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Entendendo Bolsonaro

Eleição americana decretará fim do bolsonarismo ou do Brasil

Entendendo Bolsonaro

01/11/2020 23h51

A sobrevivência do bolsonarismo enquanto âncora ideológica do governo Bolsonaro está em xeque na disputa eleitoral americana (Crédito: Eva Marie Uzcategui/Bloomberg/Getty Images).

Vinícius Rodrigues Vieira

Se no plano interno o presidente Jair Bolsonaro vem camuflando seus ímpetos autoritários desde a associação com o Centrão, o bolsonarismo segue de vento em popa na política externa. No curto prazo, um único evento pode suprimir o populismo de direita do mapa político brasileiro: a vitória do democrata Joe Biden nas eleições para a Casa Branca, que ocorrem nessa terça (3).

Contraditoriamente, porém, a saída do "amigo" bolsonarista Donald Trump da presidência dos EUA tem o potencial de ser a conjuntura crítica a levar ao fim do Brasil – pelo menos do jeito que o conhecemos. O fato de um único evento levar a dois caminhos contraditórios entre si merece explicação bastante detalhada. Para tanto, elaboro quatro cenários a seguir – todos eles plausíveis à luz da plasticidade que Bolsonaro tem demonstrado no poder, o que implica, às vezes, contradizer o próprio bolsonarismo.

Este movimento político-cultural é aqui entendido como a versão brasileira do populismo de direita do século XXI, centrado na premissa da superioridade cultural-racial de um grupo (geralmente branco, de origem judaico-cristã), ao qual caberia retomar valores supostamente conservadores, tolhidos pelo cosmopolitismo da globalização (redefinida pela nova direita como marxismo cultural).

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Cenário 1 – Biden isola Bolsonaro e demais populistas de direita, os quais se unem ao brasileiro: o democrata cumpre sua promessa de levar a cabo uma agenda ambiciosa em meio ambiente e direitos humanos, reconstruindo pontes com a Europa Ocidental (leia-se Alemanha e França). Neste cenário, o acordo Mercosul-União Europeia é enterrado de vez, Bolsonaro radicaliza sua política externa, tomando o lugar de Trump como principal voz do populismo de direita e aliados tácitos, notadamente governos autoritários de cunho religioso, seja no Oriente Médio, seja na Europa Oriental, em especial a Hungria de Viktor Orbán. Economicamente, nos tornamos ainda mais dependentes da venda de matérias-primas para a China, que, porém, encontra mercados fornecedores alternativos, deixando-nos empobrecidos.

Neste cenário, o chanceler Ernesto Araújo realiza o sonho de transformar o Brasil em pária internacional de vez – não um suposto defensor da liberdade, mas um país isolado por quase tudo e todos. Ademais, Berlim e Paris podem flertar com a expulsão de Budapeste do bloco, que veria em Brasília, sob Bolsonaro, um aliado ainda mais próximo. Nossa política externa se aprofunda em pautas estranhas a nossa história, como a defesa de valores supostamente cristãos e distanciamento do Sul Global democrático, como ficou evidente quando recusamos a nos juntar a África de Sul e Índia (governada pelo populista de direita e nacionalista Hindu Narendra Modi) para defender a quebra de patentes em vacinas. É o oposto do que ocorreu há quase 20 anos, quando, sob o governo supostamente neoliberal de FHC, nos unimos a essas duas democracias para defender o direito à suspensão dos direitos de propriedade intelectual de medicamentos essenciais ao combate às crises de saúde pública.

Cenário 2 – Biden ignora Bolsonaro, que busca laços com a China e Índia: em nome da sobrevivência de seu governo (e dos negócios políticos de sua família) num cenário em que Washington e Bruxelas flertam com a imposição de sanções contra Brasília, Bolsonaro vira o melhor amigo de Xi Jinping e dá continuidade à aproximação iniciada no começo deste ano com Modi – tudo em busca de capital para tirar a economia brasileira do buraco e saciar a sanha do Centrão por recursos.

Tal movimento implicaria num rompimento com os bolsonaristas, a remoção (ainda que tardia) de Araújo da cadeira de Rio Branco e a concessão de mais espaço no Itamaraty a liberais econômicos de fato (não aos puxa-sacos de qualquer governo, à esquerda e à direita). Seria, para ironia da história, o momento Geisel de Bolsonaro – uma referência ao presidente da ditadura que via no capitão um "mau militar" e que foi responsável por uma política externa pragmática, caracterizada, sobretudo, pelo distanciamento dos Estados Unidos. Estes, por sua vez, buscariam reconstruir pontes conosco no longo prazo.

Cenário 3 – Biden abre-se a Bolsonaro, que segue firme na agenda anti-China: depois de alguns meses, percebendo que Bolsonaro pode cair no colo da China, Biden ensaia já uma reaproximação com o melhor amigo de Trump. Sem ter que prestar lealdade canina ao novo mandatário americano, o presidente brasileiro aprende que há algo chamado barganha e, assim, exige concessões de Washington para não se aliar a Pequim. Ponto para o Brasil, que pode ganhar tempo com o gigante asiático e ensaiar a manutenção de um jogo duplo benéfico para nós no contexto da Nova Guerra Fria, entre China e EUA. Bolsonaro vira um novo Vargas, que, nos anos 1930 e 1940, jogou no limite com Roosevelt e Hitler, até se juntar aos aliados na Segunda Guerra, em 1942.

Cenário 4 – Trump mantém-se no poder, e Bolsonaro se enche de razão: Araújo dá prosseguimento ao processo de destruição da casa de Rio Branco. Brasil reforça sua condição de domínio/colônia dos EUA, conforme já argumentei neste espaço, levando governos estaduais a ignorarem ordens federais em política externa. Já antevejo João Doria ou qualquer outro governador que sucedê-lo em 2022 mandando ao Aeroporto de Guarulhos e ao Porto de Santos tropas da polícia militar para liberar mercadorias vindas da China – inclusive a Coronavac e os insumos necessários a sua fabricação no Brasil. Ficamos à antessala da guerra civil. Exagero? Bem, da última vez que o poder central levou ao limite a ignorância das demandas do estado mais poderoso da nação, tivemos uma guerra civil – verdadeiro nome que devia receber a revolução constitucionalista.

Tal cenário não é implausível mesmo considerando que a Anvisa já autorizou o Instituto Butantan, de São Paulo, a importar insumos necessários à produção da Coronavac. Sendo Doria o principal rival de Bolsonaro no momento, o presidente tende a aumentar as rusgas com São Paulo até as eleições de 2022. Até porque, muito embora o vice-presidente Hamilton Mourão já tenha dito que o governo federal comprará a Coronavac paulista, Bolsonaro deixou claro que é sua a caneta que tem tinta – ou seja, a palavra final é dele. Ora pragmático, ora ideológico, o presidente é, portanto, imprevisível, o que me leva a não descartar este cenário, aparentemente apocalíptico.

Considerando que Bolsonaro não dá mostras de que vai tratar a política externa como instrumento de Estado – entidade estranha ao vocabulário político do populismo de direita e do fascismo que lhe inspira -, é inevitável concluir que os cenários 1 e 4 são os mais plausíveis. Nesse caso, preparem o estômago para passar fome: a Venezuela será aqui e, de fato, como disse há uma semana o presidente a um cidadão em Brasília, não adianta tabelar o preço do arroz: a ruína chegará para todos exceto para aqueles que, como os apoiadores de Nicolás Maduro, são militares que aderiram ao poder e deram as costas para a pátria.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

 

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