Crise do contrato social explica Bolsonaro e extrema-direita global
Entendendo Bolsonaro
04/08/2020 16h39
(Crédito: Alan Santos/PR)
[RESUMO] Mais do que uma crise do capitalismo, um embate de nacionalismos ou uma disputa imperialista, o Brasil, junto com o mundo, vive hoje o que se passou na primeira metade do século XX: uma crise do contrato social. O liberalismo, por ser retrógrado, e o fascismo, por ser utópico, juntos ou separados, não têm uma resposta a oferecer. Os desafios atuais, por sua vez, requerem inspiração na Era do New Deal: aprofundá-la à luz de um olhar contemporâneo, eis a nossa tarefa.
* Bruno Frederico Müller
Jair Bolsonaro, no Brasil. Donald Trump, nos Estados Unidos. Viktor Orbán, na Hungria. Andrzej Duda, na Polônia. Matteo Salvini, na Itália. Ram Nath Kovind, na Índia. Rodrigo Duterte, nas Filipinas. Vladimir Putin, na Rússia.
Estes são alguns dos nomes do neofascismo e da extrema-direita que têm, hoje, um poder sem precedentes desde os anos 1930. O que eles possuem em comum? Uma retórica nacionalista, políticas discriminatórias e/ou xenofóbicas, uma ênfase no conservadorismo de costumes que coloca em perigo a segurança das minorias, um apelo mais aberto ou velado – a depender das circunstâncias – à violência como arma política e um desejo insaciável de perpetuar-se no poder.
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Só por esta lista, está claro que Jair Bolsonaro, para além de todas as suas excentricidades, não é um ponto fora da curva, mas parte de uma tendência mais ampla que abrange a economia internacional e a geopolítica e de uma sucessão de crises – ambiental, democrática, econômica, identitária – que aflige boa parte do mundo. Que crise é essa, qual a sua origem, quais os seus desdobramentos e quais as possíveis respostas? Eis as questões que este artigo pretende responder, de forma preliminar – pois trata-se de uma pesquisa vasta sobre um fenômeno ainda em desdobramento. Mas antes, claro, um pouco de história.
Quando paramos para pensar na emergência do fascismo, também vemos a ação de forças externas, além das tensões internas que já descrevemos no artigo em que definimos o bolsonarismo como uma forma de fascismo. O ano de 1914, eclosão da Primeira Guerra Mundial, interrompeu de forma traumática a Belle Époque, auge do Estado Liberal e da sua ilusão de progresso e paz perpétuos.
Além da devastação da guerra, os países, tanto vencedores quanto perdedores, tiveram de defrontar-se com uma tentativa de solução radical para o problema do nacionalismo, uma das forças motrizes da política na Europa durante todo o Século XIX e a da própria Guerra.
Essa solução foi o redesenho do mapa da Europa com o surgimento de novos países soberanos, como Tchecoslováquia e Polônia, alguns países que ganharam uma parcela substancial de territórios, como a Romênia e a Sérvia, que se transformou em Iugoslávia, e os grandes derrotados, Alemanha, Áustria e Hungria, que perderam uma grande parte de seus territórios.
Cada um desses países teve então que lidar com o problema de minorias étnicas em seus territórios ou minorias expatriadas. Se a proposta de redesenho do mapa da Europa era encerrar a questão nacional e estabilizar o continente, não funcionou: todos esses países sofreram com a instabilidade política, ameaças externas e a emergência de movimentos fascistas que, como visto, são acima de tudos nacionalistas e, enquanto tal, buscam a construção de uma identidade nacional baseada na pureza étnica e cultural.
Em segundo lugar, havia o medo da ameaça existencial da União Soviética e da revolução socialista na Europa. Também a Alemanha passou por sua revolução, derrotada, em 1918, e a Polônia foi invadida pelos soviéticos em 1920. Socialistas eram ativos por toda a Europa e despertavam o medo dos setores mais conservadores e de liberais, param quem as milícias fascistas que os combatiam eram um mal menor: arruaceiros fáceis de conter ou persuadir.
O Estado Liberal levou seu golpe fatal em 1929, com a Grande Depressão. Tendo como marco o New Deal, do presidente Franklin Delano Roosevelt, e os escritos do economista John Maynard Keynes, o Estado Liberal aos poucos deixou de existir nos anos 1930 em quase todos os países. Não se tratava só da adoção de políticas intervencionistas para tentar alavancar o crescimento. Políticas inspiradas no New Deal também implicavam estímulo à geração de emprego e políticas sociais, como a previdência. Na Europa, o New Deal já evoluía para uma social-democracia que, além do pleno emprego e do amparo aos idosos, investia em serviços públicos universais e políticas de redistribuição de renda.
