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Celso Amorim: "Nem na ditadura a política externa foi tão desastrosa"

Entendendo Bolsonaro

20/07/2020 23h35

O ex-chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim (Crédito: Bruna Prado/UOL)

* Cesar Calejon

Dezoito meses. Esse foi o período suficiente para que a Política Externa Brasileira (PEB), sob a gestão do chanceler Ernesto Araújo, sofresse a maior ruptura de sua história, numa permanente corrosão dos princípios que moldaram a trajetória do Itamaraty, uma das mais tradicionais e respeitadas instituições do Estado brasileiro.

A condução de Araújo, diplomata inexperiente indicado ao posto pelo youtuber Olavo de Carvalho, tem causado perplexidade em toda a comunidade internacional, para além de seu isolamento junto aos próprios pares dentro do Itamaraty.

A crise provocada pela covid-19 gerou um ultimato às nações democráticas, que, mais do que nunca, devem reforçar o seu compromisso internacional com uma agenda de direitos, de proteção aos mais vulneráveis, e pautada no multilateralismo. O Brasil, entretanto, segue caminho oposto e, tudo indica, não será a pandemia a provocar grandes mudanças de curso.

Ao longo desse um ano e meio, a política externa bolsonarista avançou contra os direitos da população LGBTI+, retirou o país do Pacto de Migração da Organização das Nações Unidas (ONU), renunciou à condição de país emergente na OMC (Organização Mundial do Comércio) sem qualquer garantia em troca, quase se envolveu em um conflito armado com a Venezuela e, nesse momento, enfrenta a sua maior crise de imagem e reputação global, com uma abordagem negacionista e anticientífica para lidar com a maior crise sanitária dos últimos cem anos.

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Para compreender a real extensão dos danos causados ao País pela gestão de Ernesto Araújo, e as perspectivas para o futuro, o blog conversou com o diplomata Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores dos governos Itamar (1993-1995) e Lula (2003-2011) e ex-ministro da Defesa do governo Dilma (2011-2015).

Na opinião de Amorim, um dos diplomatas mais proeminentes na linhagem da diplomacia brasileira, o Brasil "nunca sofreu tamanho descrédito". Ele acredita que a política externa bolsonarista, que "hostiliza diariamente o seu parceiro comercial", será vítima de sua própria inépcia.

"Eu nunca vi um desastre igual", assegura Amorim. "Eu entrei para o Itamaraty na época da Política Externa Independente, ainda com o João Goulart. Entrei para o Instituto Rio Branco. Depois, vieram os anos do regime militar e as oscilações da nova república, mais neoliberal etc. Contudo, nunca houve um desastre semelhante (à política externa bolsonarista)", garante o ex-ministro, que se notabilizou por conduzir a Política Externa Brasileira a um protagonismo internacional, sobretudo por meio da luta contra a fome e a pobreza durante o governo Lula.

Segundo ele, a gestão de Ernesto Araújo transcende limites não rompidos até pelos governos militares. "O Brasil nunca sofreu tamanho descrédito (no mundo). Mesmo na época dos governos militares, sobretudo naquela época terrível do (Emílio Garrastazu) Médici (1969 – 1974), com as torturas e assassinatos, ainda assim havia uma separação entre os eventos internos e as práticas da Política Externa Brasileira. Desta forma, esta é a primeira vez que eu vejo todas as tradições da diplomacia brasileira jogadas no lixo", lamenta o diplomata.

Para Celso Amorim, a atual política externa nega princípios básicos contidos na Constituição de 88. "A começar pela independência nacional. O Brasil nunca declarou, mesmo quando existiram flertes especiais com os EUA, um alinhamento automático e subserviente desta forma. Amplificamos e pioramos a política do (Donald) Trump, que é equivocada e demagógica, mas que procura atender, pelo menos, certa visão do interesse estadunidense. A nossa atual política externa nem isso faz."

