Bolsonarismo aposta no discurso da morte e do caos
* Alexander Hilsenbeck Filho
A postura de Jair Bolsonaro diante da pandemia, não é novidade, contradiz todo o conhecimento epidemiológico sobre o Covid-19 e as medidas orientadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Isolado em meio a chefes de Estado que, em todo o mundo, encorajam o isolamento social, Bolsonaro foi descrito pela revista americana The Atlantic na última sexta (27) como o "líder do movimento negacionista do coronavírus".
Suas ações e falas não se baseiam na ciência, mas isso não é algo novo nesse governo, pelo contrário, pois, desde a campanha eleitoral de 2018, essa foi a tônica do discurso ideológico do bolsonarismo: contrapor-se ao consenso científico e aos valores civilizacionais liberais aparentemente inquestionáveis.
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Bolsonaro elegeu-se como um pretenso outsider do "sistema" e mantém, desde então, uma forma política de tensionamento constante, buscando, com isso, condicionar parte da população à contínua agitação – seja como forma de manutenção ativa de seu núcleo de seguidores, seja como forma de pautar a oposição, que até o momento não conseguiu encontrar um tom mais eficiente de ação.
O presidente disse, em pronunciamento da última terça (24), que não é preciso fechar escolas pois lá não está o grupo de risco – idosos maiores de 60 anos – e faz questão de se colocar contrário ao mínimo consenso na epidemiologia, pois aumentar o número de infectados em qualquer idade significa aumentar a circulação do vírus e infectar mais idosos, além do que grande parte dos fora do grupo de risco precisam de internação, levando a um colapso do sistema de saúde – superlotando os hospitais e centros médicos para o atendimento de quaisquer doenças, tais como tuberculose, dengue, chikungunya, diabetes, pressão alta, infartos etc. – , o que, por sua vez, diminui a possibilidade de vida pros idosos.
A aposta bolsonarista é alta, pois tal narrativa contém um grande risco e pode levar ao seu desabamento político, o que pode ter impacto direto em sua popularidade, por outro lado, esse tensionamento permite aglutinar sua base numa narrativa mais coesa. Convém entendermos melhor quais as perspectivas dessa aposta bolsonarista.
As últimas pesquisas de opinião não apontavam uma grande queda na popularidade do presidente, mantendo o nível de mais ou menos 1/3 da população avaliando-o positivamente, não demonstrando grandes fissuras visíveis.
A manutenção dos índices de popularidade, inclusive, verifica-se com outros líderes populistas de extrema-direita mundial, como Donald Trump (EUA) e Boris Johnson (Reino Unido). A ideia de terceirizar a luta política para um vírus não parece ser a melhor das estratégias para a oposição. Obviamente que o avanço da doença e os efeitos políticos são imprevisíveis.
No entanto, outra pesquisa, esta divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), traz dados da retração do comércio varejista entre dezembro e janeiro, portanto, antes dos efeitos do coronavírus.
E aqui temos a chave da economia para entendermos melhor as estratégias políticas. A perspectiva do bolsonarismo segue a linha de negar tudo o que possa impedir o lucro imediato, e, para isto, se posiciona contra a ciência e a vida da população.
A maior parte dos líderes políticos pelo mundo enfrentam o desafio de equilibrar a dosagem da duração do "lockdown" – com isolamentos ou quarentenas – na busca por suavizar a curva de propagação do vírus e evitar a sobrecarga do sistema de saúde com a necessidade de reativação da economia.
Estados mais ricos dispõem de maiores recursos para a busca desse equilíbrio, muitas vezes recorrendo a amplas medidas de proteção social – criando linhas de empréstimo subsidiadas por ramos, suspendendo pagamentos de tributos, injetando dinheiro novo, bancando parte dos salários, criando programas de transferência de rendas, entre diversas outras – e, mesmo, reestatização de serviços como nas redes hospitalares. Verifica-se o retorno de maior presença do Estado na vida política e econômica, e mesmo representantes do livre-mercado clamam por ações emergenciais do Estado.
Não há apenas uma única e exclusiva medida, e novamente temos que olhar para a política. No México, o presidente Manuel López Obrador – identificado como de esquerda – também se vale do populismo e do negacionismo para manter sua popularidade de mais de 60%, inclusive apelando para o povo – "que seria um grupo étnico resistente a estes tipos de calamidade" – se proteger com orações e amuletos, orientando as pessoas a seguirem sua vida normalmente, movimentando a economia do país.
Bolsonaro age mirando a reeleição de 2022, só que o Brasil – a despeito do discurso ultraliberal e das reformas já aprovadas, como a previdenciária e trabalhista – segue o caminho da recessão, e isso antes da epidemia mundial – a queda constante no PIB, a manutenção das taxas de desemprego e subemprego e a alta do dólar são exemplos claros.
Desse modo, ao ser contrário ao consenso epidemiológico e científico, Bolsonaro aposta que o custo político da provável crise econômica e do aumento maior do desemprego será atrelado aos governadores, prefeitos e à mídia, que teriam propiciado e fomentado a "histeria" que quebrou o país.
É nessa chave de leitura que podemos entender os vídeos alarmistas de empresários bolsonaristas como Roberto Justus (publicitário e apresentador de um programa de reality show), Júnior Durski (do grupo Madero) e Luciano Hang (proprietário da Havan, que ameaçou demitir 22.000 colaboradores e fechar suas lojas e ir "para a praia"), entre outros, que anteciparam e reproduziram o discurso de Bolsonaro, de que o vírus só mataria idosos e doentes, que o custo dessas vidas não compensaria o caos na economia. A lógica é que o Brasil não pode parar, mesmo diante da crônica de mortes anunciadas.