A conclusão é que a Segunda Guerra Mundial não foi travada numa defesa heroica do Estado Liberal, contra as forças do antiliberalismo – fascismo e comunismo – como parece ser o consenso historiográfico. O Estado Liberal, entendido como um Estado não interventor não só na economia, mas também na sociedade, deixando à filantropia e às igrejas uma política social de cunho caritativo, já havia sido refutado na teoria e na prática: mostrou-se incapaz de conter uma crise econômica de grandes proporções e suas inevitáveis consequências sociais, com enormes pobreza e desemprego, cujo desalento e desespero levaram muitos a flertar com saídas radicais do sistema.
A Segunda Guerra Mundial foi, na verdade, uma luta pelos espólios do liberalismo: desde o social-liberalismo, de cunho reformista, de Roosevelt e Churchill – que, lembremos, governava em coalizão com os Trabalhistas – até os autoritarismos fascista e comunista.
Antes de morrer – o que se deu antes do fim da Guerra – Franklin Roosevelt já sinalizava um futuro social-democrata para os Estados Unidos, no seu célebre discurso das "quatro liberdades": liberdade de expressão, liberdade religiosa, liberdade contra a necessidade, liberdade contra o medo. As duas primeiras, liberdades liberais clássicas. As duas últimas, liberdades positivas que requeriam o "ativismo governamental", e eram encaradas pelos liberais clássicos como falsas liberdades, precursoras da tirania.
O futuro vislumbrado por Roosevelt morreu com ele, e até hoje os Estados Unidos vivem uma disputa política originada no New Deal: sua defesa e sua expansão, pela ala progressista do Partido Democrata; e sua denúncia e desmantelamento, pelo Partido Republicano. Mas na Europa, a social-democracia vingou.
Quando Friedrich August von Hayek publicou o documento fundador do neoliberalismo, O Caminho da Servidão, em 1944, a Guerra também não havia sido concluída, e seu objetivo, contrário do que pensa a maioria, não era denunciar o comunismo e fascismo como tiranias irmãs. Este era o meio para um ataque frontal à social-democracia. Se o comunismo era a servidão, a social-democracia era o caminho. A única saída deste destino trágico era o retorno ao liberalismo clássico – e, desde então, o liberalismo nunca mais deixou de ser reacionário.
O que aconteceu entre 1914 e 1945, mais do que uma crise do capitalismo, mais do que uma disputa de nacionalismos, mais do que uma disputa imperialista, foi uma crise do contrato social. O Estado Liberal falhou, e três alternativas apareceram para substituí-lo, e se chocaram. Vários herdeiros do New Deal espalharam-se pelo mundo capitalista: do modelo original nos Estados à social-democracia na Europa, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, passando por modelos autoritários ou democráticos de desenvolvimentismo na periferia capitalista. No bloco socialista, claro, impôs-se a visão autoritária de uma sociedade dirigida pelo Estado, controlando desde a economia até os aspectos mais triviais da vida do cidadão.
A hipótese que levantamos aqui é que o mundo passa novamente por uma crise que engloba todas as crises acima descritas. Uma crise de contrato social. O modelo do New Deal não mais dá conta de responder aos problemas do mundo contemporâneo: desde problemas que requerem coordenação internacional – como o meio ambiente, o crime organizado, a migração e o tráfico humano – até questões internas referentes à construção de democracias que foram tomadas por largas burocracias, a influência do poder econômico, a propaganda e manipulação nas eleições, cujas fake news são somente a última versão, chegando, por fim, à questão da economia, que merece considerações à parte.
A ascensão da China leva a renovada excitação, tanto na extrema-direita quanto na extrema-esquerda, e já tem servido de combustível para o neofascismo, como vemos no Brasil. Enquanto isso, o mundo passa por uma revolução econômica, baseada na informação, na inovação tecnológica e na automação. Essa revolução gera desafios imensos à democracia, pois é vetor de desemprego, de precarização e informalidade. Associada ao problema da pirâmide demográfica, ela gera pressão sobre a previdência social em todo o mundo. O pleno emprego, estável, garantidor de direitos, é hoje um sonho inalcançável à maioria dos indivíduos.
Todas essas crises e transformações serão apenas exacerbadas pela pandemia do coronavírus, agravando também seus desdobramentos em comum: os sentimentos de medo e insegurança. As pessoas sentem-se abandonadas pelos seus governos, acuadas pelas circunstâncias.
