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Entendendo Bolsonaro

Plano de Bolsonaro é transformar Brasil em Faroeste Caboclo

Entendendo Bolsonaro

24/05/2020 00h00

Na Marcha para Jesus, Bolsonaro exibe traços de sua religiosidade pela única linguagem que lhe é cognoscível: a da bala (Crédito: Nacho Doce/Reuters)

Vinícius Rodrigues Vieira

Defesa do armamentismo, violação da lei para favorecer família e amigos, cada um por si e Deus por todos. O vídeo protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus ministros, gravado na reunião de 22 de abril, sugere que, no Brasil da pandemia de Covid-19, vivemos um faroeste caboclo, sem governo ou marco legal de fato para sair da crise político-econômica-sanitária que vivemos.

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De fato, no dia seguinte à primeira divulgação do registro pela mídia, comecei a me lembrar da letra da lendária Faroeste Caboclo, canção de Renato Russo imortalizada pelo Legião Urbana no disco "Que País é Este?', nome de outra música histórica da banda de Brasília, liderada pelo compositor, morto em 1996.

Tal como na saga de João de Santo Cristo, nossa tragédia tem capitão, playboy e general. A alta burguesia do País pode não ter acreditado — ou fingido não acreditar — que Bolsonaro era despreparado para o cargo de chefe de governo e Estado. Mas, depois da reunião exibida na TV, não há dúvidas: ela resume o atual (des)governo, sustentado, em parte, por aqueles três arquétipos.

O capitão dispensa apresentações. Já os playboys são os alienados que jamais devem ter tido contato com o povo nas ruas, a começar por Paulo "tem que vender essa p…. logo" Guedes, ministro da Economia. Ricardo "passar a boiada" Salles, titular do Meio Ambiente, também compõe o time, com titulação falsa de Yale e vontade de ludibriar a opinião pública para flexibilizar leis ambientais enquanto enterramos nossos mortos.

Digo "nossos mortos" porque o gabinete presidencial nada tem a ver com isso. Afinal, como o vídeo mostra em diversos momentos, Bolsonaro et caterva parecem governar país que não seja o Brasil, não somente por causa dos já conhecidos impropérios, mas também porque havia no fundo da sala de reuniões uma TV exibindo a infame peça publicitária do governo apenas com crianças brancas.

Ademais, para Bolsonaro, covas coletivas, como as abertas em Manaus, sob a liderança do prefeito Arthur Virgílio (PSDB), são apenas um meio de superdimensionar a crise e prejudicar um presidente supostamente sitiado por governadores que odeiam a democracia.

O triângulo amoroso de "Faroeste" também explica a relação do País com Bolsonaro. Em vez de Jeremias, o maconheiro sem vergonha, temos milicianos e seus aliados também desprovidos de pudor. Na história de Renato Russo, Jeremias "(…) dizia que era crente, mas não sabia rezar". Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Afinal, além de ter uma proximidade incômoda com milícias cariocas, o autointitulado católico Jair ainda não é crente (apenas "namora" evangélicos, para ficarmos no campo das metáforas conjugais do presidente), porém está longe de esboçar qualquer conexão transcendental. Afinal, se há algo comum às religiões, tal elemento resume-se em algo assaz escasso no Planalto: a empatia, sentimento em falta em tempos de pandemia.

No papel de João de Santo Cristo, estamos nós, o povo, carregando sua cruz, como macunaímas que oscilam entre a busca por retidão moral e a zona cinzenta do jeitinho que nos distinguiria entre as demais nações do mundo. Santo Cristo, tal como descrito na estrofe final da canção, só "(…) queria era falar pro presidente/pra ajudar toda essa gente que só faz/sofrer". De um presidente, esperamos que olhe para o povo — o óbvio, mas que parece ter sido esquecido há tempos.

Maria Lúcia, sem querer ecoar qualquer machismo, é nossa Marianne — símbolo feminino da República Francesa. Santo Cristo (o povo) apaixonou-se por ela e, assim, voltou a ser carpinteiro, símbolo do trabalho e da busca por um norte moral. Mas, como conta Renato Russo, "sob uma má influência dos/boyzinhos da cidade começou a roubar".

María Lúcia, a República, foi conquistada por Jeremias — melhor dizendo, Jair. No confronto final entre João e Jeremias, o último atira nas costas do primeiro. No contexto atual, tal ato de covardia é a tentação do autoritarismo matando o povo. Agonizando, Santo Cristo:

Se lembrou de quando era uma criança/
E de tudo o que viveu até ali/
E decidiu entrar de vez naquela dança/
Se a Via-Crucis virou circo, estou aqui

E nisso o sol cegou seus olhos/
E então Maria Lúcia ele reconheceu/
Ela trazia a winchester 22/
A arma que seu primo Pablo lhe deu

Nossa Winchester-22 é a Constituição, a arma com a qual Santo Cristo, entre a vida a morte, se vinga de Jeremias. Na ficção, o desfecho não poderia ser mais trágico.

Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor

Na vida real, porém, se ficar ao lado da Constituição, o povo e a República não morrem, mas se cura da Via Crucis composta por tentações autoritárias.

Por falar em autoritarismo, não falei dos generais até aqui, mas apenas do capitão e dos playboys. Onde boinas-verdes de pijama entram nesta narrativa? Bem, releiam e ouçam novamente Faroeste Caboclo. Eles estão atrás da mesa, escondendo-se à sombra de um capitão, fazendo algo que os bons modos me impedem de descrever — enfim, uma expressão chula para retratar medo.

Militares não curtem Legião. Playboys, sim (pelo menos até antes da onda sertaneja). Talvez Salles e outro playboy que não citei — Abraham "odeio o termo 'povos indígenas"' Weintraub, suposto ministro da Educação — queiram mudar de faixa no disco da Legião e cantar a estrofe final da música-título:

Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão

Com isso, talvez sequer precisemos vender logo a "p…." chamada Banco do Brasil. E a pergunta segue sem resposta 33 anos depois: Que País é Este?

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV

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