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Entendendo Bolsonaro

Monica Benicio: "Vida de Marielle não foi em vão e a morte também não será"

Entendendo Bolsonaro

23/09/2020 20h08

"A segregação está subentendida até na forma de perceber 'a cidade normal' e as 'favelas'. As favelas são a cidade. Precisamos mudar a forma como a sociedade olha para esta questão" (Crédito: Paula Rodrigues/Ponte Jornalismo).

[RESUMO] Esta é a primeira entrevista de uma série iniciada pelo blog, voltada às eleições municipais de 2020. Ao longo das próximas semanas, conversaremos com candidatas e candidatos, de diferentes partidos, para conhecer a sua visão de cidade e de que maneira estas figuras pretendem contribuir para a solução dos múltiplos impasses pelos quais atravessa o Brasil. As entrevistas estão sendo transmitidas ao vivo no perfil do jornalista Cesar Calejon, no Instagram. Acompanhe!

* Cesar Calejon

A menos de dois meses das eleições presidenciais estadunidenses e municipais no Brasil, as duas maiores sociedades das Américas vivem um momento de luta contra o racismo, a misoginia e a LBTIfobia. Diversos fatos e protestos desta natureza aconteceram em ambas as nações ao longo dos últimos meses e formam a principal narrativa destas disputas eleitorais até o presente momento.

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Para compreender esta batalha por igualdade e as suas respectivas implicações no cenário político brasileiro, esta semana o blog conversou com Monica Tereza Benicio, arquiteta, ativista dos direitos humanos, pré-candidata a vereadora na cidade do Rio de Janeiro pelo PSOL e ex-mulher de Marielle Franco.

"Eu entrei para a vida pública por meio da principal tragédia que aconteceu na minha vida. Diante deste cenário, foram dois anos e meio de muita luta nessa busca por justiça, não somente no Rio de Janeiro e no Brasil, mas ao redor do mundo. À medida que o tempo passou, eu fui compreendendo e me colando nesta posição de defensora dos direitos humanos, porque a minha atuação política era acadêmica, enquanto eu estava dedicada ao meu mestrado", introduz Benicio.

Segundo ela, a participação e o carinho popular foram essenciais neste período.

"Com esta construção coletiva, eu me reencontrei. Então, essa pré-candidatura nasce com muita coletividade, muita escuta e proximidade com pessoas que têm experiência com movimentos sociais. Assim, o meu objetivo principal é oferecer essa representatividade que vem sendo negada há muito tempo para a imensa maioria das pessoas que vivem no Rio de Janeiro", explica.

Ou seja, de acordo com ela, as iniquidades e a falta de representação popular são os principais problemas da cidade do Rio de Janeiro, atualmente. "Nossa cidade, assim como as outras capitais do Brasil, é marcada por uma desigualdade social muito acentuada. A vida política vem sendo formulada por homens brancos, heterossexuais e fundamentalistas há séculos", observa a candidata.

"Assim", prossegue ela, "o Rio de Janeiro tornou-se uma cidade profundamente contaminada pela milícia e que tem, como projeto de poder, a execução da nossa juventude negra. A Marielle (Franco) falava muito sobre esse tema e mudar esta situação era a principal pauta dela. Essa luta precisa de representatividade. (…) É impossível falarmos de direito à cidade e democracia se não existe segurança para as mulheres, para os pretos, partos e LGBTIs. Enfim, para a grande maioria da população do Rio de Janeiro, cuja política institucional tornou-se um 'laboratório', um tipo de esgoto da política nacional do qual saiu a família Bolsonaro".

Benicio aponta, ainda, as formas de elitismo histórico que estão expressas no cerne da ascensão do bolsonarismo, e como isso afeta a luta por representatividade nos espaços de poder. "Trata-se de um governo que usa o ódio e esses elitismos, que sempre existiram no Brasil, como plataforma política. As consequências práticas são as piores possíveis, porque, com este tipo de gestão, muitas pessoas se sentiram empoderadas a expressar publicamente este tipo de postura. O bolsonarismo escancarou e inflamou ainda mais este cenário", ressalta.

