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Entendendo Bolsonaro

EUA em chamas: o ultimato para a polarização democrata

Entendendo Bolsonaro

02/06/2020 00h14

A maior rebelião popular em meio século nos EUA pode levar os democratas a, definitivamente, aderirem à polarização enquanto é tempo (Crédito: Craig Lassig/EFE)

Rafael Burgos

Ainda é cedo para dizer, mas a convulsão social gerada pelo assassinato de George Floyd, em meio a uma pandemia que causou a morte de mais de 100 mil americanos, tem potencial para redirecionar o debate eleitoral nos Estados Unidos e, por consequência, a estratégia dos dois principais partidos rumo ao pleito marcado para novembro.

De leste a oeste, protestos antirracistas tomam as ruas do país desde a última semana, numa mobilização sem precedentes desde o assassinato de Martin Luther King Jr., líder do movimento pelos direitos civis, em 1968.

Assim, a disputa eleitoral para a Casa Branca caminha para tornar-se, de modo mais concreto, uma eleição sobre raça, e a razão fundamental é que, dado o atual cenário, isso interessa aos dois lados do embate.

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Pelo lado de Donald Trump, seria uma chance de ouro para, como de praxe, desviar a atenção da agenda de políticas públicas para a chamada "guerra cultural", terreno que, em 2016, revelou-se crucial para que Trump mobilizasse o eleitorado branco e que, ao longo da sua gestão, permaneceu um pilar fundamental para fidelizá-lo.

Ainda, uma eleição sobre raça poderia diminuir o peso da sua má avaliada gestão da pandemia sobre o debate eleitoral. Segundo pesquisa Reuters/Ipsos divulgada em 12 de maio, aqueles que desaprovam a resposta do presidente à crise da Covid-19 superam os que aprovam em 13 pontos percentuais.

Se, em 2016, o discurso de "lei e ordem" funcionou para Trump num país em relativa estabilidade, os eventos dos últimos dias fornecem um arsenal de imagens a serem exploradas pelo presidente em sua guerra cultural.

Ontem (1), em seu primeiro pronunciamento desde o início dos protestos, ele ameaçou utilizar as Forças Armadas caso as autoridades locais não deem conta da violência, evocando poderes que a Constituição americana não lhe garante.

"Sou o presidente da lei e da ordem e aliado dos protestos pacíficos", disse ainda, pouco antes de caminhar, com uma bíblia na mão, até a Igreja de St. John, que foi incendiada na noite de domingo (31). "A destruição da vida de inocentes, o derramamento de sangue de inocentes são crimes contra Deus", encerrou, ressuscitando dois dos principais signos-chave de sua campanha eleitoral de quatro anos atrás: a ordem e a moral cristã.

Se àquela época a retórica mirava, em larga medida, inimigos externos, hoje, a imagem de desordem e o protagonismo dos Antifas, grupo associado à esquerda antissistema do país, levam Trump a resgatar o fantasma da "extrema esquerda", razão pela qual tanto torcia pela derrotada candidatura de Bernie Sanders nas primárias.

Já pelo lado democrata, diante da obrigação moral de prestar contas às minorias raciais que, hoje, compõem parte relevante de sua base eleitoral, restaram poucas opções senão reafirmar um compromisso com a agenda que tem nas ruas o seu combustível.

Mais do que isso, é possível que a morte de George Floyd contribua para resolver um dilema dentro da estratégia eleitoral do partido para vencer Donald Trump, fazendo com que a campanha de Joe Biden, definitivamente, adira à polarização enquanto é tempo.

Divididos entre o que seriam as duas maiores qualidades de Biden, os democratas hesitavam em definir uma abordagem eleitoral assertiva. Isto é, a capacidade de falar ao eleitorado trumpista do Meio-Oeste somada à alta popularidade junto à base progressista não branca colocavam o ex-vice-presidente diante de um impasse: engajar a base, num discurso mais direcionado, ou roubar votos do republicano em estados-chave, muitos dos quais já foram eleitores de Obama?

O dilema, tudo indica, caminha para uma resolução à medida que a agenda antirracista ganha protagonismo, e tendo como consequência inevitável um acirramento da polarização – desejado por Trump – num país que, hoje, bate recordes de desemprego, na faixa dos 20%.

Se, de fato, isso acontecer, restará ao Partido Democrata apegar-se ao chamado "Get out the vote!", estratégia que consistiria em estimular o comparecimento eleitoral do eleitor anti-Trump, dadas as regras do país que não preveem o voto obrigatório.

Tanto mais se recordarmos que as eleições de 2016 registraram o menor comparecimento em duas décadas, há, claramente, um problema a ser resolvido por Biden, que buscará se diferenciar de Hillary Clinton no quesito capacidade de engajamento, o que nos leva a uma importante questão: será Biden, um centrista pró-establishment, a candidatura certa para mobilizar a base democrata justamente quando as ruas catalisam uma enorme energia antissistema?

Há limites para tal guinada, sob pena de a candidatura provar-se incoerente e caricata, razão pela qual a tarefa de resolver essa contradição cairá nos ombros da sua companheira de chapa. Digo companheira porque, a essa altura, parece certo que a sua vice será mulher e negra. A escolhida terá a dificílima missão de estabelecer uma ponte entre a ira das ruas e a institucionalidade do partido. Precisará convencer um eleitor desencantado de que o voto ainda é instrumento de transformação.

"Se você quer mudança na América, saia e registre-se para votar!". E foi exatamente esse o recado dado por Keisha Lance Bottoms, prefeita de Atlanta, aos manifestantes na sexta (29), em corajoso discurso pedindo que as pessoas ficassem em casa e acusando protestos violentos de traírem o legado de Martin Luther King Jr.

Especula-se que o recente protagonismo de Bottoms pode levá-la a desafiar as companheiras de partido Kamala Harris, senadora da Califórnia, e Stacey Abrams, ex-candidata a governadora da Geórgia, principais cotadas para vice de Biden já que, agora, a centrista Amy Klobuchar, ex-pré-candidata à Casa Branca, parece fora do páreo.

Se soa bastante improvável um Joe Biden capaz de tomar para si essa energia antissistema ecoada de uma costa a outra do país – e que, tudo indica, permanecerá em crescimento – , a prefeita de Atlanta parece sugerir uma saída: o seu discurso enuncia, de maneira poderosa, a predisposição de combinar o legado dos direitos civis com a crença no sistema enquanto vetor de mudança.

Não será nada fácil, sobretudo se considerarmos o descrédito da juventude com o capitalismo americano. Mas se o partido hesitava em aderir à polarização, agora não há mais saída: para vencer Trump, Biden terá de olhar menos para o Meio-Oeste branco e mais para a sua casa, que, literalmente, está em chamas.

Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".

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