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Bolsonaro completa dois meses de pedalada retórica que garantiu base

Entendendo Bolsonaro

22/05/2020 00h44

(Crédito: Reprodução)

* Alvaro Magalhães Pereira da Silva

"Sempre dissemos que tínhamos dois problemas: o vírus, que tem a ver com a vida, e o emprego, que tem a ver com a saúde", afirmou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na live da noite desta quinta-feira (21), para logo em seguida relacionar o hábito alimentar do brasileiro, entre outras coisas, a sua situação econômica. "Se essas pessoas piorarem a vida delas, desculpa a redundância, fica pior ainda."

Assim, Bolsonaro repetiu certa fórmula que tem adotado desde o chamado pronunciamento "da gripezinha" – ou "do resfriadinho", que completa dois meses no domingo (24).

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Embora tenha soado tresloucado aos ouvidos da significativa parcela da população crítica ao modo como o presidente vem lidando com a pandemia, aquele pronunciamento de 24 de março – que tanta semelhança guarda com o desta quinta-feira – parece ter sido decisivo para que Bolsonaro não tenha, até o momento, perdido totalmente a sua base de sustentação.

Por quê? Porque foi extremamente eficiente em um aspecto que parece ser central nos pronunciamentos e nas ações midiáticas de Bolsonaro e que tem, em certa medida, escapado ao debate público: a inversão de consensos.

Entre outros fatores, é por essas inversões que Bolsonaro consegue fazer com que situações que lhe são altamente desfavoráveis praticamente se transformem em um grande trunfo seu, ao menos entre integrantes de grupos que lhes são simpáticos.

Mas como funciona esse processo de inversão de consensos? E que consenso foi esse invertido no pronunciamento "da gripezinha" que ainda reverbera em falas como a desta quinta?

Como os consensos se estruturam?

Para tentar entender a estratégia bolsonarista, é interessante olhar o pronunciamento "da gripezinha" e as falas subsequentes de Bolsonaro com base nos estudos dos herdeiros intelectuais do francês Oswald Ducrot, diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), o instituto de estudos avançados de Paris.

Hoje com 89 anos, Ducrot é um dos mais renomados pesquisadores da argumentação. Sua sensibilidade para fenômenos linguísticos o levou a enxergar movimentos argumentativos onde antes não se via – como, por exemplo, em um dicionário.

Assim, sua obra influenciou uma série de notáveis em diversas partes do mundo. Entre eles, o argentino Alfredo Lescano, professor da Universidade de Toulouse (também na França) que se dedica a compreender o funcionamento de polêmicas públicas.

A partir do trabalho de Lescano – fortemente ancorado nos pressupostos de Ducrot – , é possível afirmar que os consensos podem ser descritos como dois segmentos imbricados.

Isso parece muito abstrato, mas se torna mais claro quando se pensa, por exemplo, em provérbios. Com o intuito de resumir um consenso, o provérbio costuma ter duas partes: "a pressa / é inimiga da perfeição", "voz do povo / voz de Deus", "filho de peixe / peixinho é" etc.

Embora não seja comum a 100% dos ditados da língua portuguesa, esse formato, quando aparece, revela o "esqueleto" dos consensos.

E aqui se chega a um ponto fundamental para a análise do discurso "da gripezinha" e outras falas de Bolsonaro: essa estrutura dos consensos em duas partes cria, entre as partes, uma relação argumentativa que pode ser "positiva" ou "negativa".

Isso novamente pode parecer muito abstrato. Mas no ditado "a pressa / é inimiga da perfeição" soa claro que há uma relação negativa entre "pressa" e "perfeição", que nos trabalhos teóricos é representada assim: "pressa" –> NÃO "perfeição".

Já no dizer "voz do povo / voz de Deus" há uma relação positiva entre o que o povo diz e o que está certo, que pode ser representada assim: "a maioria do povo diz" –> "está correto".

E o que isso tem a ver com Bolsonaro, com o discurso "da gripezinha" e com as falas do presidente deste então -incluindo o discurso desta quinta-feira?

A inversão de Bolsonaro no discurso "da gripezinha"

Foi no discurso "da gripezinha" que Bolsonaro inverteu a ideia de que, ao se preocupar demasiadamente com a economia do País, colocava a vida dos cidadãos em segundo plano.

Essa ideia, que possuía alto grau de aceitabilidade entre os brasileiros – ou seja, que era consensual – , criava uma relação negativa entre "preocupação com a vida" e "preocupação com a economia". Esquematicamente, podia ser representada assim:

"preocupação com a economia" –> NÃO "preocupação com a vida"

Bolsonaro procurou então, no pronunciamento "da gripezinha" e em grande parte de suas falas posteriores, fabricar um consenso inverso: um consenso que criasse entre economia e vida uma relação não mais negativa, mas sim positiva.

Para isso, ele associou o bom desempenho da economia aos meios de subsistência dos brasileiros. "O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará", disse no pronunciamento de 24 de março. "Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias deve ser preservado."

Na manhã seguinte – 25 de março – , em frente ao Palácio da Alvorada, o presidente afinou o discurso, deixando-o mais claro.

Após criticar governadores que tomaram medidas para incentivar o afastamento social, Bolsonaro afirmou: "E [para] aqueles caras que falam: 'Ah a economia é menos importante do que a vida'. Cara pálida: não desassocie uma coisa da outra. Sem dinheiro, sem produção […], nós vamos viver do quê?". A semelhança com o discurso desta quinta-feira é notória.

E, aqui, fica evidente a relação positiva entre "preocupação com a economia" e "preocupação com a vida", que esquematicamente se representa assim:

"preocupação com a economia" –> "preocupação com a vida"

É a aceitabilidade dessa fórmula que faz com que Bolsonaro possa criticar as medidas de isolamento social sem perder sua sustentação.

E o discurso de fato pegou – ao menos para parte da população, que segue apoiando o presidente. Como bem observou o colunista da Folha Bruno Boghossian, pesquisas Datafolha evidenciaram que, se no princípio da pandemia tanto bolsonaristas como não bolsonaristas concordavam com o isolamento social, com o tempo os grupos se polarizaram e os bolsonaristas passaram a defender o fim do isolamento.

Apesar das possíveis consequências negativas que a saída do ministro Nelson Teich possa ter para Bolsonaro, a sua curta passagem pelo Ministério da Saúde serviu, entre outras coisas, para criar o efeito de que a ideia propagada pelo presidente tem alguma base científica.

Mesmo não demostrando ser um entusiasta do fim do isolamento, desde seu discurso de posse, talvez para se mostrar alinhado ao presidente, Teich procurou enfatizar que a "estabilidade econômica" fazia parte dos "fatores sociais da saúde".

É de se imaginar que, ao escolher o novo titular da pasta, Bolsonaro procure alguém que, ao menos nessa questão, siga a linha de Teich.

* Alvaro Magalhães Pereira da Silva é jornalista, doutorando em Língua Portuguesa, pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Análise Crítica do Discurso (NEAC), da USP, e do Grupo de Pesquisa Discursos na Mídia Escrita (DiME), da PUC-SP. Atuou por 20 anos como repórter e editor nos grupos Estado, Folha, Abril e Record TV. Foi professor convidado de Jornalismo Investigativo no Senac.

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