Judicialização da política deverá desgastar democracia estadunidense
Entendendo Bolsonaro
05/11/2020 09h34
Joe Biden, o provável futuro presidente dos EUA, terá uma batalha judicial pela frente. No atual modelo de democracia global, a judicialização da política é a via despolitizada para promover a mudança social. (Crédito: Brian Snyder/Reuters)
* Cesar Calejon
Apesar de ter recebido o maior número de votos da história dos Estados Unidos e de estar próximo de vencer a corrida pelos 270 delegados no colégio eleitoral, o democrata Joe Biden e o seu partido ainda enfrentarão, provavelmente, um grande obstáculo pela frente nas próximas semanas: a judicialização da política institucional e do processo eleitoral.
Trump tentará, por todas as vias (i)legais, invalidar a eleição alegando que o processo foi fraudado devido aos votos que foram efetivados por correio, principalmente, e pedindo a interrupção ou a recontagem em alguns estados-chave. O intuito é levar a contenda para a Suprema Corte, na qual os republicanos têm dois terços dos magistrados, e vencer no tapetão, qualificando o Partido Democrata e a candidatura de Biden como o pântano corrupto do "establishment" que precisava ser drenado de qualquer maneira.
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Em seu mais novo trabalho, a terceira edição do livro intitulado "Toward a New Legal Common Sense: Law, Globalization and Emancipation", que foi lançado no mês passado, na Inglaterra, pela Universidade de Cambridge, o antropólogo português Boaventura de Sousa Santos classifica a judicialização da política como um dos principais eventos transnacionais no começo do século XXI. Aconteceu em 2018, no Brasil. Está acontecendo agora, em 2020, nos Estados Unidos. Ou seja, nas duas maiores democracias das Américas.
No livro, Boaventura afirma que "o Judiciário é responsável por prestar serviços judiciais equitativos, rápidos e transparentes aos cidadãos, agentes econômicos e ao Estado. Mas na medida em que o papel do Estado foi reformado para servir ao novo consenso global, o sistema judicial deve ser reformado também. A reforma judicial é um componente essencial do novo modelo de desenvolvimento e base da boa governança, cuja provisão é a prioridade do Estado não intervencionista".
Na visão de Boaventura, a judicialização política deriva de outros três consensos globais, sendo eles o consenso neoliberal, o consenso do estado fraco e o consenso liberal democrático.
Assim como ocorreu no Brasil em 2018, o processo de judicialização da política estará presente nos Estados Unidos de Trump, mas, apesar de todas as tentativas e do desgaste que o atual presidente promoverá nos próximos dias, pelo menos, as instituições americanas formam um sistema diverso e que, ao que tudo indica, será capaz de resistir às tentativas desesperadas do mau perdedor.
A judicialização da política é a quarta força que sustenta a globalização hegemônica, segundo Boaventura. As outras três são o consenso neoliberal, o consenso do estado fraco e o consenso liberal democrático. O professor ressalta, em sua obra, que "não há alternativa para a lei a não ser o caos. Isso, entretanto, só será possível se a regra da lei for amplamente aceita e efetivamente aplicada. Só então a certeza e a previsibilidade são garantidas, os custos de transação são reduzidos, os direitos de propriedade esclarecidos e protegidos, as obrigações contratuais aplicadas e os regulamentos aplicados. Alcançar tudo isso é o papel crucial do sistema judicial".
Neste momento, as colocações de Boaventura não poderiam ser mais precisas e atuais com relação à definição das eleições presidenciais nos Estados Unidos. Por vezes um produto da dinâmica interna, por vezes um produto da alta intensidade da pressão da globalização, mas, na maioria das vezes, um produto de uma combinação de ambos, essa tendência, conhecida como judicialização da política ou como expansão do Poder Judiciário, está intimamente relacionada à construção de uma nova forma de Estado.
"Essa forma de Estado pode ser caracterizada como pós-well-fare (nos países centrais) ou pós-desenvolvimentista (nos países semiperiféricos) – um estado fraco eficiente adequado para complementar a regulação eficiente da vida social e econômica pelos mercados e pelo setor privado", explica o acadêmico em seu trabalho.
Nesse novo modelo, a transformação social deixou de ser uma questão política, sendo substituída, assim, pela judicialização da política, capaz de oferecer os instrumentos ideais de uma concepção despolitizada de transformação social.
* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).
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