Com a PF, Bolsonaro cumpre a profecia de Jucá: “estancar a sangria”
Entendendo Bolsonaro
26/04/2020 22h53
O senador Flávio e o vereador Carlos, filhos do presidente Jair Bolsonaro (Crédito: Reprodução/Instagram)
* Vitor Marchetti
Muito se tem especulado sobre a decisão do presidente Bolsonaro de trocar o comando da PF (Polícia Federal), tensionando ainda mais a relação com o ministro Sergio Moro, e empurrando-o para a demissão.
A tese mais recorrente é que a motivação principal foram as investigações conduzidas pela PF que estavam já muito próximas dos seus filhos e de seus aliados mais chegados.
Não descarto a importância desse fato, típico de máfias conduzidas por aquilo que Banfield classificou nos anos 50 do século passado como familismo amoral. Entretanto, as movimentações políticas das últimas semanas deixam uma pista importante para o empurrão final nessa decisão e, me parecem, decisivas para a ruptura definitiva de Bolsonaro com Moro: a cabeça de Moro foi usada como importante moeda de troca com o chamado Centrão no Congresso Nacional.
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Sem essa variável, me parece que a compreensão da decisão de Bolsonaro fica falha, e, principalmente, a projeção de seu futuro à frente da presidência prejudicada. O tal Centrão nada mais é do que aquele conjunto de partidos que funcionam no Congresso Nacional com base no fisiologismo clássico. Já deram sustentação política para governos com agendas absolutamente distintas, de Sarney a Dilma.
A motivação central desses partidos e suas lideranças feudais não gira em torno de uma determinada agenda de políticas públicas, mas o atendimento imediato de seus interesses facciosos. Para isso, há duas tarefas imediatas que esses partidos precisam cumprir.
Primeiro, esvaziar os órgãos de controle de força e autonomia e segundo, acessar poder político e recursos públicos por meio de nomeações de aliados em órgãos públicos. Sergio Moro chegou ao Ministério da Justiça elevado pela onda lavajatista, emprestando seu capital ao presidente da República.
Ao longo de sua trajetória, rompeu as regras básicas do rule of law, que ele tanto elogiou em sua coletiva de despedida, para cumprir uma finalidade política ainda que por meios ilegais. Guiou-se pela ética da convicção convencido de que era preciso implodir a República para refundá-la. E acreditou que Bolsonaro seria a janela de oportunidade para essa implosão.
Em vez de implodir a República para refundá-la, como desejam os lavajatistas, Bolsonaro parece estar disposto a ressuscitar um modelo anterior ao pacto de 1988. E não é pelo elogio aos regimes militares que identificaremos o modelo que Bolsonaro representa.
Tão forte quanto seu apreço pelos métodos autoritários é seu apreço pela implosão de um modelo que foi sendo construído paulatinamente por meio do fortalecimento incremental das instituições de controle. É fato que algumas dessas instituições nos últimos anos perderam a mão e começaram a operar acima do sistema político como se estivessem cumprindo uma missão divina. Notadamente, o Ministério Público e a Polícia Federal.
Reconhecer isso, porém, está longe de ignorar as importantes contribuições para a gestão pública e para o bom uso dos recursos públicos que estas instituições prestaram para a consolidação democrática no Brasil. O que Bolsonaro já vinha fazendo com todos esses órgãos era promover o seu enfraquecimento e a sua subordinação aos interesses políticos mais imediatos do fisiologismo, como fez com a nomeação do procurador-geral da República.
A última fronteira, e a mais simbólica, era de fato o controle sobre a Polícia Federal. Com o afastamento de Sergio Moro e a nomeação de um aliado próximo para a PF, Bolsonaro cumpre à risca a profecia de Romero Jucá: "estancar a sangria" e delimitar a operação onde está. O presidente ganha no curto prazo uma importante blindagem no Congresso Nacional para evitar o impeachment – para isso é preciso ter uma base fiel de pelo menos 172 deputados.
E, no médio prazo, ganha condições para definir a próxima presidência da casa, evitando o efeito Rodrigo Maia. Bolsonaro certamente perde em popularidade. Mas essa não parece ser uma variável que o incomoda ou a sua família. Ele já vinha com a pior avaliação de um presidente no primeiro ano de mandato. A estratégiajá estava focada em manter um núcleo duro popular, coeso e conduzido centralmente pelos comandos disparados pelas redes sociais. Isto bastaria para produzir algum barulho na opinião pública.
Além disso, ele sabe que já perdeu na agenda do crescimento econômico, dificilmente os próximos anos não estarão marcados pelo desemprego, pela queda do PIB e pela queda do poder de compra. Por isso, parece que investir forte nos interesses fisiológicos de parte do Congresso (Centrão) é o último recurso para salvar seu mandato. Afinal, como sabemos todos – e ele também – todo processo de impeachment prospera com a confluência de três fatores: crise econômica, isolamento político e baixa popularidade.
Os fisiologistas serão decisivos, então, para impedir a tempestade perfeita. O movimento parece imputar uma racionalidade exagerada aos atos do presidente, mas, se eles não foram racionais por antecipação, certamente têm sido por reação. E cada vez mais Bolsonaro passa a ser pautado pelos acontecimentos políticos ao invés de pautar a agenda política do país.
Daqui para frente, três elementos parecem decisivos para a movimentação das peças nesse tabuleiro: 1) a reação das bases desses órgãos de controle, rejeitando ou se resignando às intervenções; 2) a capacidade de Bolsonaro para atender adequadamente os fisiologistas, afinal, abandonam governos com a mesma facilidade que trocam de roupas; e 3) a resiliência do lavajatismo, ou seja, quais são os torpedos que o consórcio MP-Judiciário-Imprensa ainda podem lançar.
Por enquanto, dormimos com o barulho de que, depois de toda a hecatombe dos últimos anos, os principais ataques ao lavajatismo têm saído justamente daquele que se elegeu surfando a sua onda.
* Vitor Marchetti é cientista político e professor do Bacharelado e da Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC)
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