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Entendendo Bolsonaro

200 mil mortos: o fim da margem de manobra da pandemia brasileira

Entendendo Bolsonaro

07/01/2021 19h57

Luto interminável: o Brasil enterra 200 mil vítimas pela covid-19. (Crédito: Getty Images/A.Coelho)

[RESUMO] Para o neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste, o Brasil transita, hoje, no limiar de um desastre sem precedentes, restando como única saída a decretação de um lockdown nacional para conter a disseminação da covid-19.

* Miguel Nicolelis

No momento em que o Brasil atinge oficialmente a trágica marca de 200 mil mortos em decorrência da covid-19 – a maior perda de vidas brasileiras associada a um único evento em toda a nossa história – avizinha-se no horizonte uma crise ainda mais grave do que aquela vivida na primeira onda da pandemia em 2020.

Como enumero abaixo, neste momento vários fatores de risco estão convergindo rapidamente para gerar, em questão de semanas, uma "tempestade perfeita" que pode atingir em cheio o país caso as autoridades sanitárias não se organizem, em nível nacional, para tentar evitar ou ao menos reduzir o impacto deste segundo tsunami que promete varrer todo o território brasileiro.

Como ocorreu na pandemia de influenza em 1918, esta segunda onda da pandemia de covid-19 tem gerado recordes diários de novos casos e óbitos em nível mundial. No Brasil, desde as primeiras semanas de novembro de 2020 tem-se notado um crescimento rápido no número de novos casos da doença, muito provavelmente em decorrência de uma campanha eleitoral e de dois turnos de votações que jamais deveriam ter ocorrido durante uma pandemia fora de controle.

Todavia, este aumento é bem diferente do ocorrido nos primeiros meses de 2020 e, caso este crescimento de pessoas infectadas continue a se acelerar, o Brasil corre um enorme risco de sofrer não apenas um colapso sanitário e hospitalar no primeiro trimestre de 2021, mas também de mergulhar numa grave crise social, econômica e política em decorrência da inação de seus governantes.

Mas quais são os fatores que estão nos tragando para este redemoinho? Em primeiro lugar, diferentemente do ocorrido nos primeiros meses do ano passado, hoje todas as cinco regiões brasileiras apresentam uma aceleração dos casos de covid-19 ao mesmo tempo. Este crescimento síncrono envolve o aparecimento de grandes surtos nas capitais, em suas regiões metropolitanas e nas cidades do interior. Pior, em algumas capitais de estado (por exemplo, Aracaju), as curvas de novos casos estão crescendo numa velocidade ainda maior do que a que foi observada nos meses de março e abril de 2020.

Em decorrência desta total sincronia da pandemia em vários estados espalhados por todo o país, como Amazonas, Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, as taxas de ocupação de leitos de UTI também começam a cruzar o patamar crítico de 80%. Estas altíssimas taxas de ocupação foram atingidas mesmo antes de serem computadas as dezenas de milhares de casos graves que certamente ocorrerão nas próximas semanas em decorrência das inúmeras aglomerações e festas realizadas durante o final de ano.

Soma-se a este crescimento disseminado de casos o fato de o espaço aéreo brasileiro ter permanecido aberto durante os últimos meses, mesmo depois da identificação, realizada por cientistas do Reino Unido, de uma nova cepa do SARS-Cov-2, cuja taxa de transmissão é quase 70% maior do que a das cepas que circularam pelo Brasil no ano de 2020. Desta forma, o país certamente recebeu uma nova carga de pessoas infectadas com esta nova cepa durante as festas de final de ano. Detectada em São Paulo, ela já deve estar circulando por todo o território nacional neste exato momento.

A estes dois fatores devemos ainda acrescentar três outras variáveis ainda mais críticas. Como o sistema de saúde pública do país, já depauperado pelos cortes orçamentários dos últimos anos, foi fortemente abalado pelas consequências da primeira onda de internações hospitalares que acometeu o país durante 2020, batendo todos os recordes históricos, uma segunda onda explosiva de casos graves de covid-19 pode levar a um colapso não mais regional, mas nacional, de todo o sistema de saúde brasileiro.

Durante 2021, assolado por uma enorme perda de profissionais de saúde, redução dos estoques de medicamentos básicos e um desgaste sem precedentes de toda a sua força de trabalho, o SUS ainda vai ter que lidar com uma demanda crescente e gigantesca de pacientes acometidos por sequelas graves da covid-19 (como insuficiência respiratória e renal, e distúrbios neurológicos), bem como de todos os outros pacientes portadores de doenças crônicas que não puderam ter acesso a serviços hospitalares ao longo de 2020.

A esta demanda reprimida deve-se somar ainda toda a necessidade natural e rotineira de leitos de enfermaria e UTI num país recordista de acidentes de trânsito, doenças cardiovasculares e neurológicas e toda sorte de enfermidades.

Todos estes fatores fizeram com que pessoas que outrora conseguiam pagar planos de seguro-saúde privado, hoje, devido aos aumentos extorsivos impostos pelas operadoras brasileiras e à queda de renda gerada pela crise econômica, só tenham o SUS como alternativa de auxílio médico. Finalmente, a total ausência de um cronograma e de um plano operacional para vacinação em massa no Brasil, a cada dia que passa, atrasa o fim da pandemia e contribui decisivamente para o agravamento da crise sanitária do país.

Em face deste quadro potencialmente cataclísmico, toda a margem para omissões, adiamentos, postergações e negacionismo da verdadeira face da crise brasileira foi consumida e eliminada. O país hoje transita no limiar de um desastre sem precedentes e que pode levar décadas para ser revertido.

Tendo acompanhado o desenvolvimento desta crise por quase um ano, não vejo outra saída a não ser a decretação de um lockdown nacional, acompanhado do fechamento do espaço aéreo brasileiro e da instituição de barreiras sanitárias em todas as principais rodovias e aeroportos brasileiros, culminando com a imediata aprovação de todas as vacinas contra o SARS-CoV-2 que tenham sido aprovadas por organismos reguladores internacionais de reconhecida competência, depois de terem demonstrado eficácia e segurança garantida na fase 3 de estudos clínicos.

Além disso, dada a relutância, a inoperância e o atraso inexplicável do governo federal em produzir um plano nacional de imunização e um cronograma emergencial para o país, seria essencial a criação de uma Comissão Nacional de Vacinação Independente, que, respaldada consensualmente por todos os 27 governadores do país, se encarregaria de produzir, em caráter emergencial, uma estratégia de aquisição de vacinas e insumos e um plano operacional de vacinação, de forma a garantir que todo brasileiro tenha acesso gratuito a uma vacina eficaz e segura.

Em suma, o Brasil precisa criar imediatamente um estado-maior de manejo de crise que tenha competência científica reconhecida, disposição técnica e liderança política à altura para enfrentar o embate decisivo de uma verdadeira guerra que o país enfrenta, há quase um ano, de forma totalmente caótica.

Até o presente momento, a verdade nua e crua é que o Brasil ainda não se engajou de maneira apropriada, e na escala e seriedade requeridas, para sair vitorioso desta que é a maior batalha da humanidade do século XXI. Caso isso não ocorra, o número de brasileiros mortos em 2021 e em anos futuros será muito maior do que as 200 mil vidas ceifadas até a presente data. Além disso, a crise social e econômica sem precedentes que será instalada no país pode perdurar por muitos anos ou, muito pior, se transformar num evento irreversível.

* Miguel Nicolelis é professor de Neurobiologia e Engenharia Biomédica da Duke University e coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste


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