Topo

Entendendo Bolsonaro

Trump precisa de Pensilvânia ou Suprema Corte para vencer

Entendendo Bolsonaro

03/11/2020 10h17

(Crédito: Andrea Hanks/Casa Branca)

* Bruno Frederico Müller

Olhando em retrospectiva para as eleições americanas de 2016, notamos um grande número de mal entendidos que, na véspera das eleições de 2020, acabam por prejudicar as análises. O principal deles é o suposto "erro sistemático das pesquisas eletorais", algo que não corresponde à realidade.

As pesquisas de voto popular, em 2016, davam 3 pontos percentuais de vantagem para Hillary Clinton, e a candidata democrata acabou com uma vantagem de 2% sobre Donald Trump, bem dentro da margem de erro. O mesmo padrão se seguiu em quase todos os estados, exceto um grupo específico: os estados do "Cinturão da Ferrugem" – Minnesota, Wisconsin, Michigan, Ohio e Pensilvânia, antigos estados industriais que foram afetados pela desindustrialização do país.

O que houve na primeira eleição de Trump foi, sobretudo, uma combinação de excesso de confiança do Partido Democrata e de repúdio da mídia à candidatura do republicano, que fez com que ambos assumissem a vitória de Hillary Clinton antes do tempo, aliada a uma estratégia de campanha ousada e inteligente de Trump, voltada para mudar o voto nos estados do Cinturão da Ferrugem mencionados, dos quais apenas Ohio era um "estado-pêndulo", e os demais, tradicionalmente democratas.

Mais sobre as eleições americanas:

Clinton confiou demais em sua base eleitoral nesses estados e não fez, ou fez muito pouco campanha por lá, mesmo Trump gastando milhões de dólares em comerciais de TV e comícios. O resultado: ex-trabalhadores industriais brancos sem educação superior, desempregados ou subempregados, votaram em peso em Donald Trump, movidos pela sua retórica anti-establishment e populista, sua defesa da indústria nacional e sua crítica aos acordos de livre comércio (apoiados pelos dois grandes partidos) que exportaram indústrias para fora dos Estados Unidos, enquanto muitos eleitores democratas não se sentiram motivados a votar. A combinação dos dois fatores ajudou Trump a "virar" o voto em Wisconsin, Michigan e Pensilvânia, por menos de 1%, e essa virada foi o suficiente para a sua eleição. Sem essa mudança nesses três estados tradicionalmente democrata, Trump não teria sido eleito.

Ao todo, Trump teve 306 votos no Colégio Eleitoral, e esses três estados somam 46. Sem ele, Trump, mesmo vencendo Flórida e Ohio, os mais populosos "estados-pêndulo", teria apenas 260 votos no Colégio Eleitoral. Ou seja, sua margem de ação era muito estreita, mas ele conseguiu o que ninguém esperava: não só levar todos os "estados-pêndulo", mas três estados democratas, e vencer a eleição. Trump assumiu uma aposta arriscada, e saiu vitorioso.

2020: um cenário ainda mais desfavorável para Trump

Pois bem. Chegamos a 2020 com a pandemia do coronavírus com as suas catastróficas consequências para a economia americana. E, tradicionalmente, um presidente concorrendo a reeleição em tempos de crise econômica tende a ser derrotado. No dia 20 de outubro o jornal New York Times divulgou uma pesquisa mostrando que a confiança dos eleitores era maior em Biden para lidar com temas do coronavírus, união do país e até segurança e justiça. Na economia, Biden e Trump empatavam.

Além disso, houve uma correção nos métodos de pesquisa eleitoral, sobretudo em termos de escolaridade, para evitar os erros vistos em 2016. Mais pesquisas eleitorais nos estados têm sido conduzidas para garantir sua confiabilidade. Atualmente, Biden tem 9% de vantagem no voto popular, e o cenário otimista-realista dá a ele, no momento em que escrevo, segundo as pesquisas nos estados, 351 votos no colégio eleitoral. Vejamos o mapa eleitoral:

Mapa 1: Projeção do Colégio Eleitoral segundo as pesquisas em 2 de novembro de 2020. (Fonte: Site 270 to Win)

Os estados em azul são aqueles que, segundo as pesquisas mais recentes, os democratas lideram. Os vermelhos têm liderança republicana.

