Em debate, Trump escancara projeto supremacista branco
* Vinícius Rodrigues Vieira
A grosseria do populismo de direita não é apenas um elemento estético, superficial, mero artifício retórico dessa corrente política. Trata-se de uma expressão ética, no sentido de revelar valores. Ao se recusar a condenar grupos supremacistas no primeiro debate presidencial da corrida americana, realizado ontem (29), o candidato à reeleição Donald Trump escancarou de vez o seu alinhamento com o nacionalismo branco, colocando-se claramente contra a América multirracial, que se consolidou nos últimos 30 anos, com a redução acelerada da proporção de brancos em sua população, hoje correspondentes a pouco mais de 60% dos moradores do país.
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Como resumiu Van Jones, ex-assessor do governo Obama e comentarista da CNN, "apenas três coisas aconteceram [ontem] à noite: 1 ) Trump (como indivíduo) recusou-se a condenar a supremacia branca; 2 ) Trump (como presidente dos EUA) recusou-se a condenar a supremacia branca; 3 ) Trump (na qualidade de comandante-em-chefe) recusou-se a condenar a supremacia branca perante o mundo" (tradução livre).
Instigado pelo democrata Joe Biden a condenar o grupo Proud Boys, supremacista e de clara inspiração nazista, Trump respondeu: "Proud Boys. Stand back and stand by". Ou seja, o presidente agiu como se ordenasse a uma tropa sob seu comando para se controlar e não avançar. Trump foi além e emendou dizendo que a violência é um problema da esquerda – não da direita -, condenando as ações Antifa – antifascista.
Não é apenas ultrajante a sinalização de Trump a neofascistas, mas também contraditória para alguém que jurou lealdade à pátria quando investido em sua atual posição. Afinal, segundo rascunho de um relatório do Departamento de Segurança Doméstica (o Department of Homeland Securtiy), grupos supremacistas brancos são a principal ameaça terrorista que os EUA enfrentam. Houvesse um mínimo de decência, renunciaria à candidatura. Porém, à base republicana-trumpista importa mais a ressurreição da paz sem voz imposta aos negros e demais minorias durante a maior parte da história americana.
Trump não é um ponto fora da curva, seja entre os americanos, seja no mundo. O populismo de direita, aliás, parece ser indissociável de ideais supremacistas, ainda que se mova aparentemente ao centro. O Aliança pelo Brasil, partido que Jair Bolsonaro ambiciona fundar, flerta, conforme já demonstrei neste blog, com a noção de superioridade branca. Haja vista os limites de termos um partido defensor da "pureza" ariana, resta ao bolsonarismo enfatizar a dimensão ocidental do Brasil via religião – elemento-chave dos nacionalistas hindus, liderados pelo primeiro-ministro Narendra Modi.
Não se enganem: o principal inimigo dos populistas de direita não é o "comunismo" chinês, o globalismo ou a esquerda. Supremacistas brancos ou religiosos, tais populistas enxergam nas minorias sociológicas de suas nações – seja com não brancos e não cristãos no Brasil e nos EUA ou com a população não Hindu, particularmente muçulmana, na Índia – uma quinta coluna que deve ter uma morte lenta, como aquela provocada pelas mãos das forças de segurança do Estado que, em nome de manter a lei e a ordem, sangram vidas humildes e humilhadas.
Que os americanos ainda indecisos e votantes de Trump sem convicção tenham percebido depois desta noite que, em 3 de novembro, não se trata de escolher o candidato menos ruim. Os cidadãos dos EUA podem tomar o caminho para a servidão que qualquer projeto supremacista implica ou optar pela continuidade, ainda que capenga, do inacabado sonho americano de democracia. Se originalmente ele estava restrito a descendentes de colonos anglo-saxões, foi a fórceps, durante o pós-Segunda Guerra, que acabou parido pelos filhos e netos dos deserdados e famintos dos quatro cantos do mundo. Que sua obra não seja ceifada em pleno desenvolvimento.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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