Refugiado no cinismo, Bolsonaro governa para indignar opositores
*Rafael Burgos
Na última quarta-feira (21), na abertura do Congresso Aço Brasil, o presidente Jair Bolsonaro discursou em reação a críticas de que estaria interferindo em órgãos de Estado, como a Polícia Federal (PF) e a Receita.
Na ocasião, Bolsonaro esbravejou:
Houve uma explosão junto à mídia no Brasil, uma explosão. Está interferindo? Ora, eu fui [eleito] presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidência, tô fora.
O tom da fala é o mesmo de muitas outras proferidas especialmente nos últimos meses, desde que radicalizou o seu discurso após a sinalização positiva da Previdência no Congresso.
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Há algo de inovador nesse tipo de discurso, pois ele gera indignação pública e, ao mesmo tempo, é proferido com esse exato propósito.
Bolsonaro tem se aproveitado desta situação, pois o caráter experimental desse comportamento lhe permite explorar reações ingênuas da imprensa e de opositores.
Na era pré-bolsonarista, em regra, o presidente cujas falas adotavam repercussão negativa tinha que escolher uma entre duas opções: se desculpar pelo deslize ou insistir na frase a fim de atenuar o seu sentido original: o famoso "eu não quis dizer isso".
Bolsonaro pega todos de surpresa ao, sistematicamente, reagir de modo diferente: diante de suspeitas negativas, ele as reafirma. Há críticas de interferência do presidente em órgãos de Estado? "Eu fui [eleito] presidente para interferir mesmo".
Ao falar para indignar, o capitão reformado adota o que o filósofo Vladimir Safatle chama de "racionalidade cínica".
O conceito é usado para descrever um tipo de razão, predominante no capitalismo contemporâneo, em que os sujeitos partem para a ironização absoluta das suas próprias condutas, como resposta a uma realidade que não corresponde às suas expectativas de validade.
O cinismo é, para Safatle, uma maneira de acomodar o estado de crise.
Diante de uma realidade que não responde mais a expectativas de validade, resta ao sujeito a ironização absoluta dos modos de vida. Ou seja, resta ao sujeito mostrar, a todo o momento, que esta realidade não pode ser tomada a sério, devendo a todo momento ser revertida e pervertida.
Vladimir Safatle, "Cinismo e falência da crítica" (Ed. Boitempo, 2008)
No contexto brasileiro, o cinismo do poder seria a resposta de quem preside um país que desistiu de produzir consensos, de modo que a linguagem das suas lideranças se afasta da busca do comum. O "sistema" se esgotou e, por ora, a alternativa é legitimar um estado permanente de crise, uma crise de produção de significados.
Para não ter de se justificar e, assim, disputar verdades, confrontar argumentos, Bolsonaro decide boicotar a si mesmo, interditando o fluxo comunicativo, frustrando as expectativas do receptor de sua mensagem, de modo que o resultado dessa dinâmica é um imenso ruído.
É uma tática inteligente e que traz à tona um paradoxo, pois é o ímpeto oposicionista para demonstrar os "absurdos" de Bolsonaro que consolida o seu apoio dentre o famoso "um terço" do eleitorado, aqueles que dependem exatamente de uma oposição barulhenta para reafirmar a sua identidade.
É preciso dizer que Bolsonaro governa não apenas para dividir, mas para indignar.
Da próxima vez que se insurgir contra uma fala do presidente, lembre-se: foi para isso que ela foi proferida.
*Rafael Burgos é jornalista, autor do TCC "Donald Trump: a redenção pelo regresso".
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