Lembremos por um momento que o ser humano é um animal. Como reage um animal acuado? Em situação de vida ou morte, a natureza dita: correr ou atacar. As fronteiras são como jaulas, e quem não consegue ou não quer migrar (correr) só tem uma alternativa: atacar. E é assim que a forma mais agressiva, mais cruel, mais desumana, reage às crises que parecem ameaçar não apenas seu modo de vida tradicional, mas também, pelo menos em democracias mais estáveis e que já viveram dias melhores, seu próprio modo de viver.
Aqui começa a operar o canto da sereia liberal, na verdade recriando o slogan de Margaret Thatcher, "Não há alternativas" e dizendo ao cidadão, basicamente: "adapte-se, ou seja engolido pelas forças de mercado". É o nosso conhecido darwinismo social manifestando-se de forma aparentemente sutil, mas bastante enfática: a Era do bem-estar social acabou, e isso é bom. "E quem ficar pelo caminho?" A essa pergunta eles não respondem.
Os liberais tentam convencer o público de que estamos na "era do empreendedor", e que as "reformas estruturantes" – aquelas que retiram direitos, cortam impostos dos mais ricos, limitam o acesso a políticas sociais – na verdade vão "liberar as forças do mercado", gerando emprego e riqueza. Sabemos uma coisa sobre o receituário neoliberal, porém: que ele é afeito ao autoritarismo.
Aqui neste espaço, os professores Fernando Cássio e Marco Antônio Bueno Filho lembraram que, quando Paulo Guedes disse, na reunião ministerial que veio a público pelas mãos do STF, que conhecia a fundo a "reconstrução da Alemanha", ele não se referia à Alemanha do pós-Guerra, mas à Alemanha nazista. Hayek, no seu livro fundador, manifesta abertamente suas reservas contra a democracia, repetindo a falaciosa tese da "ditadura da maioria" e dizendo preferir uma "ditadura liberal" a uma democracia intervencionista. Ainda em vida ele viu e saudou as ditaduras latino-americanas, uma das quais, a chilena, foi laboratório para os experimentos neoliberais da Escola de Chicago.
Mesmo nos Estados Unidos a partir da Era Reagan inaugura-se uma nova política de supressão de votos, encarceramento em massa e redesenho dos distritos, para conter os votos dos negros e, com eles, as chances do Partido Democrata – que responde adaptando-se à Nova Era, movendo-se para o centro e abandonando bandeiras reformistas mais radicais. Por ser uma força reacionária, que busca o retorno a uma Era de Ouro perdida, o neoliberalismo precisa ser autoritário, e precisa do apoio dos autoritários.
É esse ódio ao New Deal, ao Estado Social, à social-democracia, seu darwinismo social, seu medo da democracia, que impede o funcionamento técnico e racional do Estado, que o coloca em alinhamento com os fascistas e a extrema-direita, mesmo que seus princípios sejam aparentemente tão diferentes. E essa aliança, que promete estabilidade, somente gera mais instabilidade – política, social e econômica, pois, a todas essas ameaças, as pessoas reagem com mais medo e insegurança. Enquanto algumas delas reafirmam sua lealdade ao líder autoritário, outras passam a combatê-lo com cada vez mais vigor, e a fenda entre ambos, a possibilidade de uma saída negociada torna-se cada vez mais difícil com a passagem do tempo.
Acontece que mesmo na Era do New Deal muita gente ficava pelo caminho, sobretudo na periferia do capitalismo. Estamos passando por uma era de transição. O liberalismo, por ser retrógrado, e o fascismo, por ser utópico, juntos ou separados, não têm uma resposta a oferecer. Consertar o mundo retirando as regulações da economia, cortando a rede de seguridade social e fortalecendo as fronteiras e impondo uma identidade e unidade nacionais pela base da força não são respostas, apenas agravarão os problemas à custa de muito sofrimento.
A história é dinâmica e as transformações da política internacional, da democracia e da economia não clamam pelo abandono dos progressos da Era do New Deal, mas por seu aprofundamento: sem cooperação na esfera internacional, nem a crise ambiental nem a crise migratória serão resolvidas. Sem remover da política o poder do dinheiro e da burocracia, sem transparência e sem algum compromisso político de transformar o período eleitoral num debate programático, a democracia será reduzida a uma farsa que a maioria das pessoas não sentirá saudades, se for perdida.
Sem reformas sociais que aumentem a renda e a segurança do trabalho, com políticas como renda mínima, redução da jornada de trabalho e cursos de requalificação do trabalhador, o desemprego e insegurança crescente transformarão a previdência social numa relíquia do passado e convidarão os cidadãos a buscar saídas cada vez mais violentas e autoritárias para seus medos existenciais.
* Bruno Frederico Müller é doutor em História pela UERJ, escritor e tradutor.
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