Cálculo político de Bolsonaro divide oposição e multiplica cadáveres
Entendendo Bolsonaro
29/03/2020 00h20
(Crédito: Carolina Antunes/PR)
* Murilo Cleto
O governo Bolsonaro passou a semana tentando boicotar as medidas preventivas de isolamento social recomendadas pelas autoridades sanitárias do mundo todo diante do avanço implacável do coronavírus.
Embora não tenham produzido efeitos institucionais automáticos, as iniciativas desencadearam, primeiro, uma onda de desinformação nas redes sociais quanto aos supostos efeitos de uma política de "isolamento vertical"; segundo, uma pressão das associações comerciais sobre as prefeituras que mandaram fechar os estabelecimentos locais; e, terceiro, a fabricação de uma polarização entre "trabalhadores" e "vadios" para forçar, moralmente, a retomada da atividade econômica.
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O governo Bolsonaro faz apostas casadas diante da crise para se manter no poder. Mais modesta, a primeira delas conta com o sucesso das medidas de mitigação dos estados e dos municípios para frear a escalada de mortes, reforçando o argumento irredutível do presidente de que tudo não passava de alarmismo midiático e oportunismo político e, ao mesmo tempo, jogando a crise econômica no colo de quem mandou parar quase tudo.
A segunda, mais arrojada, conta com o sucesso das campanhas governistas de boicote e a escalada brutal no número de mortes. Para se precaver na medida do desejável, o bolsonarismo tem incentivado o lançamento de dúvidas sobre relatórios médicos que atestam mortes pelo novo coronavírus. Ontem mesmo, Bolsonaro falou em fraude – dessa vez não das urnas, mas dos laudos.
Se, por um lado, o argumento não funciona nem mesmo entre muitos dos seus apoiadores moderados, por outro o seu objetivo é justamente o de acelerar o processo de depuração do bolsonarismo na escalada do caos. O filósofo Marcos Nobre tem insistido nessa hipótese: "Ele está passando de um nível, que é o caos institucional […], para o caos social. A característica do Bolsonaro é justamente a de produzir o caos e ao mesmo tempo dizer que ele é a única pessoa capaz de lidar com esse caos", disse recentemente ao jornalista Bruno Torturra.
Nesse cenário, segundo Nobre – de explosão no número de mortes pela doença e de violência nas ruas diante da insuficiência do socorro do Estado a pessoas físicas e jurídicas –, as Forças Armadas sequer teriam outra opção senão instituir a ordem por meio do reforço de uma ruptura institucional. Essa aposta é evidentemente grave, mas é com a qual sonham desde sempre os apoiadores mais fanáticos do governo.
A pior coisa que poderia ter acontecido para o Brasil era, a despeito dos bons efeitos imediatos disso, o protagonismo de adversários políticos em potencial do presidente em 2022 nessa crise. Segundo Nobre – e me parece que esse seja um ponto consensual – , o surgimento de um polo alternativo é tudo que o bolsonarismo menos tolera. Durou pouco o casamento de Doria e Witzel com o novo Planalto justamente porque a situação já deixou bem claro que, a partir de agora, é Bolsonaro ou nada.
E, para boa parte da sociedade civil, ainda que os gestos de Bolsonaro sejam vistos no mínimo com ressalva, a semente da dúvida sobre a legitimidade da coordenação desse polo opositor foi pelo menos plantada. O mesmo Bolsonaro que, nesse momento, vai perdendo a queda de braço com as instituições – ontem mesmo a Justiça proibiu o governo de adotar medidas contra o isolamento social – , conseguiu reacender uma base que dessa vez parecia insuficiente para impedir sua derrocada e desarticular, em partes mas o bastante, as alternativas a ele.
Tudo isso porque talvez, pelos seus atributos morais demonstrados até aqui, os governistas tenham pouco a perder mesmo com essa crise. O cálculo político de Bolsonaro divide a oposição e multiplica cadáveres para extrair do caos a soma que for.
Aos brasileiros, resta torcer ou para que emerja uma coordenação política sem aspirações eleitorais – como defende Nobre – , capaz de isolar politicamente o presidente e reforçar a credibilidade desse enfrentamento institucional junto à opinião pública; ou contra as lógicas estatística e sanitária – o que, paradoxalmente, significaria dar sobrevida a esse governo. Alguém achou que seria fácil?
* Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.
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