30 mil mortos: um “grande dia” para Bolsonaro
* Murilo Cleto
Segundo dados do Ministério da Saúde, hoje o Brasil atingiu a marca de 31.199 mortos pelo novo coronavírus. Deve ser um bom dia para quem votou em Jair Bolsonaro e ainda não se arrependeu. Porque, convenhamos, até aqui não foi nada fácil.
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É um erro dizer que agora, no poder, Bolsonaro só está entregando aquilo que prometeu. A despeito dos sinais trocados e da cacofonia típica desses novos movimentos da extrema-direita no mundo, não se pode cair na esparrela de que o maior problema do presidente é a coerência – nem que ela signifique, nesse caso, estar sempre errado.
Seria impossível desvincular parte massiva do voto em Bolsonaro, por exemplo, do seu discurso anticorrupção. Com razão, muita gente apontou, à época, que o problema estava nas ferramentas que o então presidenciável propunha para combater o mau uso da máquina pública. Mas não restam dúvidas de que ele prometeu acabar com ela.
No Planalto, Bolsonaro se cercou de indiciados e até "réus" confessos – como é o caso de Onyx Lorenzoni – e teve que ir aumentando a dose de contorcionismo retórico para defendê-los à medida que avançava o mandato. Dizer que ele cumpre todas umas promessas – inclusive essa – também é um modo de desobrigá-lo a se explicar.
O presidente também tinha prometido, com todas as letras e insistentemente, acabar com o famoso "toma lá, dá cá" – prática típica do presidencialismo de coalizão brasileiro em que o governo, em troca de apoio no Congresso, distribui cargos para uma base aliada que aprova tudo que vem do Planalto e o blinda de eventuais processos políticos ou criminais.
O que se viu nas últimas semanas, no entanto, foi um movimento intenso de aproximação entre Bolsonaro e algumas das figurinhas mais carimbadas do bloco de partidos mais fisiológicos do Congresso. E as nomeações não param de aparecer no Diário Oficial da União. Como as cifras aumentam todo dia, nem vale a pena apresentar os últimos cálculos. Mas já não são apenas alguns bilhões do orçamento do executivo federal nas mãos de condenados no Mensalão e réus na Lava-Jato.
Quem votou em Bolsonaro para acabar com a corrupção e o Brasil não virar uma Venezuela recebeu, de cara, um Roberto Jefferson dia sim e outro também ameaçando golpe com fuzil na mão e tudo.
Em 2018, muita gente foi seduzida pelo discurso bolsonarista contrário ao aparelhamento do Estado feito pelo PT e à interferência política nos ministérios. Mas a "carta branca" prometida aos ministros virou rapidamente um "quem manda sou eu". Foi o que ouvimos na reunião ministerial do dia 22 de abril, por exemplo.
Bolsonaro reclamava da Polícia Federal (PF), na ocasião. Quero crer que, entre os cerca de 30% que ainda o apoiam, poucos sejam francamente favoráveis ao que se viu ali ou a partir dali. Longe de reelegê-lo, o conteúdo do vídeo é tão grave que a AGU teve que mentir para tentar aliviar a barra do presidente.
A sorte do Brasil foi ainda ter uma imprensa livre para que, no mesmo dia, a jornalista Andréia Sadi demonstrasse que o governo estava tentando provocar uma confusão proposital entre PF e Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e esconder, assim, a preocupação do presidente com a superintendência do Rio de Janeiro.
Seja como for, Bolsonaro não prometeu em campanha que, se eleito fosse, nomearia amigos da família na PF para se blindar e antecipar operações para aliados.
É óbvio que Bolsonaro não é o primeiro político da história a se dizer contra o estatuto da reeleição. Veremos vários agora nas eleições municipais. Mas, caramba, menos de seis meses para se lançar como candidato é um pouco demais, não?
Quando assumiu, Bolsonaro também prometeu cortar 30% dos cargos de confiança. Até março de 2020, a redução não passou de 2,5%. Inclusive o número de assessores especiais da presidência quase dobrou em relação ao final do governo Temer. É lá que fica o denominado "Gabinete do Ódio" supostamente comandado pelo vereador do Rio de Janeiro Carlos.
