Generais patrocinam guinada bolsonarista na Saúde
Entendendo Bolsonaro
21/05/2020 18h52
O general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde (Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil)
[RESUMO] Se há até algumas semanas parecia razoável a hipótese dos militares como um contrapeso científico importante às tentações de Jair Bolsonaro na pandemia, hoje, já não restam mais dúvidas de que trata-se de uma ilusão. Luiz Eduardo Ramos, Augusto Heleno e Braga Netto – a famosa "ala militar" – tornaram-se patrocinadores da estratégia bolsonarista para lidar com o coronavírus. Enquanto isso, Pazuello recheia a pasta de militares e bate na tecla fantasiosa dos curados.
* José Antonio Lima
No dia 30 de março, em meio à disputa criada pelo presidente Jair Bolsonaro com o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o governo federal mudou seus procedimentos para divulgar informes sobre a pandemia de covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus.
No lugar da entrevista coletiva de Mandetta e de seus auxiliares passou a ser realizado um evento com vários ministros. Oficialmente, a intenção era mostrar unidade diante das críticas de falta de coordenação no Planalto. Nos bastidores, dizia-se que o objetivo de Bolsonaro era refrear o protagonismo de Mandetta.
De início, levantei a hipótese de o novo formato ser obra dos militares no governo, com o intuito de manter sob controle um presidente que, no dia anterior, fizera um tour pelas cidades-satélite de Brasília, juntando aglomerações ao redor de si e, potencialmente, expondo cidadãos a risco.
Em 31 de março, um dia após a mudança de formato, a hipótese foi reforçada: Bolsonaro fez seu único discurso conciliador durante a pandemia, afirmando que sua preocupação "sempre foi salvar vidas" e que era preciso "ter cautela e precaução com todos".
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Desde então, as coisas mudaram. Reportagens trouxeram relatos de como reagiram ministros militares e oficiais-generais da ativa e da reserva às ações de Bolsonaro. Como as fontes são, em sua maioria, anônimas, ter uma visão clara sobre o pensamento na caserna é uma tarefa difícil. A leitura deixa dois aspectos nítidos, no entanto.
O primeiro é que há divisões entre os militares a respeito das ações de Bolsonaro. A participação do presidente em atos antidemocráticos e os embates com Mandetta e Sergio Moro foram exemplos disso. Declarações divergentes de generais chegaram ao público em cada um desses episódios.
O segundo aspecto é que existe, ao menos para uma parte dos militares, uma significativa preocupação em separar governo e Forças Armadas. Essa seria, inclusive, a lógica na tentativa de "domar" Bolsonaro. No dia 14 de maio, o próprio vice-presidente da República, Hamilton Mourão, deixou a inquietação transparecer.
Ao ser questionado pela jornalista Tânia Monteiro, de O Estado de S.Paulo, se temia que as Forças Armadas pudessem sair chamuscadas do governo, o general foi enfático: "Essa tem sido a nossa grande preocupação", disse Mourão. Não ficou claro se ele usou o plural pensando no governo ou nos militares.
Militares do Planalto, fiadores da estratégia bolsonarista
Tal preocupação parece não afetar os principais ministros militares. Os últimos dias têm mostrado um Bolsonaro encorajado, e um governo alinhado, seguindo uma mesma diretriz diante da pandemia. O problema é que essa diretriz foi traçada por Bolsonaro e ela coloca o Brasil no rumo da devastação social e econômica.
Apesar de a crise de covid-19 provocar problemas complexos no mundo todo, sua dinâmica é até certo ponto fácil de entender. O novo coronavírus contagia de forma veloz e, como não há cura ou vacina, é preciso testar a população incessantemente, rastrear todos os casos e isolar os doentes.
Na ausência de capacidade para fazer isso, é preciso impor medidas de distanciamento social, pois caso contrário os serviços de saúde ficarão lotados, aumentando o número de mortes, e não só por covid-19. Enquanto isso, a vacina é pesquisada e diversos medicamentos, entre eles a cloroquina e corticoides, são testados como tratamento.
Se o isolamento for realizado de forma correta, o funcionamento do sistema de saúde estará garantido e, aos poucos, as atividades econômicas podem ser retomadas. É o processo pelo qual passou a China, vem passando a Europa e começa a ser pensado no resto da América do Sul.
Bolsonaro é contra essa visão baseada na ciência e defendida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pelas autoridades sanitárias do mundo todo e de todos os estados brasileiros. Contra todas as evidências, o presidente da República defende o retorno imediato da vida anterior à pandemia, já que "todo mundo morre um dia". Ele insiste, ainda, na utilização da cloroquina, uma droga com efeitos colaterais consideráveis e cuja eficácia para o tratamento da covid-19 está sob testes.
A defesa da cloroquina é parte de uma estratégia política. Percebe-se isso observando o submundo da desinformação em que o bolsonarismo viceja. Ali, a cloroquina é tratada como "cura" em uma narrativa que tem o intuito de minimizar os riscos do novo coronavírus e reforçar a ideia de que o isolamento social é uma manobra de opositores para derrubar Bolsonaro.
A política do presidente só não se tornou regra no País porque os governadores, sabiamente, resistem a ela, e tiveram essa possibilidade garantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ocorre que Bolsonaro insiste em seu discurso insensato.
E, a essa altura, é inescapável concluir: é a ala militar do governo, em especial os generais que despacham no Palácio do Planalto – Braga Netto (Casa Civil), Augusto Heleno (GSI) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) – que está patrocinando essa sandice.
