Denunciado em Haia, Bolsonaro resiste graças a elitismo da oposição
Entendendo Bolsonaro
27/07/2020 17h10
Denúncia ao Tribunal Penal Internacional (TPI) cai como uma luva na narrativa bolsonarista, que acusa a esquerda brasileira de "elitismo". Se continuar a dar as costas aos setores conservadores que prosperaram na Nova República, a oposição colherá nada mais que um fracasso prolongado (Crédito: Reprodução/ Facebook).
* Vinícius Rodrigues Vieira
No fim de semana em que foram publicadas pesquisas indicando Jair Bolsonaro como o favorito à reeleição em 2022, o presidente foi denunciado pela terceira vez por crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda.
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Criado em 2002, o TPI talvez seja, fora da esfera econômica, o maior emblema daquilo que o populismo de direita e a dita "alt-right" lastreada em ideais de supremacia branca chamam de globalismo — ou seja, a suposta tentativa de eliminar a soberania nacional e, portanto, as diferenças entre os povos. Ainda segundo essa mesma narrativa, tal processo refletiria o domínio de um dito "marxismo cultural" fomentado por elites cosmopolitas, insensíveis à vontade popular de reter tradições e costumes nacionais.
Ironicamente, as denúncias contra Bolsonaro no TPI talvez sejam a prova cabal da ineficácia do dito globalismo. Isso porque, fora de círculos cosmopolitas, simpáticos a valores verdadeiramente liberais — no sentido de valorização dos indivíduos —, tais fatos pouco devem impactar o governo, que, embora tenha uma atitude negacionista perante a maior pandemia dos últimos 100 anos, mantém seus índices de aprovação estáveis em torno de 30%.
Parte da resiliência de Bolsonaro deve-se ao elitismo da oposição. Não falo apenas de partidos de centro-esquerda, mas também de movimentos como o Direitos Já, que, juntamente com a Folha — que também lançou a sua própria campanha, inspirada nas "Diretas Já" —, pede para a população usar amarelo pela democracia, sem ter ideia da sua baixíssima capilaridade. O Direitos Já possui menos de 10 mil seguidores no Facebook, a plataforma digital mais popular do País, contra 10 milhões de Bolsonaro — ainda que consideremos a parcela de robôs.
Arrisco-me a levantar uma hipótese sobre o porquê dessa limitação: a oposição não dialoga seriamente com os dois grupos sociais vencedores da Nova República: o agronegócio e os evangélicos, ambos terrivelmente capturados pelo bolsonarismo, tal como a cor amarela da camisa principal da seleção.
Ademais, com o advento da internet e das redes sociais, já se foi o tempo em que se fazia mudança política com o povo como coadjuvante, convocado quando queriam as elites — sobretudo as intelectuais, cujos membros são muitas vezes descendentes e comensais das elites econômicas que cresceram graças ao protecionismo econômico.
Isso para não citar que a mentalidade dessas mesmas elites — econômicas e intelectuais — foi forjada pelo nacional-desenvolvimentismo associado ao mesmo protecionismo que promoveu nossa industrialização incompleta, em parte abortada com o advento da globalização. Não obstante nossa pesada herança colonial e escravista, o nacional-desenvolvimentismo foi acompanhado por um aumento da desigualdade social e racial que, hoje, muitos que se dizem de esquerda também querem combater.
Foram essas mesmas elites — sobretudo econômicas — que apoiaram a ditadura militar (de perfil desenvolvimentista como a democracia limitada de 1946) pelo menos até o governo Geisel (1974-1979) e, posteriormente, passaram a reivindicar o fim do regime.
O movimento Diretas Já — clara inspiração para o Direitos Já — talvez tenha sido a última grande mobilização da história do País que seguiu uma lógica "top-down": o povo foi para a rua, mas apenas após a articulação de líderes políticos (aliás, procurem negros e mulheres nos palanques que buscavam o fim da ditadura — as fotos dos livros de história trazem, no máximo, a cantora Fafá de Belém, musa dos protestos).
Enquanto o impeachment de Collor ainda teve traços elitistas, com mobilização largamente dependente de estudantes universitários de instituições públicas, o mesmo não se pode dizer do controverso processo que culminou na remoção da petista Dilma Rousseff do poder em 2016.
Atribuir a queda da presidente apenas ao apoio midiático à Lava-Jato e ao antipetismo implica em inevitavelmente ignorar as tensões latentes havia três anos antes do impedimento de Dilma, quando o mal-estar do País com a situação política, econômica e social eclodiu nos protestos de junho de 2013, não obstante o crescimento econômico e controle das desigualdades sob os governos do PT.
Sem significar qualquer endosso ao Movimento Brasil Livre, precisamos reconhecer que seus carros de som na Avenida Paulista, contra Dilma, traziam personagens com perfil poucas vezes vistos em muitos palanques de esquerda. Falo de, por exemplo, Fernando Holiday, hoje vereador em São Paulo, negro e homossexual assumido, e o atual deputado federal Kim Kataguiri, de ancestralidade oriental e filho de metalúrgico. Outros segmentos de direita trouxeram mulheres à frente, notadamente as deputadas federais e hoje inimigas Carla Zambelli e Joice Hasselmann, esta última defenestrada pelo bolsonarismo.
Aos opositores de Bolsonaro, um humilde conselho de quem foi favorável ao impeachment de Dilma e se opõe veementemente ao atual presidente (além de já ter sentido na pele a ação egoísta das oligarquias acadêmicas e o preconceito de quem acha que o Brasil resume-se à Zona Oeste de São Paulo e quiçá à Zona Sul do Rio): saiam da bolha e estabeleçam pontes sólidas com o agronegócio e parte da comunidade evangélica.
Eles não querem ser olhados de cima para baixo, como se precisassem ser ensinados a viver e a votar. Ambos os grupos pleiteiam, respectivamente, a busca pelo reconhecimento como parte fundamental da economia e da alma (conservadora) da nação.
Gostemos disso ou não na Vila Madalena e no Leblon, fazendeiros, crentes e demais conservadores têm alguma razão. Nos meus anos como estudante de graduação na USP fui testemunha de episódios de pretensa superioridade contra posições tidas como conservadoras.
Um conhecido jornalista — cujo nome não cito por não mais estar entre nós e, portanto, não poder responder ao relato que segue — falou em palestra que é um absurdo uma "tia" achar que usar drogas ilícitas é coisa de "sem-vergonha". Meus colegas — a maioria formada nos círculos da elite intelectual paulistana e suas franjas — riram do comentário efusivamente.
Foram as "tias" e "tios" (isto é, pessoas de meia-idade conservadores e de estratos sociais inferiores) que deram parte substancial da vitória a Bolsonaro em 2018 e podem, contra todo o absurdo pandêmico que vivemos, dar a reeleição ao presidente em 2022. O populismo de direita, portanto, não teria encontrado terreno fértil se as ditas elites cosmopolitas — inclusive fora do Brasil — tivessem dado atenção à moralidade do povo.
Verdadeiro ou não, o ódio ao "globalismo" — seja a suposta violação do TPI à soberania nacional, sejam as posturas cosmopolitas, como discutir a drogas ilícitas sob a ótica da saúde pública para além de moralismos — reverbera entre a população ainda que indiretamente.
Quebrar a espinha dorsal do bolsonarismo requer criar opositores ao atual presidente entre os brasileiros que plantam e oram mais que a média da população. Caso contrário, é melhor já ir se acostumando ao caos atual até 1º de janeiro de 2027.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV
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