Falando nisso, também acaba de ser desmontada outra farsa inacreditavelmente repetida entre os bolsonaristas. Um deles chegou a bater no peito, em depoimento à CPMI das fake news, para dizer que se orgulhava de não receber um centavo do governo. Leandro Prazeres acabou de revelar, no jornal O Globo, que estatais brasileiras pagaram por ao menos 28 mil anúncios em alguns desses canais de apoio ao presidente que disseminam teorias conspiratórias e ataques ao STF.
Também não é verdade que, com Bolsonaro, acabou o dinheiro para a grande mídia. Na verdade, a coisa é mais simples do que parece. O presidente só começou a irrigar o quintal de quem fala bem dele. Para despontar como a maior beneficiária desse processo, a Record topou até falar em "supernotificação" da Covid-19.
Bolsonaro, sejamos sinceros, não cumpriu nem a promessa de abrir a tal "Caixa-Preta" do BNDES. Aliás, abriu e não encontrou nada. R$ 48 milhões de dinheiro público no ralo. E, para quem prometeu austeridade, gastar a cifra mais alta dos últimos oito anos no cartão corporativo também não é exatamente um demonstrativo de correção.
Nas relações exteriores, Bolsonaro sempre disse que aboliria o "viés ideológico" para privilegiar os interesses nacionais. Mas, uma vez no governo, abriu crises gratuitas com importantes parceiros como a Liga Árabe, França e China, por exemplo; mandou às favas as relações para apostar em acordos bilaterais com países liderados por figuras ideologicamente próximas.
A postura subserviente do alegado patriota em relação a Trump beira o patético. A cada medida contrária aos interesses brasileiros, o presidente norte-americano compensa com declarações vagas de apoio que levam a base bolsonarista à loucura – ainda que, na prática, elas não costumem representar nada. Agora a alegria é com os 2 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina – que, como se sugere até aqui, não serve para enfrentar o coronavírus.
Aliás, quem votou em Bolsonaro porque queria ir para a Disney e o dólar estava muito alto deu com a cara na porta dos Estados Unidos por uma questão sanitária. O Brasil agora é o Cascão do mundo. E o dólar já vinha bem acima dos 4 reais antes mesmo da declaração de pandemia pela OMS. Quando a crise já dava sinais de escalada, Paulo Guedes dizia que ainda assim o Brasil poderia crescer de 2,5% em 2020.
Paulo Guedes é um vendedor de sonhos. Mesmo com a reforma da previdência – que antes os bolsonaristas chamavam de desumana – , não entregou nada além do que o pior crescimento nos últimos três anos. Para quem tanto reclama sobre o Congresso não deixar o presidente governar, fica um pouco esquisito sequer enviar uma proposta de reforma administrativa e fiscal.
Mas o jogo virou. E os bolsonaristas finalmente têm um motivo para comemorar. Hoje, o Brasil ultrapassou a marca de 30 mil mortes pela Covid-19 – tirando, claro, a galopante subnotificação que o governo não se esforça em superar.
É a cifra que Bolsonaro havia prometido ainda em 1999, numa entrevista ao programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes. Lá, o então deputado disse, dentre outras coisas, que o voto não resolvia nada aqui no Brasil e que seria preciso fazer o trabalho que o regime militar não fez, "matando uns 30 mil".
Seria evidentemente muito injusto dizer que todas essas mortes só aconteceram graças ao presidente. Morreu gente em todo lugar do mundo. Até na Nova Zelândia, que é apontada como exemplo de gestão nessa crise.
Mas não restam dúvidas de que, sob o comando de Bolsonaro, o Brasil fez absolutamente tudo errado no que diz respeito ao enfrentamento da pandemia. Quando o País chegou a 5 mil mortes, 12 dias depois de reivindicar a responsabilidade caso a situação se agravasse, o presidente disse que não iam colocar essa conta no seu colo. Impossível.
O Brasil foi o único país do mundo a demitir dois ministros da Saúde no meio dela. Essas demissões seriam justificáveis, claro, se motivadas pela incompetência na contenção da curva de contágios ou qualquer coisa nesse sentido. Mas, apesar de todos os erros, Mandetta e Teich foram demitidos justamente pelos seus acertos. O primeiro por recomendar o isolamento social e o segundo, por não bancar a cloroquina.
A obsessão de Bolsonaro pela cloroquina, aliás, é parte bastante substantiva do problema. Mesmo sem qualquer comprovação científica – fora um estudo francês já suficientemente contestado e outro chinês in vitro – , o presidente do Brasil começou a fazer propaganda da droga e obrigou o Exército a produzi-la em massa.