O cenário dos sonhos dos democratas incluiria ainda os estados de Iowa e Ohio, tradicionais estados-pêndulo, onde os democratas investiram bastante, e Texas, outrora bastião conservador cujas mudanças demográficas, especialmente o influxo de voto latino, o tem tornado cada vez mais competitivo. Os três apresentam vantagens de menos de 2 pontos percentuais na média das pesquisas, dentro da margem de erro, para Donald Trump. Isso levaria os democratas a uma contundente vitória por 413 votos no Colégio Eleitoral, uma "avalanche" como não se vê desde 1988. Pelo menos no Texas, uma virada democrata, embora não seja impossível, é improvável.

Outro motivo de confiança para os democratas é o número de pessoas que votaram antecipadamente (por correio ou presencialmente). Como esse se tornou um tópico de disputa ideológica, com Trump questionando a legitimidade desse tipo de voto, espera-se que mais democratas tenham votado antecipadamente que republicanos. Ademais, como vemos no Mapa 2, o número de votos antecipados superou todas as expectativas: nos Estados em azul escuro, só esta modalidade de voto já se aproxima ou até supera o número de votantes em 2016. Ao todo, os votos antecipados já equivalem a 71,6% dos votos totais de 2016. 2020 caminha assim para quebrar recordes de participação popular nas eleições modernas e, historicamente, o maior número de votantes favorece o Partido Democrata, enquanto o Partido Republicano é o partido da supressão de votos, cassando registros, reduzindo o número de postos de votação, exigindo documentos para votar etc.

Mapa 2: Total de votos antecipados como percentual de votos na eleição de 2016. (Fonte: Site U. S. Elections Project)

Aparentemente os democratas têm, assim, uma vantagem confortável e chegam ao dia da eleição confiantes na vitória. Há, porém, alguns obstáculos e armadilhas no caminho que impedem qualquer analista, escaldado com a eleição de 2016, de proclamar qualquer resultado antes do tempo.

Obstáculos e armadilhas no caminho de Joe Biden

Diferente do que já virou senso comum afirmar, o caminho para a vitória nessas eleições não passa pela Flórida. Pelo menos no caso do Partido Democrata. Já vimos pelo Mapa 1 que democratas e republicanos, até o momento, dividem os dois estados-chave mais célebres e populosos: Ohio, com 18 votos no Colégio Eleitoral, pende para Trump. Flórida, com 29 votos, pende para Biden. Mas a vantagem de Biden na Flórida está numa média de 1,5%, segundo o site FiveThirtyEight. A pesquisa mais recente dá-lhe uma vantagem de 3%, dentro da margem de erro. Embora os especialistas deem vantagem a Trump em Ohio, a pesquisa mais recente divulgada no mesmo site dá vantagem a Biden por 4%.

Agora entramos na primeira armadilha para o candidato democrata. Flórida e Ohio, como visto, não lhe dão uma margem suficiente para se sentir seguro. O que significa que ele precisa retomar das mãos de Trump os estados que ele tirou de seu partido em 2016: Wisconsin, Michigan e Pensilvânia. No primeiro, Biden tem uma vantagem formidável, entre 17% e 11% segundo as últimas pesquisas. Michigan oferece uma vantagem menor, mas ainda segura, que oscila entre 8% e 7%. Na Pensilvânia, a vantagem é ainda menor: entre 7% e 5%, já entrando na margem de erro.

Vamos demonstrar, no Mapa 3, como a Pensilvânia deverá ser o estado decisivo da eleição de 2020:

Mapa 3: Mapa eleitoral interativo criado pelo autor no site 270 to Win

A lógica do Mapa 3 é a seguinte: Biden lidera nas pesquisas nos estados do Arizona e Geórgia, tradicionalmente republicanos, por margens muito estreitas. Terá de contar, primeiro, com alta participação do eleitorado latino e negro, respectivamente, e também com o voto dos subúrbios (que no contexto americano significam cidades pequenas de classe média, próximas dos grandes centros urbanos), que em 2016 votaram em Trump.

O democrata também lidera nos estados-pêndulo de Ohio, Flórida e Carolina do Norte, mas também por margens estreitas. Nos três casos também terá que contar com alto comparecimento, votos dos subúrbios, além de trabalhadores sem diploma superior em Ohio, latinos e negros, na Flórida, e negros, na Carolina do Norte. E ainda torce para que, nos Estados do Sul, o voto das minorias não seja contido pelas táticas republicanas de supressão.

