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Oposição precisa admitir que não é mais 'a campeã do povo'

Entendendo Bolsonaro

16/08/2020 13h17

Turbinada pelo auxílio emergencial, popularidade de Bolsonaro no Nordeste deixa a oposição ainda mais perdida (Crédito: Mauro Pimentel/AFP)

* Igor Tadeu Camilo Rocha

Assistimos bestializados, juntamente com quase toda a oposição ao governo, aos resultados recentes da pesquisa Datafolha que aponta para a recuperação de popularidade do presidente Jair Bolsonaro.  Digo "bestializados" no sentido empregado no clássico da historiografia escrito por José Murilo de Carvalho, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, que se refere ao estado de inércia diante dos acontecimentos políticos que acontecem diante dos nossos olhos, porém à nossa revelia e fugindo de nossa compreensão.

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Isso é bastante preocupante pensando, hoje, naqueles que disputam protagonismo no campo da oposição ao bolsonarismo. Ao que tudo indica, eles esperam que a popularidade do governo (ou o próprio governo) caia por uma obra do acaso. E quando o acaso não é agradável, como no resultado da pesquisa, temos pouca coisa a dizer além de atribuir o resultado à manipulação das fake news, igrejas ou qualquer outro agente externo.

Compartilham dessa perspectiva partes substantivas de todas as oposições, sejam elas à esquerda, partidária – como PSOL, PT e PC do B – e não partidarizada, e também aquela identificada com o enorme guarda-chuva político-teórico do liberalismo, que cobre setores mais próximos do desenvolvimentismo e outros mais afins ao "estado mínimo".

O que parece unir essas oposições é a crença de que denúncias de irregularidades e de corrupção ligadas ao gabinete presidencial levarão a um enfraquecimento natural do bolsonarismo. Ou ainda que a tragédia da pandemia, juntamente com a inépcia do governo ao conduzi-la, provocarão alguma rejeição vinda de grandes partes da opinião pública. Claro, trata-se de uma ideia um tanto mecanicista e determinista, que parece que não se realizará no mundo concreto.

O que já se pode dizer, de fato, é que a oposição vai mal. Acredito que, a essa altura, isso seja consenso. Se não é, entendo que deveria ser. A maioria das leituras indica que o governo é o principal agente até mesmo de suas constantes quedas de popularidade, ao longo dos últimos meses.

O último Datafolha evidencia dois problemas estruturais da oposição: a incapacidade de compreender as raízes do bolsonarismo e seu poder de capilarização e o distanciamento entre a sua agenda política e as demandas reais da população mais pobre.

Como já pontuaram vários analistas políticos, a pesquisa revela um aumento da popularidade de Bolsonaro junto às camadas mais vulneráveis, evidenciando, também, a reação positiva da população à postura mais discreta do presidente. A popularidade do Nordeste também foi relacionada à bem-sucedida iniciativa do ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, de investir em obras inacabadas na região, contribuindo para associá-las ao atual governo.

Há um ponto pacífico nas análises. O auxílio emergencial foi bem recebido, e uma parte de sua boa recepção refletiu positivamente nos índices de aprovação do governo. Por mais que ele não esteja sozinho como fator que explique os resultados, ele tem um peso importante.

E é aqui que começam alguns dos problemas da oposição. Como entender, por exemplo, o impacto de medidas que afetam a parte mais pobre da população ou regiões inteiras historicamente marcadas pela pobreza na popularidade do presidente? As respostas a isso têm sido ruins, algumas bastante elitistas, embora difiram no seu grau de elaboração. É bastante comum, por exemplo, a tosca associação do auxílio emergencial ao assistencialismo em troca de apoio e votos. Num mundo que dá muitas voltas, vemos agora essa avaliação atravessada de preconceitos de classe vinda de parte do campo progressista. Me pergunto o quanto esses argumentos se diferenciam ou não daqueles que associavam a popularidade dos governos Lula e Dilma ao pagamento do Bolsa Família.

Há também, especialmente vinda de alguns campos à esquerda, a crítica baseada no arquétipo do "pobre de direita", que define a parte da população pobre que vota em agendas que a princípio lhe desfavorecem, por serem enganados devido a alguma manipulação ou falsa promessa vinda de elites econômicas e políticas. Por essa via, desenvolve-se outra chave de leitura ao fenômeno: de que atrelar o auxílio emergencial ao governo se dá apenas no campo da comunicação (manipulação, no caso), que funcionaria como um canto da sereia a atraí-los, mais uma vez, a um terrível destino.

É comum também a previsão de que a população pobre necessariamente deixará de aprovar o governo Bolsonaro assim que o dito auxílio se encerrar ou na medida que seu valor cair. Grande parte dessas análises também se ancora no problemático conceito de populismo, usado no sentido de englobar qualquer coisa que fuja do tecnicismo neoliberal de agendas econômicas.

Essas análises têm de fundo um enorme problema: o entendimento a respeito da categoria "povo", no seu conjunto, mas especificamente da sua parte mais vulnerável do ponto de vista socioeconômico, como parte pouco ou nada autônoma em suas decisões políticas. Segundo tal visão de mundo, o todo da população mais pobre é predominantemente formado por pessoas tuteladas por alguém: seu apoio é comprado por "assistencialismo" e suas consciências são conduzidas por agentes externos, que vão das fake news até as igrejas neopentecostais. Caberia à oposição, nessa perspectiva, apenas esperar que o governo seja desastroso o bastante para que, em algum momento, a população pobre decida por ter outro guia que realize seus "reais interesses" (que, obviamente, não são decididos por ela própria).