Como parlamentar, Bolsonaro já havia brincado de médico ao assinar e aprovar uma lei autorizando a distribuição da fosfoetanolamina – composto químico que ficou conhecido como "pílula do câncer". Uma irresponsabilidade, sem dúvidas, mas o caso da cloroquina é ainda pior, considerando que o medicamento pode trazer efeitos colaterais severos e, além de não ajudar no tratamento da Covid-19, também aumenta significativamente o risco de morte por arritmia cardíaca.
Bolsonaro encheu o Ministério da Saúde de militares e fez de tudo para sabotar os técnicos, colaborando efusivamente para transformar o Brasil no epicentro da pandemia no mundo.
Isso sem contar a vasta rede de desinformação que tem colaborado para aumentar a pilha de corpos no País. Hoje os bolsonaristas são os principais disseminadores de notícias falsas sobre o novo coronavírus. Segundo um levantamento da plataforma Aos Fatos, 19 dos 22 deputados que divulgaram fake news em torno do tema são governistas.
São boatos escandalosamente mentirosos sobre uma suposta dominação mundial comunista; curas miraculosas; caixões sem mortos; laudos médicos falsos, etc. No interior da Bahia, uma família duvidou do diagnóstico do ente falecido e, indo contra todas as recomendações sanitárias, resolveu abrir o caixão no velório para conferir o que tinha lá dentro. Resultado: mais cinco membros dela foram infectados.
Enquanto retarda todo tipo de socorro a pessoas, entes federativos e empresas, o presidente segue dando exemplo do que não fazer no meio da pandemia: vai para a rua, promove aglomerações, limpa o nariz em idosa e domingo sim e outro também excita um grupo cada vez menor e fanático que pede golpe.
Essa, aliás, deve ser a outra promessa que ele também fez na entrevista de 1999 que pode cumprir, além da guerra civil que encoraja a partir dos fanáticos que estão acampados em Brasília. Dia desses o presidente até compartilhou live de um pretenso jornalista com o jurista Ives Gandra em que discutiam a viabilidade de usar o artigo 142 da Constituição para uma intervenção das Forças Armadas em favor do Poder Executivo.
Coincidentemente ou não, é justo quando o Brasil ultrapassa a marca dos 30 mil mortos que chegamos mais próximos do que nunca, na Nova República, de uma ruptura institucional e de uma guerra civil. A ideia, o presidente confessa, é armar todo mundo.
Bolsonaro é fissurado pela morte. E isso pelo menos desde quando defende, de peito aberto, a legalização de grupos de extermínio no Rio de Janeiro. Como deputado, homenageou e empregou milicianos. Esse é o seu habitat natural.
Como presidente, incentivou como nunca se viu a destruição ambiental; extinguiu radares pelo tempo que conseguiu nas rodovias federais; e, junto aos líderes da Nicarágua, Turcomenistão e Belarus, tem feito tudo que pode em favor da disseminação do vírus. Ele chegou a dizer que esperava que 70% da população brasileira fosse infectada.
Bolsonaro poderia ter feito da crise sanitária uma oportunidade para mostrar que estavam todos errados e mediar a formação de um consenso mínimo para salvar o maior número possível de vidas.
Apesar de todos os erros, até o dado como politicamente morto Sebastian Piñera, no Chile, conseguiu o feito improvável. A cartilha é básica: demonstrar sensibilidade com as vidas perdidas e equilíbrio para sopesar as perspectivas de especialistas em saúde pública e economia diante da realidade do País.
Em vez disso, Bolsonaro preferiu seguir incendiando uma base de apoio cada vez mais fanática e paranoica para bancar a pose insustentável de antissistema. Nem que o custo disso seja carnificina – ele simplesmente não se importa.
30 mil mortes oficialmente admitidas. E contando. Ainda não sabemos se estamos no pico. Seja como for, é muito. São mais de 30 mil famílias destroçadas. E nenhuma nota de pesar. Só um "e daí?". Afinal, como disse o presidente, morrer "é o destino de todo mundo".
Fora isso, temo que não haja mais nada para um bolsonarista convicto comemorar. "Grande dia" para o presidente e seus apoiadores. Péssimo para o Brasil.
* Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.
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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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