"Você avalia as entrevistas do Steve Bannon", prossegue ele, "que é um dos ideólogos deles (administração Trump), e ele fala todas aquelas coisas da China e os absurdos todos que se pode imaginar sobre o multilateralismo etc. Contudo, ele avança estes argumentos alegando que o objetivo final é defender a indústria e os empregos dos norte-americanos. No nosso caso, a nossa argumentação nem isso tem, porque atuamos também para defender os interesses dos EUA."

De acordo com o ex-chanceler, "as nossas posições em direitos humanos, na questão do racismo, passando pelos direitos reprodutivos da mulher, a situação da Palestina, entrando na questão do embargo à Cuba – que eu sempre faço questão de dizer que se trata de uma matéria do Direito Internacional – até a própria Organização Mundial da Saúde (OMS)… não existe igual. Nunca houve um Brasil deste tipo. A única esperança que podemos ter é a de que tudo isso vai passar. Que seja algo do tipo 'a extrema direita bêbada' e que esta bebedeira passe para que tenhamos algum restabelecimento da normalidade", acrescenta.

Ainda segundo Amorim, em matéria de PEB, o bolsonarismo não resistirá a esta normalização do mundo. "Estamos sob um impacto muito forte da pandemia (de covid-19) e com uma crise econômica global acentuada. Quando tudo isso passar, a política externa bolsonarista é tão absurda que não poderá resistir. Como você pode conduzir uma PEB que hostiliza, diariamente, o seu principal parceiro comercial (China)? Como você pode manter ataques reiterados e gratuitos contra alguns dos principais líderes europeus em temas como a pandemia, o meio ambiente e até de caráter pessoal? Tudo isso é um absurdo! Essas perguntas só podem ser compreendidas, mas jamais justificadas, com a expectativa de que o Brasil obteria vantagens, que até aqui jamais se concretizaram, por parte do governo Trump", salienta o ex-ministro.

Para ele, caso o Trump seja derrotado na eleição para a Presidência dos Estados Unidos, em novembro deste ano, o Brasil vai perder este único ponto de apoio e ficará totalmente à deriva no cenário internacional. "Evidentemente, o Brasil é um país grande demais para ser simplesmente ignorado, mas não haverá nenhum tipo de boa vontade (por parte dos EUA). Inclusive, algumas 'vantagens' que o governo Bolsonaro busca, eu entendo que representam um ônus para o Brasil. Por exemplo, a declaração de que o Brasil é um aliado preferencial extra da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN): já existem ações no Congresso dos EUA para retirar esta qualificação. Com certeza, medidas como esta serão reforçadas com um governo (do Partido) Democrata, caso o presidente eleito seja o (Joe) Biden", complementa Amorim.

Assim, o isolamento do Brasil, que já é grande atualmente, será ainda mais acentuado. "E olha que nós somos um dos maiores países do mundo em muitos aspectos, então não é fácil conseguir isolar o Brasil, mas hoje ninguém quer aparecer na foto com o presidente (Jair) Bolsonaro. Nem o (Rodrigo) Duterte, das Filipinas, que tem todas as características que nós conhecemos, quer se associar à imagem atual do Brasil. O próprio Trump, no que diz respeito à pandemia, tem procurado se afastar. Ou seja, vivemos um momento de desastre absoluto, contrário a todas as tradições (da política externa) brasileira", reforça o diplomata.

"A defesa do multilateralismo sempre foi, durante o período democrático e mesmo antes disso, retirando uma ou outra exceção, uma postura dos governos brasileiros. A nossa situação é péssima de qualquer forma e vai se agravar ainda mais em eventual derrota do Trump. Até porque o atual presidente estadunidense está, obviamente, usando o Brasil para atingir os seus objetivos, que incluem o petróleo e a Venezuela. Contudo, no momento em que ele (Trump) sentir que este apoio já não compensa, até pelo desgaste interno que sofre a administração Bolsonaro, ele vai abandonar o bolsonarismo, não há dúvidas. Apesar de toda a loucura, o Trump é pragmático", observa o ex-chanceler.

