Com ataque, Trump demonstra limites do populismo em política externa
[RESUMO] O presidente americano Donald Trump foge da receita do populismo de direita ao ordenar o assassinato do general Qasem Soleimani, chefe da Guarda Revolucionária do Irã. Isso porque tal corrente política prega o foco dos governantes em questões domésticas, de modo a dar melhores condições de vida ao povo e promover seus supostos valores culturais, aumentando, assim, o bem-estar daqueles homens e mulheres esquecidos pela globalização. Mais que buscar uma guerra patriótica contra o regime iraniano, Trump conforma-se ao papel de líder da principal potência mundial, que se encontra em trajetória de declínio relativo e, portanto, dispõe cada vez de menos opções para manter seu status internacional.
* Vinícius Rodrigues Vieira
Com o ataque que resultou na morte do general iraniano Qasem Soleimani, o presidente Donald Trump contradiz a essência do populismo do século 21 — mesmo em suas versões que flertam com a extrema direita: priorizar o bem-estar material e simbólico do povo no curto prazo.
A essência dessa cartilha prega uma redução nos gastos militares e, eventualmente, um certo isolacionismo. Afinal, guerras e conflitos em geral causam rombos no orçamento das nações, drenando recursos que poderiam ser empregados em políticas públicas econômicas e culturais para fortalecer os grupos de interesse e identitários dos quais o populismo depende.
Por exemplo, a dívida pública dos EUA só aumentou depois da Guerra do Iraque, chegando à cifra astronômica de US$ 22 trilhões — superior ao Produto Interno Bruto (PIB) americano.
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Alguns, no entanto, podem argumentar que o ataque — considerado pelo regime islâmico de Teerã uma declaração de guerra dado o prestígio de Soleimani e sua função estratégica de coordenar ações militares e atos terroristas para satisfazer interesses do Irã no exterior — está em linha com a lógica de unir a nação americana em torno de um inimigo comum.
Seria, portanto, "populista"— pois vislumbraria um ganho de popularidade no curto prazo às custas de ganhos incertos para o país (neste caso, os EUA).
Em meio a um processo de impeachment que deve fracassar num Senado dominado por republicanos e num ano eleitoral — Trump disputa a reeleição em novembro —, tal estratégia cairia como uma luva para o mandatário americano, segundo o raciocínio que atribui ao populismo de direita a justificativa para o ataque.
Trump, porém, anda com a popularidade relativamente elevada dado o baixo índice de desemprego — menos de 4%. Ações militares contradizem, portanto, a retórica do populismo de direita do século 21.
Não à toa Trump sinalizou em sua campanha de 2016 que faria uma política externa realista, fugindo, assim, daquilo que é chamado de nation building — ou seja, o processo sem fim e algo idealista de construção de Estados como o Iraque pós-Saddam Hussein e o Afeganistão após o regime islâmico fundamentalista do Talebã, que deu guarida à Al-Qaeda de Osama Bin Laden.
O atual presidente americano chegou ao ponto de, em 2011 — ou seja, muito antes de ter sua candidatura levada a sério —, afirmar que o então ocupante da Casa Branca, o democrata Barack Obama, iniciaria uma guerra contra o Irã para se reeleger em 2012.
Obama ganhou um segundo mandato e, durante ele, costurou um acordo com a ajuda de outras potências que deu esperanças ao mundo de controlar as ambições do Irã no campo nuclear.
Isso tudo para não citar que, em meio à polarização entre democratas e republicanos, um ataque militar ou guerra ecoa apenas entre convertidos. De fato, no Congresso dos EUA, a oposição condenou Trump embora visse em Soleimani um inimigo a ser neutralizado, enquanto a situação celebrou a morte do general sem atentar para suas potenciais consequências desastrosas. O Irã, por sua vez, já anunciou que vai vingar a morte do general, sinalizando possíveis ataques a militares e civis dos EUA.
Assim, não obstante sua retórica isolacionista, Trump parece ter se conformado ao fato de que qualquer indivíduo a ocupar o cargo de presidente americano deve fazer o necessário para manter o status dos EUA como a maior potência global. Sob ameaça de impeachment ou não, democratas ou republicanos, presidentes americanos comportaram-se ao longo da história como comandantes-em-chefe de uma potência militar.
Tal posição implica envolver-se em ações controversas, para dizer o mínimo, pois ignoram princípios internacionais — Soleimani foi morto em solo iraquiano, sem a permissão e colaboração do governo local — e até mesmo leis nacionais. Isso porque cabe ao Congresso americano aprovar declarações de guerra — o que representa, de fato, o assassinato do general, embora a Casa Branca negue que queira escalar as tensões com Teerã.
A natureza estrutural das posições de Trump fica evidente quando vemos que os EUA, na prática, estão isolados. Tradicional aliado militar americano, o Reino Unido — comandado pelo populista de direita Boris Johnson, do Partido Conservador — emitiu nota em que reconhece que Soleimani liderava "ameaças agressivas", mas esclarece que uma escalada do conflito entre EUA e Irã não é do interesse britânico.
A nota do governo alemão, liderado pela nada populista Angela Merkel, da União Democrata-Cristã, de centro-direita, alinhou-se ainda mais com os americanos, tendo definido o ataque como uma reação às provocações iranianas dos últimos meses enquanto condena uma potencial escalada da crise.
Trata-se, aliás, de um tom similar ao adotado pelo Itamaraty na posição oficial do governo brasileiro, não obstante interpretações de que tenhamos tomado as dores de Trump na questão.
Estranho seria se um governo de direita, como o liderado por Jair Bolsonaro, tivesse se alinhado ao Irã. Nada mais lógico e equilibrado à luz da ideologia que guia a política externa bolsonarista e das capacidades militares brasileiras— bastante limitadas, segundo nosso presidente.
Em suma, quando se trata de questões militares sensíveis em política externa, o posicionamento dos países deriva menos de questões ideológicas e mais de tendências de longo prazo que envolvem sobretudo a posição relativa de poder dos países no sistema internacional. Isso vale para uma centrista como Merkel tanto quanto para os populistas de direita Bolsonaro, Johnson e Trump.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV.
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