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Covid-19: Médico relata "problema gigantesco por falta de alinhamento"

Entendendo Bolsonaro

04/06/2020 22h19

Movimentação de ambulâncias, pacientes, enfermeiros, bombeiros e socorristas em hospital regional em Brasília (Crédito: Sérgio Lima/Poder360)

* Cesar Calejon

Durante o primeiro semestre de 2020, todas as principais nações do mundo, por meio das suas respectivas administrações federais, adotaram medidas legislativas restritivas considerando o fluxo de pessoas, produtos e serviços para conter o avanço da Covid-19.

No Brasil, contudo, a crise sanitária combinou-se com o bolsonarismo e a instabilidade política preexistente e ganhou novos contornos, o que gerou múltiplos planos de conflito: (1) dentro do próprio governo federal; (2) entre os níveis federativos (governadores e prefeitos estaduais) e (3) com o Poder Judiciário.

O resultado é a formação da tempestade perfeita para o Brasil. Um cenário de incertezas, descrédito internacional, falta de harmonia institucional e recessão econômica poucas vezes – ou talvez jamais – verificado na história da República, justamente durante a maior pandemia dos últimos cem anos, pelo menos.

Como ressaltado em reportagem para este blog, a ausência do federalismo cooperativo e a disseminação de informações falsas ou imprecisas impedem não somente a formulação de políticas públicas assertivas para conter o vírus de forma adequada, mas ainda estimulam ideias e posturas arriscadas entre a parcela da população que é mais radical e fiel ao presidente.

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Para entender como a postura do bolsonarismo frente à pandemia compromete a atuação dos profissionais de saúde, o blog conversou com Alexandre Kawassaki, médico pneumologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), do Hospital Nove de Julho e do Hospital Israelita Albert Einstein.

De acordo com ele, parte da população ainda não entendeu completamente a gravidade do problema. "(A crise da Covid-19) está bem feia. Durante as últimas oito semanas, nossa equipe vem trabalhando todos os dias. Sem parar. Não existe folga. Eu venho trabalhando ativamente contra a doença ou em processos de educação", relatou o pneumologista momentos antes de ser interrompido por uma enfermeira que o solicitava no atendimento clínico. "Estamos totalmente voltados à Covid-19. É uma avalanche", complementou.

O médico afirma que muitos profissionais de saúde apresentam quadros de insônia e estresses físico e psicológico. "Mudou tudo. Parei de fazer Aikido e fiquei cerca de um mês fora de casa para proteger a minha família", conta.

Considerando a recomendação do Ministério da Saúde pelo uso da cloroquina e os ataques às medidas de isolamento social, Kawassaki ressalta a importância da ciência. "Esses temas não podem ser politizados desta maneira. Por isso temos a ciência (…) Eu gostaria muito que funcionasse (a cloroquina), mas, em termos de eficácia clínica, os estudos científicos demonstraram o contrário", acrescenta.

Com relação ao isolamento social, ele diz que acredita ser o ideal. "Conseguimos achatar a curva (de infecção da doença). Precisamos agora de métodos que sejam efetivos, aplicáveis e as pessoas respeitem. Além disso, precisamos testar (os brasileiros) de forma ampla e irrestrita. Em Nova Iorque, por exemplo, todo o sistema de saúde colapsou. Por enquanto, estamos conseguindo evitar isso, mas estamos no limite", alerta o médico, que também foi reconhecido pela rede social LinkedIn com o prêmio Top Voice da Saúde: profissionais de saúde, operando na linha de frente ou com experiência em saúde pública, epidemiologia ou inovação médica que vêm compartilhando experiências e oferecendo informações confiáveis sobre a Covid-19.

Informações confiáveis e coordenação entre os diferentes níveis federativos são dois elementos cruciais para o enfretamento à pandemia, portanto. "Esse é um momento de extrema gravidade e precisamos de estabilidade política. Informações desencontradas geram o caos. (…) Cria-se um problema gigantesco por falta de alinhamento de informações. Pior para o povo em geral", explica o médico.

Por exemplo, tradicionalmente, doenças que atacam o sistema respiratório tendem a se agravar durante o inverno, porque a atmosfera fica mais seca e estável, o que faz com que as partículas circulem menos no ar.

"Contudo, não sabemos ainda se isso também se aplica (ao novo coronavírus). Estamos estudando. Aparentemente, não existe sazonalidade em virtude do clima. Veja o que está acontecendo em vários estados brasileiros que têm o clima extremamente quente durante todo o ano, basicamente", observa Kawassaki.

Um dado interessante constatado pelo médico diz respeito ao medo causado pela pandemia nas pessoas que precisam tratar outras doenças. "Foi observacional. Os casos sumiram, praticamente: infartos, apendicites, crises de asma, por exemplo. As pessoas estão com medo de buscar o tratamento necessário por conta do risco de se contaminarem com a Covid-19. O problema é que, dependendo do caso, quanto mais agudo é o quadro identificado, menor é a chance de eficácia do tratamento", salienta.

Além disso, segundo ele, algumas patologias foram desagravadas por conta da redução da poluição, do estresse e de doenças virais que seriam transmitidas caso o fluxo de pessoas estivesse liberado sem as ações de isolamento. "Essas medidas reduziram tudo isso."

Para Kawassaki, além do alinhamento e da veracidade das informações, outro aspecto fundamental na luta contra a pandemia é a urgência pela humanização no tratamento dos pacientes.

"Nunca fomos tão desumanos e isso é o que mais me incomoda na medicina atual (…) Uma das coisas mais assustadoras que eu já vivenciei na minha carreira médica foi entrar nos 'COVIDários' hospitalares e, se é assustador para nós, profissionais da saúde, imagine para quem está internado", reflete o médico.

Ainda de acordo com ele, o paciente que recebe os procedimentos de respiração artificial muitas vezes acorda absolutamente desorientado. "O que nós geralmente usávamos para enfrentar este momento era a presença dos familiares ou amigos muito próximos. Infelizmente, nós perdemos isso. Então, hoje, precisamos ser criativos e inovar, com a videochamada, por exemplo, que não é o ideal, mas ajuda. Em linhas gerais e em todos os âmbitos e sentidos, precisamos ser mais empáticos (…) Qualquer atitude que possa confortar um pouco é de grande valia. Nessas horas, precisamos ser mais humanos do que médicos, nos despir da vergonha e acolher o quanto for possível aquele que está na cama, porque poderia ser qualquer um de nós", conclui o médico.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).

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