Para ele, "o fato de nós termos um oficial general, um brigadeiro do Exército do Brasil, no Comando Sul dos Estados Unidos (…) é algo inadmissível, porque não se trata de um estágio, curso ou processo de aprendizagem. Ele está na cadeia de comando do setor do Exército dos Estados Unidos que, eventualmente, pode ser empregado contra a Venezuela. Ainda que ele não faça nada ou sequer concorde, a presença deste militar brasileiro legitimaria a ação. Além disso, ainda sofremos a humilhação de ouvir que o Brasil paga para o nosso general trabalhar para o comandante do Comando Sul dos EUA (Flórida). Submissão absoluta e vergonha nacional", lamenta.

Historicamente, como relembra o diplomata, os governos brasileiros sempre demonstraram uma grande preocupação com a integração sul-americana. "Houve momentos de rivalidade, na época dos governos militares, mas, ao longo da história e até antecedendo o golpe militar (1964), já o (Juan Domingo) Perón com o (Getúlio) Vargas, o Arturo Frondizi e Jânio Quadros tiveram contato também, sempre houve este cuidado. Isso se acentuou em tempos recentes, principalmente a partir do governo (José) Sarney, que começou a trabalhar intensamente nisso, passando pelo Itamar (Franco) e o próprio (Fernando) Collor, que assinou o acordo com o Mercosul. Tudo isso foi evoluindo até chegar ao governo Lula, durante o qual este zelo foi uma prioridade muito grande. A Unasul, o Conselho Sul-Americano de Defesa, o Instituto Sul-Americano de Governança em Saúde etc., enfim, todas estas atitudes que foram extremamente importantes para o Brasil", garante Amorim.

O chanceler reforça como esse processo de integração regional está ancorado em valores consagrados na Carta Magna. "Isso não é algo abstrato, tampouco, mas um parâmetro constitucional: parágrafo único e vários incisos do artigo 4, que fala sobre a interação latino-americana, que só pode ser atingida com o degrau da integração da América do Sul", explica.

O ex-ministro usa uma imagem bem atual, em meio à crise da covid-19, para ilustrar o isolamento do Brasil. "Por exemplo, há algumas semanas, o presidente da Colômbia (Ivan Duque) fez uma reunião virtual com outros líderes conservadores da América do Sul, como o (Sebastián) Piñera e (Luis Alberto) Lacalle Pou e não convidou o Bolsonaro, simplesmente porque ninguém quer aparecer ao lado do presidente brasileiro. É uma situação única e que reflete uma total falta de estratégia e liderança", reitera Amorim.

Nos próximos dias, será submetido ao Congresso Nacional o documento da nova política de defesa do Brasil. A política nacional de defesa remonta a várias origens, de onde surgiu a estratégia nacional e, posteriormente, por determinação do Congresso (Nacional), estabeleceu-se a elaboração de três documentos a cada quatro anos: a Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco.

"Historicamente, estas políticas sempre foram formuladas com base nos princípios da não intervenção e do respeito à autodeterminação dos povos. Agora, pela primeira vez, estas resoluções citam a América do Sul como uma região de possíveis 'tensões e crises'", enfatiza o diplomata.

Estas orientações contrariam um século de interação do Brasil com os nossos vizinhos e abrem precedentes alarmantes. "Houve um início de ação armada contra a Venezuela em fevereiro deste ano. O atual chanceler brasileiro (Ernesto Araújo) foi, efetivamente, até a fronteira do Brasil com a Venezuela. Eu tenho meio século de diplomacia, cresci em meio à Guerra Fria e nunca vi nada parecido com essa retirada do corpo diplomático brasileiro que foi realizada na Venezuela", destaca Amorim.

"Ou seja, absolutamente na contramão dos interesses nacionais, as posturas adotadas pelo bolsonarismo na sociedade internacional entre 2019 e 2020 transcendem os limites da Política Externa Brasileira e caracterizam uma falta total de decoro diplomático no âmbito internacional. Trata-se de uma ideologia da extrema direita somada à total submissão do Brasil às determinações do governo Trump", conclui o ex-chanceler do Brasil.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).


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