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Entendendo Bolsonaro

Popular entre os pobres, Damares é produto de uma democracia débil

Entendendo Bolsonaro

19/12/2019 09h21

(Crédito: AFP)

[RESUMO] A última pesquisa Datafolha revelou um dado curioso: enquanto a popularidade de Bolsonaro e de seus ministros permanece maior entre a população mais rica, Damares Alves, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, destoa ao aparecer com uma melhor avaliação entre os mais pobres. Estrela da guerra cultural bolsonarista, a ministra é hábil ao manipular a fé como oferta de segurança a cidadãos desencantados e desamparados por uma democracia ainda débil.

*Clóvis Gruner

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, é a única, entre sete ministros avaliados em pesquisa do Datafolha, que recebeu uma avaliação maior entre os mais pobres do que entre os mais ricos. Apenas 39% entre os que têm renda familiar acima de dez salários mínimos consideram sua gestão como "ótima" ou "boa", contra 43% e 42% com renda entre dois a dez salários e com menos de dois salários mínimos, respectivamente.

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A título de comparação, a pirâmide se inverte no caso das duas principais estrelas da constelação bolsonarista, os ministros da Justiça, Sérgio Moro, e da Economia, Paulo Guedes. O primeiro é aprovado por 73% dos entrevistados com renda familiar superior a dez salários mínimos, 56% na camada com renda de dois a cinco, e cai para 46% junto aos entrevistados que recebem até dois salários mínimos de renda familiar.

Situação similar à de Paulo Guedes, que é aprovadíssimo pelas camadas mais altas (58% dos que dizem ter renda familiar superior a dez salários e 53% entre cinco e dez), cai para 42% dentre quem recebe entre dois e cinco, e patina nos 31% para os que recebem menos de dois salários mínimos.

Entre outras coisas, os números confirmam a percepção, já mais ou menos óbvia, de que a popularidade de Moro segue inabalável, mesmo depois das revelações da Vaza Jato.

Mas o dado de que Damares é a mais bem avaliada entre os mais pobres é não menos revelador. A estratégia de investir furiosamente na chamada "pauta dos costumes" está longe, muito longe, de ser uma "cortina de fumaça" para "aprovar o que realmente importa" – no caso, as políticas ultraliberais de Guedes –, como parte da oposição e não poucos analistas sugeriram no início do governo Bolsonaro.

Pelo contrário, frente às dificuldades cada vez maiores de articulação política, a perda de apoio mesmo entre setores à direita, e as expectativas econômicas frustradas do primeiro ano de governo, é justamente nela, na "pauta de costumes", que Bolsonaro se fia para manter, além da aprovação, o engajamento militante, principalmente nas redes.

É uma estratégia, portanto, ao menos em parte amplamente favorecida pelo empobrecimento ainda maior do debate público nos últimos anos. Mas também pelo recrudescimento de um discurso conservador fortalecido com a crescente moralização da política (de que o sentimento anticorrupção é um dos sintomas), e como reação aos avanços, tímidos mas significativos no contexto brasileiro, das demandas e direitos das chamadas "minorias" – mulheres, LGBTs, negros e índios.

Essas mudanças não são resultado direto apenas dos governos democráticos, embora políticas públicas, como as cotas nas universidades implementadas nas gestões petistas, as tenham favorecido. Elas são, principalmente, decorrência de um ambiente político que favoreceu a visibilidade de grupos e movimentos sociais, que tomaram para si a tarefa de tensionar e ampliar a democracia para além dos seus limites meramente institucionais.

Um esforço, no entanto, limitado e nunca consolidado, em larga medida pelas escolhas políticas equivocadas, mesmo dos governos progressistas, que insistiram em minimizar a importância de construirmos uma cultura democrática, e não apenas uma democracia formal e episódica, focada em especial nas eleições bienais – e, mesmo essas, tratadas mais como espetáculo do que como oportunidade de fortalecer a participação cidadã.

O cidadão consumidor

Um dos principais sintomas dessa concepção frágil de cidadania está na sua redução à capacidade de consumir, tônica ainda hoje dos discursos petistas.

Ajuda também a entender o espaço que Lula e Dilma concederam às religiões evangélicas neopentecostais e seus discursos de prosperidade, seja nomeando ministros, apoiando candidatos em pleitos regionais ou, ainda, negociando a Comissão de Direitos Humanas, no infeliz episódio que levou o pastor e deputado Marco Feliciano, hoje aliado incondicional de Bolsonaro, à presidência da CDH.

Não se trata, claro, de negligenciar a importância do acesso a bens de consumo, ou menosprezar o significado de programas como o Bolsa Família, por exemplo. Mas de reconhecer o básico: se a cidadania passa pelo incremento do consumo, não se encerra nele.

Ao contribuir para sua diluição nos índices de diminuição da pobreza, os governos democráticos, de FHC a Dilma, colaboraram para manter frágil nossa democracia.

Não por acaso, parte fundamental da estratégia bolsonarista passa por atacar e desqualificar instituições que foram, e ainda são, espaços por excelência de inclusão e ampliação democráticas, como as escolas e universidades.

Ao mesmo tempo, investe furiosamente contra os movimentos sociais que usufruíram dessa curta "primavera democrática", desqualificando suas pautas e reivindicações e aparelhando órgãos e entidades governamentais responsáveis pela garantia de seus direitos.

A ministra Damares está à vontade nesse cenário desalentador. Sua popularidade entre as camadas sociais subalternizadas é fruto do crescente estreitamento das expectativas econômicas desde, pelo menos, o segundo governo Dilma, aliada à sua habilidade em manipular os muitos medos decorrentes de mudanças nunca devidamente cimentadas em uma democracia, como a nossa, débil e incompleta.

Sua imagem sintetiza, como nenhum outro ministro do governo Bolsonaro, o anti-intelectualismo e o temor, diuturnamente reproduzido, de que a ampliação e garantia de direitos ameaça a família e os supostos valores tradicionais.

Em troca do apoio e da identificação ela oferece, a uma população desempregada, endividada e novamente despossuída do direito ao consumo, a ilusória segurança de que sua fé e seus valores não serão moeda de barganha, nem destruídos pelo avanço das minorias.

Bolsonaro precisa disso se quiser continuar sua cruzada antidemocrática. Sem nada de muito objetivo a oferecer, já que os indicadores econômicos teimam em lhe contradizer, ele precisará cumprir ao menos uma das promessas que fez durante a campanha, a de legar um país embrutecido e ainda mais violento, principalmente, simbolicamente violento.

Há quem diga, à esquerda, que Damares é um problema. Para o presidente, ao contrário, ela é parte da solução.

*Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

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