O ponto aonde quero chegar é que uma combinação de baixo comparecimento, supressão de voto e erros dentro da margem das pesquisas pode levar a uma vitória de Trump nesses estados. E, numa situação dessas, quem ganhar o estado da Pensilvânia vencerá a eleição. Como se vê no Mapa 3, os 20 eleitores deste estado serão suficientes para democratas ou republicanos, no caso de Trump conseguir manter a hegemonia republicana no Sul.

A vitória de Biden no voto popular é praticamente certa, mas, num país onde a eleição é indireta, isso não conta nada. Precisamos olhar para as pesquisas em cada estado para de fato entender os seus rumos. Quanto a Trump, o caminho para a vitória em 2020 é ainda mais estreito do que em 2016. É por isso que ele tem algumas cartas na manga.

Obstáculos (i)legais à vitória de Biden

Os problemas de Biden não terminam com uma vitória por estreita margem na Pensilvânia ou Flórida. Porque ele está se defrontando com um adversário disposto a virar as regras do jogo.

Em "Como as Democracias Morrem", os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamam atenção para algumas características de governantes autoritários e como eles podem se enraizar no poder: primeiro, é mais fácil evitar que eles cheguem ao poder do que de lá tirá-los, porque, uma vez lá, as chances são grandes de eles virarem as regras do jogo para se favorecer; segundo, candidatos a autocratas nunca devem ser vistos como "fracos" fáceis de manipular ou "palhaços" que estão apenas fazendo cena para ganhar uma eleição. Suas intenções devem ser levadas a sério, e se manifestam assim que a oportunidade aparece. Terceiro, uma vez no poder, eles devem tomar de assalto um dos poderes, de preferência o Judiciário através da Suprema Corte, árbitro da Constituição e das disputas entre poderes. Quarto, eles precisam de uma crise, ou pelo menos a crise facilita seu assalto autocrático às instituições.

A atitude de Donald Trump em relação à covid-19 não foi irracional, como muitos pensam – o mesmo vale para o presidente Jair Bolsonaro, como argumentei em outro artigo. A crise provocada pela inação de seu governo – sobretudo disfarçada de "defesa da liberdade" e "confiança no povo americano"  rende frutos agora. Além de uma militância altamente mobilizada e radicalizada – alguns mesmo dispostos ao confronto aberto , a crise pode render a Trump o truque que ele precisava para usurpar uma eleição que, mesmo com uma boa gestão do coronavírus, dificilmente venceria, pois ainda impactaria a economia, aumentaria o desemprego e causaria divisão na própria base republicana, se seguisse os procedimentos de lockdown e uso obrigatório de máscaras. Esse truque, com o qual ele flerta há meses, é declarar que os votos antecipados constituem fraude, ou que devem ser considerados nulos se não forem contabilizados até o fim da noite do dia da eleição.

Espera-se que os votos no dia da eleição sejam majoritariamente de apoiadores de Trump, o que significa que no fim de hoje teríamos uma "Miragem Vermelha", a aparente vitória de Trump nos estados – e no voto popular –, vantagem essa que desapareceria à medida que os votos antecipados fossem contabilizados. O Partido Republicano já mobilizou um exército de advogados para tentar anular o máximo possível desses votos antecipados. Os democratas, claro, responderão e, assim, o caso pode terminar na Suprema Corte – onde, um pouco por sorte, já que lá o cargo de Juiz da Suprema Corte é vitalício – Trump, seguindo a "receita" de Levitsky e Ziblatt, inflou a Corte com juízes não só ultraconservadores mas, sobretudo, leais. A vantagem dos conservadores na Suprema Corte agora é de 6 a 3, mais que suficiente para não só garantir uma vitória fraudulenta de Trump, mas para garantir uma governança de extrema direita por gerações por vir.

Em conclusão, essa é, sem dúvida, a mais importante eleição presidencial de toda uma geração. A já incompleta democracia americana está na balança, e nem mesmo as urnas podem ser capazes de salvá-la.

* Bruno Frederico Müller é doutor em História pela UERJ, escritor e tradutor.


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

Sobre os autores

Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

Sobre o Blog

Uma discussão serena e baseada em evidências sobre a ascensão da extrema direita no mundo.