"Fantasias autoritárias": filósofo de Yale analisa discurso de Bolsonaro
[RESUMO] Um dos principais acadêmicos que se dedicam a pensar a extrema direita no mundo, o filósofo Jason Stanley analisa o pronunciamento de Jair Bolsonaro da última terça (24). Para ele, o imaginário bolsonarista está construído em torno de fantasias autoritárias.
* Jason Stanley
No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o coronavírus uma pandemia. A definição de pandemia é "uma epidemia que se espalha pelo mundo", em outras palavras, uma crise de saúde global.
Crises de saúde globais exigem soluções coordenadas globalmente; elas exigem, em uma palavra, globalismo. Assim como na década de 1930, o mundo afasta-se em peso do globalismo. Uma crise global aparece exatamente no momento em que três das quatro maiores democracias do mundo estão sob o domínio de nacionalistas extremistas.
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A partir do pronunciamento de Jair Bolsonaro em rádio e televisão no último dia 24 de março (terça), vemos as consequências infelizes e possivelmente trágicas deste momento.
A filósofa Hannah Arendt descreve o conceito de amigo-inimigo, a visão de que "o mundo está dividido em dois gigantescos campos, um hostil ao outro, sendo que um deles, 'o movimento', pode e deve combater o mundo inteiro", como um dos princípios básicos do totalitarismo.
É também um princípio básico do bolsonarismo. O próprio bolsonarismo é uma veneração à nação, à juventude, aos militares, à família tradicional e à fé religiosa tradicional, e que tem na figura de Jair Bolsonaro uma representação desses valores.
Os inimigos do bolsonarismo são os intelectuais, o conhecimento científico, a democracia e a imprensa. O bolsonarismo, portanto, se assemelha a uma espécie de "fascismo moderno". No seu pronunciamento, o presidente aproveitou um momento em que os olhos do Brasil se voltaram para ele como uma oportunidade de divulgar a sua versão propriamente brasileira desse credo.
No coração da ideologia fascista está o mito de uma grande nação, uma nação jovem e poderosa. A partir do discurso de Bolsonaro, aprendemos que a Itália, ao contrário do Brasil, tem um "grande número de idosos". A Itália é, na representação do presidente, uma nação fraca e idosa, em contraste com "este novo Brasil, que tem tudo, sim, tudo para ser uma grande nação".
Não é a sua estratégia de saúde, mas a sua grandeza enquanto nação, a sua vitalidade e juventude que supostamente tornam o Brasil impermeável a essa grande ameaça global.
Na ideologia fascista, o líder é o representante da força da nação. Por isso, Bolsonaro, devido ao seu "histórico de atleta", não precisaria se preocupar. E já que, segundo o bolsonarismo, Bolsonaro simplesmente é o Brasil, tampouco precisa o País.
O discurso de Bolsonaro se distingue pelo volume de suas mentiras. A natureza "antiglobalista" da ideologia fascista – seu ataque à razão universal – sustenta a sua relação de permanente ira contra a verdade, assunto do novo livro de Federico Finchelstein, "A Brief History of Fascist Lies". Na obra, Finchelstein escreve:
Para o fascismo, o ato de mentir na política não é nada atípico… Contar mentiras é uma marca do fascismo de uma maneira que não se aplica a outras tradições políticas. Mentir é fortuito para, digamos, o liberalismo de uma maneira que não é para o fascismo. E, de fato, quando se trata de enganações fascistas, elas compartilham pouco em comum com outros modelos políticos na história. Elas se situam para além das formas tradicionais de impostura política. O fascista considera que as suas mentiras estão a serviço de simples verdades absolutas, que são, na realidade, mentiras maiores.
A notável antipatia do fascismo pela verdade não representa uma característica adicional dessa ideologia. Ela é, antes, uma consequência da centralidade, para o fascismo, da distinção amigo-inimigo.
A verdade serve como uma espécie de juiz neutro nos debates. Se todos os partidos respeitam a verdade, a disputa acontece em condições de igualdade. Para a ideologia fascista, no entanto, a ciência e a verdade são, meramente, uma arma adicional a ser utilizada contra o inimigo.
No discurso de Bolsonaro, os inimigos são nacionais e locais. Ele iniciou o seu pronunciamento dando sequência à retórica do filho, Eduardo – representando o vírus não como uma batalha da humanidade contra uma doença, mas como um conflito entre nações, dentro do qual o Ministério da Defesa recebeu o chamado para resgatar os brasileiros na China.
Os "inimigos internos" de Bolsonaro, foco central do seu discurso, são a mídia, os especialistas, além de rivais políticos, como os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro, que vêm tratando a ameaça com a seriedade necessária.
Arendt nos diz que a propaganda fascista prospera na "fuga da realidade" que ela oferece. Em seu discurso, Bolsonaro nos oferece esse escape. Ele nos diz, apesar da total ausência de evidência científica, que existe um medicamento fabricado no Brasil – a cloroquina – que seria promissor na luta contra o vírus.
Para promover uma falsa narrativa de esperança, de que este vírus terrível seria apenas "uma gripezinha", Bolsonaro se apropria de um inimigo, o doutor Drauzio Varella. Como observa Arendt, os movimentos totalitátios "usam a reputação de seus cientistas para propósitos inteiramente anticientíficos, forçando-os ao papel de charlatões".
No cerne da ciência estão a factualidade e a razão – no cerne do fascismo, estão a força de vontade e a fé. Num pronunciamento à nação em momento de aguda crise, deveríamos esperar orientações equilibradas do que fazer, palavras de uma liderança racional e ancorada nas evidências. Bolsonaro, no entanto, substitui a ciência pela fé.
Não são, para ele, cientistas e pesquisadores que curarão a doença – é, em última análise, Deus. O presidente nos diz que são a juventude, a vitalidade e a grandeza do Brasil que derrotarão o vírus – em suma, como minhx colegx Robin Dembroff me explicou, para Bolsonaro é a masculinidade do Brasil que, no fim das contas, virá nos salvar.
Em sua reação à crise ambiental, Bolsonaro já havia demonstrado o seu ódio pelo conhecimento, a sua tendência a "dobrar a aposta" mesmo que diante de uma enorme evidência científica apontando o contrário.
No caso da crise ambiental, o dano causado por Bolsonaro é sentido em todo o mundo. Diante dessa pandemia, entretanto, será tão somente o Brasil que pagará o preço pelas fantasias autoritárias do seu líder.
* Jason Stanley é professor de filosofia na Universidade Yale e autor de "Como funciona o fascismo: A política do "nós" e "eles".
* Tradução de Rafael Burgos
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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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