E assim surgem explicações que infantilizam a população em diversas frentes. Uma delas é a que reduz o problema do avanço da extrema direita às estratégias de comunicação. Por esse viés, o apoio ao bolsonarismo se daria pelo seu maior sucesso em falar "com o povo", segundo suas linguagens e códigos, de forma que se fazem entender e conquistam consciências. O campo democrático, à esquerda ou centro-direita, teria perdido espaço por "falar difícil" e por usar estratégias comunicativas ruins por serem eruditas ou complexas em demasia.

Não que a comunicação não seja uma questão das mais substantivas ao campo progressista e sua perda de espaço. O problema, entretanto, está nessa perspectiva de tratá-lo. Quando tudo se resume a "educar", "esclarecer", "informar", "iluminar" o outro (tendo o "eu" sempre em evidência na relação de produzir consciência política) temos um grave problema. Mas voltemos à questão do auxílio emergencial.

Sabemos que a proposta, em grande medida, se assemelha à ideia defendida por décadas pelo atualmente vereador de São Paulo (SP), Eduardo Suplicy, que é o projeto de uma Renda Básica Cidadã. Com efeito, também sabemos que a proposta inicial do governo Bolsonaro era de que o auxílio tivesse um valor de apenas R$ 200,00.

Contudo, parece evidente a conclusão da pesquisa Datafolha de que parte considerável dos receptores do auxílio o associam à figura de Bolsonaro. E o que a oposição faz diante disso? Parece ter desistido dessa disputa, além da briga por outra série de propostas historicamente ligadas ao campo progressista, como a Renda Básica Cidadã, a economia solidária e a participação cidadã na geração e distribuição de riquezas do país, assuntos que, mais do que nunca, deveriam ocupar hoje o centro do debate de ideias.

Em espaços como as redes sociais, existem complexidades enormes que constroem múltiplas camadas de uma mitologia em torno de Jair Bolsonaro, como pesquisas recentes têm mostrado. Necessário aqui retomar a ideia trabalhada por Rosana Pinheiro-Machado de que se trata de uma arena na qual o campo progressista vem perdendo por W.O., referindo-se ao universo dos grupos divulgadores de fake news.

Não é o caso aqui de se resumir às fontes de notícias falsas e conspiracionismos, mas de pensar que as bases de apoio ao bolsonarismo são heterogêneas e autônomas, e disputá-las politicamente exige repensar estratégias. A aprovação dos mais pobres ao atual governo – e isso contando os que votaram e os que não votaram em Bolsonaro – flutua por razões variadas. Uma razão constantemente desconsiderada é o conjunto de demandas materiais dessas pessoas que, por óbvio, aparecem de maneira mais acentuada num contexto de alto desemprego e grande recessão econômica como a que o país já vivia, e que se aprofundou com a crise humanitária gerada pela pandemia.

Atualmente, oposições, sejam a de centro-direita ou a de esquerda, não conseguem, em termos de opinião pública, serem percebidas como agentes de melhoras significativas na vida material da população mais pobre. Não apresentam bandeiras muito concretas, sequer conseguem vincular-se aos olhos dessa população como alternativas viáveis a problemas reais e urgentes, como o desemprego e a pobreza.

O que se vê da oposição de centro-direita, por exemplo, é uma atuação frente ao bolsonarismo sempre pisando em ovos, contundente ao condenar Bolsonaro por suas polêmicas e grosseiras, mas hesitante ao falar da agenda econômica ultraliberal de Paulo Guedes. Quando muito, alimentam expectativas de uma piora (aos olhos de quem?) do governo diante da contradição óbvia entre os ganhos políticos do auxílio emergencial e a manutenção do teto de gastos pela EC 95.

Enquanto isso, a oposição à esquerda permanece um tanto atônita, sem entender como pessoas pobres podem votar no bolsonarismo e aprovar o desenvolvimento de agendas políticas que seriam contrárias, materialmente, a seus interesses. Espera, como disse, um "despertar" do "outro" interno dessa entidade que chamam de povo brasileiro.

A oposição, dessa maneira, deixa de politizar debates fundamentais sobre combater a pobreza e a desigualdade, deixando aí um espaço que o bolsonarismo ocupa com bastante sucesso e pouco esforço, do seu modo, desde a criação do auxílio emergencial. O Nexo mapeou a tentativa de apropriação pelo governo desse programa desde a sua criação, e no âmago de sua campanha estava a narrativa de que o governo não tinha qualquer responsabilidade pela crise. Pelo contrário, fez questão de frisar que se tratava de um programa federal, e não de governadores e prefeitos, estes sim responsáveis por ela devido ao fechamento de atividades não essenciais.

Desde o início da pandemia, Bolsonaro adotou o discurso da "morte dos CNPJs", segundo o qual políticas adotadas em função do isolamento social seriam mais nocivas ao país que a própria pandemia. Nisso, o governo criou uma narrativa que antagoniza com imprensa, ciência, prefeitos e governadores, além do próprio Congresso e STF, postos na posição de quem trabalha por um cenário catastrófico de pobreza, o qual o governo dizia querer evitar. Capitaliza, nesse mesmo movimento, os benefícios de um auxilio que, inicialmente, ele mesmo foi contrário.

Concluindo, o problema maior à oposição, a meu ver, é a inação diante desse processo. Distante das bases políticas do bolsonarismo, ela tem assistido o governo vencer as disputas narrativas sem qualquer esforço, se é que existe qualquer "disputa". Para superar esse problema, é preciso, antes de tudo, abandonar as caixas do "populismo" ou da "manipulação" e admitir que ela não é mais "a campeã do povo".

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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