos procuradores do Ministério Público, as últimas décadas da política brasileira foram marcadas por um deslocamento excessivo das arenas decisórias tradicionais da política para novas arenas, fundamentalmente as judiciais.
Independente do diagnóstico acerca dos efeitos desse fenômeno sobre a qualidade da democracia brasileira, foi por meio desses órgãos e de seus altos graus de autonomia que se constituíram freios ao espírito autoritário e golpista de Bolsonaro, de seus filhos e de seus seguidores. O inquérito das fake news no STF e dos disparos em massa no TSE são bons exemplos disso. Não há qualquer razão para acreditar que estes órgãos possam aderir de modo coeso a uma aventura golpista do bolsonarismo, muito menos que possam ser solapados passivamente por uma frente golpista (ao menos do que podemos ver hoje).
5) Base social: exatamente por causa da atuação desses mecanismos de controle, algumas lideranças autoritárias foram confrontadas até aqui. Há diversos casos de prisões, dissolução de redes de movimentos antidemocráticos e outros que preferiram pelo autoexílio. Claro que Bolsonaro conta com a simpatia e a adesão de parcela significativa dos membros de forças policiais regionais, mas, sozinhas, elas não são capazes de consumar um golpe. Para tanto, seria necessário que as Forças Armadas do país as endossassem, e há boas razões para afirmarmos que não há espaço para uma ruptura democrática aos moldes de 1964.
Certamente, Bolsonaro tentará emular Trump, mas o Brasil dispõe de boas vacinas para combater esse mal. Seja pela medicina tradicional, por meio de regras eleitorais sólidas e uma governança eleitoral consolidada, seja pela medicina experimental (que nem sempre gera bons resultados, mas que pode ser aplicada para quadros atípicos), por meio da hipertrofia e da grande autonomia dos órgãos nacionais de controle, além de um sistema partidário altamente fragmentado que acaba por propiciar fortes medidas contramajoritárias.
* Vitor Marchetti é cientista político e professor do Bacharelado e da Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC)
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