Possível ingresso na OCDE é preço caro a pagar pelo Brasil
Entendendo Bolsonaro
11/02/2020 09h35
(Crédito: Carlos Barria/Reuters)
*Cesar Calejon
Desde o começo da administração Bolsonaro, em janeiro de 2019, o Brasil alinhou-se automaticamente aos Estados Unidos no que tange a estratégia da Política Externa Brasileira, a PEB.
Desde então, a Política Externa Bolsonarista, para a qual serve o mesmo acrônimo, fez uma série de concessões para agradar Washington sem qualquer tipo de contrapartida, o que contraria a regra mais elementar das relações internacionais: o princípio da reciprocidade.
Trata-se de uma teoria basilar das relações internacionais que é absolutamente fundamental à autonomia e soberania dos Estados nacionais. De acordo com esse conceito, uma nação sempre deve iniciar certo processo de interação com os outros membros (Estados) da sociedade internacional de forma colaborativa.
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Caso este outro Estado responda a esta primeira medida de cooperação de maneira similar, o processo segue produtivamente este mesmo rumo até que uma das partes interrompa a colaboração. É simples: qualquer relação saudável precisa ser recíproca.
Somente durante o primeiro ano de sua gestão, a PEB, bolsonarista, eliminou a exigência de visto para os estadunidenses que visitam o País, renunciou ao tratamento diferenciado que o Brasil tinha em negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) e endossou, de forma veemente, o assassinato sumário do general iraniano Qasem Soleimani, líder militar de uma nação que é forte aliada comercial do Brasil, conforme mostram alguns dados sobre as relações comerciais entre os dois países, posição esta que está sob ameaça já no curto prazo.
Todas estas ações unilaterais foram adotadas com a justificativa de que o Brasil precisa estar ao lado dos países "vencedores" e será endossado pelos EUA para compor o time dos "países ricos" na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE.
Após frustrar as expectativas da administração Bolsonaro no fim de 2019 ao endossar a entrada da Argentina, os EUA de Trump voltaram atrás e, recentemente, sinalizaram a possibilidade de indicar o Brasil para a posição na entidade.
"Os EUA querem que o Brasil se torne o próximo país a iniciar o processo de adesão à OCDE. O governo brasileiro está trabalhando para alinhar as suas políticas econômicas aos padrões da OCDE enquanto prioriza a adesão à organização para reforçar as suas reformas políticas", disse o Departamento de Estado dos EUA com uma nota pública sobre o tema.
Para ingressar na instituição, o Brasil vem adotando grande parte das recomendações feitas em diferentes áreas, mas, sobretudo, na macroeconômica. Na prática, isso significa a adoção do que é prescrito pelo chamado Consenso de Washington, que consiste em aprofundar agendas político-econômicas de caráter neoliberal.
Assim, o Brasil vai ter de seguir as orientações sobre o grau de interferência do Estado na economia e práticas relacionadas ao controle de taxa de juros, de câmbio, tributação de capital estrangeiro etc., o que também deverá tolher a autonomia que o governo brasileiro tem de administrar a sua própria economia, considerando que a OCDE defende a intervenção mínima do Estado e a liberalização do fluxo de capitais.
Historicamente, porém, sabe-se que tal agenda política tem efeitos graves considerando o aumento da desigualdade e da pobreza. Essas consequências são ainda mais profundas nas economias periféricas do capitalismo, como é o caso do Brasil e demais países da América Latina.
Um importante artigo do acadêmico David Ibarra, professor aposentado de Economia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), mostra que, na região, além dos danos mencionados, o que se observa é também uma perda de autonomia desses países na gestão de suas políticas econômicas.
Um exemplo claro que se pode observar no Brasil é um recente aumento da população de rua como resultado deste aprofundamento de políticas neoliberais. Segundo dados do Censo da População em Situação de Rua, realizado pela Prefeitura da Cidade de São Paulo, a população de rua da capital cresceu quase 60% em quatro anos. Em 2015, os moradores nesta situação somavam 15,9 mil. No fim de 2019, eram 24.344 pessoas. Crescimento similar tem sido observado no restante do País.
O aumento da extrema pobreza tem sido quase constante no Brasil desde 2015, período no qual também avançaram diversas políticas públicas neoliberais. Em suma, para adentrar a OCDE, o Brasil precisará alinhar-se cada vez mais a esse tipo de agenda político-econômica. Além disso, existe ainda um conjunto maior de mudanças na inserção brasileira no comércio internacional que podem trazer prejuízos ao país.
Imagine que a metáfora para compreender a vontade desmedida da gestão Bolsonaro de entrar na OCDE pode ser estabelecida com a compra de um imóvel. O sujeito A quer loucamente adquirir um imóvel do sujeito B para tornar-se membro de um determinado condomínio. Contudo, o sujeito B não precisa ou sequer deseja vender o apartamento, mas percebe que pode obter vantagens ao deixar claro que talvez exista a possibilidade da venda da unidade se concretizar caso o sujeito A faça tudo exatamente como lhe é mandado.
Talvez e, ainda assim, caso o sujeito A ingresse no condomínio, isso não significa que ele terá o mesmo tipo de tratamento que recebem os mais poderosos membros do clube. Certo mesmo é que ele deverá pagar a taxa do condomínio e se adequar ao que lhe é imposto. Todo o restante é incerto. Ou seja, ainda que o Brasil ingresse de fato na OCDE, as eventuais vantagens podem não compensar as certas concessões que o País deve oferecer.
Fundamentalmente, o alinhamento automático brasileiro aos Estados Unidos, marca ideológica central da política externa bolsonarista, traz consigo uma série de concessões unilaterais em troca de um benefício, no mínimo, duvidoso.
Uma situação análoga, dadas as devidas proporções, aconteceu durante o auge da Segunda Guerra Mundial. De forma super resumida, os EUA do presidente Franklin Delano Roosevelt seduziram o então ditador brasileiro Getúlio Vargas a contribuir com a luta contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) oferecendo borracha e minerais para o exército dos aliados.
Em contrapartida, o Brasil receberia um assento definitivo no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mais uma vez, o grupo dos países mais ricos e poderosos do planeta. Após colaborar de todas as formas, o Brasil ficou sem o sonhado posto e ainda teve que lidar com algum nível de humilhação e constrangimento frente à sociedade internacional (veja o artigo De como o Brasil quase se tornou membro permanente do Conselho de Segurança da ONU em 1945, de Eugênio Garcia).
Até este momento, por exemplo, a renúncia ao tratamento diferenciado na Organização Mundial do Comércio, que nos oferecia benefícios como um país emergente nas relações com as nações mais abastadas, já custou muito para o Brasil mesmo antes sequer de os EUA sinalizarem qualquer intenção de indicar o País para a OCDE.
O Brasil tinha, por exemplo, prazos e margens especiais para defender estratégias e produtos nacionais, além de vantagens para adquirir produtos com conteúdo local por parte do setor público e uma série de benefícios tarifários por ter status de país em desenvolvimento. Tudo isso foi renunciado pela administração Bolsonaro sem nenhum tipo de compromisso assumido formalmente por parte dos EUA. Em troca de uma promessa, basicamente, para agradar os nossos vizinhos ricos do norte.
Assim, em um mundo multipolar (com BRICS etc.), assumir a postura de "vira-lata" com tamanha intensidade pode prejudicar enormemente o nosso processo de desenvolvimento e o relacionamento do Brasil com o restante da sociedade internacional.
*Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais e escritor, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI".
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