A aposta do bolsonarismo é pelo caos. O controle da circulação da população depende essencialmente que ela tenha condições para ficar em casa, ou seja, que tenha condições de manter sua subsistência, comida no prato e pagamento de suas contas, do contrário, pode-se antever volta às ruas pela necessidade de trabalhar, saques, quebradeiras, e também, pelo lado do governo, a aplicação de um estado de sítio para conter essa situação.
É nessa linha que podemos entender a hesitação do governo federal em tomar medidas efetivas no campo da economia para os 33 milhões de trabalhadores com carteira-assinada e para os 60 milhões de trabalhadores da economia informal.
Não esqueçamos que as primeiras medidas anunciadas por Paulo Guedes na economia – sob a desculpa de combater os efeitos do coronavírus – foram a venda da Eletrobrás e acelerar as reformas administrativa e tributária. Posteriormente, a Medida Provisória – já revogada – que permitia a suspensão do contrato de trabalho e do pagamento por quatro meses de salários. Nessa semana, a partir de pressão e disputa política, e diante do acúmulo de críticas de vários setores sociais, tanto o Parlamento quanto o governo federal anunciaram algumas medidas à população, empresas e sistema financeiro, o que busca atenuar um pouco a situação.
A grande maioria da população brasileira, contudo, incluídos trabalhadores informais, precarizados e mais vulneráveis urge por medidas de transferência de renda e de cestas básicas que inclua produtos de limpeza e higiene. Mas o governo não demonstra sensibilidade para essas demandas populares e de garantia e dignidade da vida, e até o momento a população tem se virado, uma vez mais, com apoio mútuo e solidariedade.
Ainda que o mantra do governo seja a saúde da economia em primeiro lugar, em detrimento da saúde e da vida das pessoas, e apesar do discurso de grandes empresários bolsonaristas, o discurso do presidente parece estar voltado mais para os pequenos empresários e proprietários. As grandes empresas no Brasil, em sua maioria, já são transnacionais, e possuem mais poder de resistência às crises econômicas, sendo mais difícil de quebrarem.
Por outro lado, é diante da fragilidade dos pequenos negócios e dos microempresários – ainda que empresários de si mesmo – que é possível que o discurso de Bolsonaro em pouco tempo encontre eco nas angústias desse setor, configurando um reagrupamento de forças.
Diante da iminência de aumento do desemprego, da quebra de negócios, do aumento da violência e do caos, pela própria inação do governo em oferecer assistências efetivas, o discurso de Bolsonaro fortalece sua base de sustentação ao tocar em angústias materiais e dialogar com o medo e revolta de parcela da sociedade. O governo, assim, antecipa-se à possível situação de caos que ele próprio ajuda a promover.
Bolsonaro dobrou a aposta como outsider em plena epidemia, o que é uma estratégia política pensando nas eleições de 2022 – ou mesmo antes, na perspectiva de uma ruptura institucional para garantir a "ordem e o progresso". Isso é, colocando-se como "fora do sistema", e indo contra as medidas da OMS e governadores – como Doria (SP), Flávio Dino (MA), Witzel (RJ), Caiado (GO) etc. – , se a economia quebrar e o desemprego aumentar pode dizer que foi culpa da "histeria" de governadores e mídia, e se, pelo contrário, as medidas adotadas pela população, governadores e prefeitos para conter a pandemia forem bem-sucedidas no Brasil, o presidente poderá alardear que ele avisou que era só uma "gripezinha".
Em ambos os casos poderá, através do apelo às emoções – sobretudo da manipulação de medos e de ressentimentos – , alardear para sua base que ele esteve sempre certo, todo o tempo.
Com o radar no planalto em 2022, articulados por João Doria, os governos estaduais entraram como bloco no jogo político, buscando conter a aposta bolsonarista. Contudo, Crivella e Witzel já apontam um fato, sem pacote de auxílio econômico por parte do governo federal, não há quarentena possível para a população mais fragilizada. A contagem do número de cadáveres parece ser o preço dessas apostas.
Para sair dessa "sinuca de bico" cabe a autodisciplina da população, através do autoisolamento, da cobrança por medidas efetivas dos governos mas, sobretudo, do desenvolvimento de formas solidárias e autônomas de cuidado com os outros, inclusive com modos de resistência mais tradicionais para não serem obrigados a voltar ao trabalho sob o risco de adoecimento e morte.
De toda forma, não voltaremos à normalidade, o passado já não existe mais, ao menos como o conhecíamos. Muitas coisas devem mudar no nosso modo de relações sociais após essa pandemia, efeitos que devem ser mais duradouros. E muito dos resultados da disputa atual terá seus reflexos nesse futuro próximo.
Há momentos na história em que os dias se tornam anos, o tempo social se acelera, o que parecia natural mostra-se apenas uma construção e somos capazes de alargar nossa imaginação para a concepção de formas melhores de vida, desenvolvendo, na prática, alternativas às políticas vigentes, transformando o que parecia impossível em inevitável.
Essa crise deverá trazer transformações profundas nas formas de gestão da vida – pelo Estado, empresas e sociedade – , e, nesse sentido, impõe-se a pergunta: para onde irão essas mudanças? Como responderemos aos desafios que se apresentam a nós hoje?
Teremos capacidade de empurrar a – nossa – história no sentido de um mundo melhor, com novas sociabilidades e formas de vida mais emancipadas, solidárias e livres? Ou, ao invés de vivenciarmos processos autônomos de vida, outra vez mais seremos heterorganizados com modos ainda mais profundos de degradação de nossas vidas? A vida ou o lucro?
* Alexander Hilsenbeck Filho é doutor em Ciência Política e professor de Política e de Cultura Brasileira na Faculdade Cásper Líbero
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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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