O que dizem os generais
Braga Netto, por exemplo, tentou explicar no dia 15 de maio que Bolsonaro não contraria a ciência ao insistir no uso da cloroquina. Se saiu com essa: "O presidente não ignora a ciência, o presidente segue os protocolos, ele tem uma visão diferente de qual é o protocolo a ser seguido", disse. No mesmo respiro, o general negou a verdade ("o presidente não ignora a ciência") e foi franco em seguida ("ele tem uma visão diferente").
Ainda nesse dia, contou Marcelo Godoy no Estadão, Braga Netto usou números de uma tabela divulgada por grupos bolsonaristas para minimizar os efeitos da pandemia. A tabela traz os índices de morte por cem mil habitantes em diversos países, um número que esconde o alto grau de subnotificação da doença no Brasil e também o fato de que o território nacional tem sido atingido de forma desigual pela covid-19.
Na segunda (18), em uma entrevista à Rádio Bandeirantes, Augusto Heleno tentou justificar os atos de Bolsonaro que geraram aglomerações. Seu argumento principal foi equiparar a lotação no transporte público de São Paulo com a aglomeração provocada por Bolsonaro.
Não ocorreu a Heleno, conhecido por ter acumulado um supersalário de quase R$ 60 mil em 2018, que a maior parte dos que usam o transporte público atualmente são os trabalhadores que não podem se dar ao luxo de ficar casa. Não é o caso dos negacionistas da ciência que apoiam Bolsonaro.
Luiz Eduardo Ramos, por sua vez, tem usado parte significativa de seu tempo para admoestar a imprensa, que segundo ele faz uma "maciça divulgação dos fatos negativos" da pandemia.
O mundo está enfrentando uma crise sanitária que contaminou quase 5 milhões de pessoas, matou 321 mil e o ministro quer ver o lado colorido da situação. Seria como Nova York celebrar quem não morreu no 11 de Setembro, ou a Vale fazer festa porque moradores de Brumadinho e Mariana sobreviveram aos desastres provocados por ela. Faria sentido isso? Só se a tentativa fosse esconder a verdade e escamotear as falhas de um governo.
Não é de se estranhar, então, que a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), subordinada a Ramos, esteja fazendo justamente isso. Nas redes sociais, a Secom passou a divulgar o "placar da vida", que traz apenas os números de infectados, curados e em recuperação.
O número de mortos por covid-19 é, no entanto, tragicamente fundamental para entender a dinâmica da epidemia, pois a maior parte dos países tem uma capacidade limitada de realizar testes. Sem os números de mortes – que a imprensa divulga para manter a população informada justamente sobre o andamento da situação – a sociedade fica no escuro.
Ministério bolsonarista
De forma temerária, a tentativa de Ramos de enfatizar as "boas notícias" chegou ao Ministério da Saúde. Como destacou o jornalista Jean-Philip Struck, o site oficial e a conta da pasta no Twitter deixaram de noticiar os números de mortes por covid-19.
No Twitter, o ministério passou a propagar o "placar da vida" do general Ramos. Na página do ministério dedicada às estatísticas da pandemia, notou o pesquisador Christian Perone, os números de recuperados passaram a ser destacados com uma fonte quase três vezes maior que a usada para exibir o número de óbitos.
A politização do Ministério da Saúde se dá, ao que parece, graças ao domínio militar na pasta. Nos 28 dias em que Nelson Teich foi ministro, ficou evidente que ele não tinha poder algum. Este estava com o general Eduardo Pazuello, então secretário-executivo.
Agora como ministro interino, Pazuello continua recheando o ministério de militares, entre eles o major Angelo Martins Denicoli que, como mostrou Constança Rezende em sua coluna no UOL, usou sua conta no Instagram para divulgar mentiras sobre a hidroxicloroquina.
Outro nomeado, Giovani Camarão, postou no início de abril, segundo a Folha, uma foto em uma festa, o que contraria recomendações da OMS. Denicoli será diretor de monitoramento e avaliação do Sistema Único de Saúde (SUS) e Camarão será o coordenador de Finanças do Fundo Nacional de Saúde.
Foi só na ausência de um civil como ministro que Bolsonaro conseguiu mudar o protocolo sobre o uso da cloroquina. De acordo com a coluna de Bela Megale no jornal O Globo, as alterações não devem parar por aí, no entanto. Elas envolvem "eliminar da pasta qualquer resquício da gestão de Luiz Henrique Mandetta", além de blindar "o ministério de grandes interferências pelo nome que será escolhido para comandar a área".
Para completar, Robson Bonin, na Veja, informa que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde, está sendo pressionada desde que os militares chegaram à pasta.
Tão preocupante quanto a adoção da política bolsonarista como política pública para combater a covid-19 é que esse movimento veio acompanhado de uma Medida Provisória que tem o intuito de proteger agentes públicos de responsabilização por atos na crise do coronavírus. É uma espécie de Lei da Anistia do século XXI que, como a de 1979 – em vigor até hoje apesar de violar o Direito Internacional – implica numa "autoanistia". Não à toa, foi editada antes da revisão do protocolo de uso da hidroxicloroquina.
Ramos, Heleno, Braga Netto e Pazuello certamente não representam a totalidade do Exército, mas a força terrestre vai pagar o alto preço do contrato entre Bolsonaro e a devastação sanitária e socioeconômica no qual eles aparecem como fiadores.
Não escapa à percepção de ninguém que este é um governo que tem nos militares seu principal esteio. O Brasil caminha para ser um pária internacional por conta de sua incapacidade de lidar com o coronavírus. E o papel de Bolsonaro nisso é evidente, assim como o fato de que são os generais os facilitadores deste processo.
* José Antonio Lima é doutorando no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e professor de Jornalismo e Relações Internacionais.
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