"O bolsonarismo representa, para mim, o avesso do que nós entendemos como democracia. A política deste governo despreza os valores democráticos. Essas são as principais consequências práticas: retirada de direitos adquiridos, segurança pública, falta de representatividade etc. A conjuntura é muito dramática e isso se manifesta, essencialmente, na formulação das políticas públicas e no extermínio da população preta, parda e LGBTI", acrescenta.

Neste sentido, Boaventura de Sousa Santos, um dos sociólogos mais influentes da atualidade, ressalta em seu novo livro, a terceira edição da renomada obra Toward a New Legal Common Sense: Law, Globalization and Emancipation (em tradução livre, Rumo a um Novo Senso Legal Comum: Lei, Globalização e Emancipação), que, para fazermos a transição do modelo de democracia representativa para o que ele chama de democracia participativa, faz-se necessário estruturar as forças sociais de forma a permitir a participação mais efetiva das pessoas que hoje ficam à margem dos processos sociais, políticos e econômicos.

"Essa política participativa define tudo o que a nossa campanha representa e o que nós acreditamos. Caso eleita, é este o projeto que a nossa candidatura pretende levar para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, que hoje é uma casa extremamente fundamentalista e que não compreende a riqueza e a diversidade da sua própria população, seja em termos de gênero, economia, religiosidade etc.", garante Benicio.

Para ela, que se dedicou à pesquisa do direito à cidade, é necessário ouvir as pessoas que experimentam e constroem a municipalidade. "Precisamos de um programa que esteja em constante movimento para que a gente possa ampliar a discussão e construir um modelo que funcione, de fato, para a maior parte das pessoas. Eu sou uma cria da Maré, formada em arquitetura e que estudou o direito de acesso à cidade. Atualmente, a segregação está subentendida até na forma de perceber 'a cidade normal' e as 'favelas'. As favelas são a cidade. Precisamos mudar a forma como a sociedade olha para esta questão, porque isso faz com que, na prática, a polícia seja sempre mais presente nas nossas comunidades do que a boa prática de políticas públicas", ilustra a candidata.

Desta forma, ela acredita que a participação mais ampla, sobretudo das camadas mais pobres da população brasileira na vida sociopolítica e econômica da nação, é "fundamental para construir um novo projeto de país. Atualmente, temos uma sociedade extremamente hipócrita e que apresenta um nível baixíssimo de representatividade efetivamente popular. Por exemplo, o Brasil é o país que mais mata pessoas transgênero do planeta e, paradoxalmente, também é a nação que mais consome pornografia transexual em todo o mundo. Mulheres, pretos, pardos e LGBTIs formam a maioria da população e são subrepresentadas nas esferas de poder do Brasil. Isso vai mudar".

Para Benicio, Marielle Franco foi executada de uma forma bárbara por um propósito. "(O crime foi cometido) com a intenção de dar um recado político: eles não querem que corpos como o da Marielle, que era uma mulher, favelada, negra e lésbica, ocupem os espaços de poder. Tudo o que ela representa significa uma afronta ao que está estabelecido no Rio de Janeiro e no Brasil por meio do bolsonarismo", complementa.

As investigações sobre os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes correm sob sigilo judicial. "É preciso que a gente esteja atenta e cobre, sobretudo, quem foram os mandantes e quais foram as motivações para os assassinatos. Infelizmente, ainda não temos respostas para estas questões. Apesar de ser um inquérito denso e de difícil compreensão, de fato, precisamos considerar que mais de dois anos e meio para explicar a morte de uma parlamentar eleita democraticamente em uma das maiores cidades do Brasil é inaceitável", pondera a arquiteta.

Contudo, ela também salienta que, se existe alguma beleza em meio ao caos, é que o recado político não funcionou. "A resposta social foi avessa ao que eles queriam fazer quando executaram a minha companheira. A população não comprou o medo e esta proposta de instalar o caos por meio da barbárie. Pelo contrário, a imagem da Marielle cresceu como símbolo desta luta por igualdade e diversidade e foi construída coletivamente. Assim, a vida de Marielle Franco não foi em vão e a morte dela também não será", finaliza Benicio.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).


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