Urnas refletem fragilidade da caçada moral a Trump
Entendendo Bolsonaro
07/11/2020 13h40
Joe Biden será o próximo presidente dos Estados Unidos. Não fosse a pandemia, a sua "batalha pela alma da nação" teria sido insuficiente para evitar um segundo mandato de Donald Trump (Angela Weiss/AFP).
* Rafael Burgos e Vinícius Rodrigues Vieira
"É a economia, estúpido!" A frase de James Carville, marqueteiro de Bill Clinton na campanha que o levou à Casa Branca em 1992, entrou para a história. Era uma referência ao fato de que, com os EUA em recessão, os eleitores americanos iriam às urnas pensando no bolso e, assim, não dariam ao presidente republicano George H. W. Bush um segundo mandato. Embora expresse em parte o descontentamento com os rumos econômicos dos EUA, a vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais ainda deve ter suas demais razões investigadas.
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Há mais coisas além do dinheiro capazes de mover os cidadãos às urnas em plena pandemia. Mas não a moral expressa por líderes políticos em assuntos públicos. De fato, podemos concluir à luz da disputadíssima corrida à Casa Branca que não terá sido a cruzada moral contra o atual presidente a responsável por eleger Joe Biden. Isso porque, ainda que vença todos os estados restantes em disputa, o democrata terminará o pleito ainda longe das projeções mais otimistas antes de 3 de novembro.
Quase metade dos americanos que compareceram às urnas – inclusive não brancos – deram de costas para as críticas ao comportamento anti-imigrante, chauvinista, misógino e racista de Trump e lhe ofereceram a possibilidade de sonhar com um segundo mandato em meio a uma pandemia em que os EUA são os líderes inequívocos no número de mortes.
O forte desempenho do atual presidente na Flórida é sintomático nesse sentido. Antes do pleito, muito se especulava sobre o posicionamento dos idosos aposentados que vivem no Estado perante um candidato à reeleição que, em muitas situações, minimizou os efeitos de uma pandemia que afeta sobretudo os maiores de 65 anos. Segundo pesquisa de boca de urna feita pelo jornal New York Times, Trump venceu junto a esse eleitorado por margem semelhante (52%) aos grupos mais jovens, com exceção de quem tem entre 18 e 24 anos, única faixa etária a dar vitória a Biden (60%) no estado.
Na mesma Flórida, aumentou em 12% o apoio a Trump nas urnas junto aos eleitores de origem hispânica, o que reduziu a larga vantagem democrata de 27% em 2016 para apenas 5% neste ano. Nesses termos, entre Trump, a "aberração moral", e a "ameaça socialista" pintada sobre Joe Biden, parte relevante desse eleitorado, de perfil conservador nos costumes, migrou para o republicano.
Em outro estado-chave do Sul, a Geórgia, a provável vitória de Biden por uma diferença mínima de votos deve ser explicada pela melhora de desempenho junto aos eleitores brancos. O desafiante à Casa Branca superou Hillary em 8 pontos percentuais junto a esse grupo que representa 60% do eleitorado no estado. Por sua vez, Biden piorou o desempenho do seu partido junto aos negros (-2%) e latinos (-10%) em relação à eleição passada.
O quadro nacional confirma a dinâmica observada nos dois estados do Sul: quatro anos de caçada moral à série de ataques do magnata republicano a minorias raciais, somados à histórica nomeação de Kamala Harris, primeira mulher e primeira negra a concorrer à vice-presidência, não foram suficientes para melhorar o desempenho democrata junto ao eleitorado negro e latino. O panorama geral dos estados mostra que Joe Biden obteve desempenho similar ao de Hillary junto a latinos (66%) e inferior com o eleitorado negro (-2%), enquanto superou a ex-secretária de Estado junto ao eleitor branco (+5), no que parece ter sido o turning point para a sua vitória.
Mas os democratas também falharam com essa população branca, que é a principal base trumpista. Dados divulgados pelo professor Juan Gonzalez, da Rutgers University, indicam que a variação na participação do eleitorado branco entre os pleitos de 2016 e 2020 foi inferior a 3%, tendo aumentado de 100 milhões para 103 milhões. Já os latinos aumentaram sua participação em 65%, enquanto negros, em 10%, o que significa que o peso relativo do voto não branco – que tende para Biden – aumentou em relação à eleição passada. Assim, seria injusto culpar apenas as minorias pela relativa boa performance de Trump em meio ao combo mentiras, economia fraca e pandemia.
Todo o exposto acima nos diz algo sobre as limitações da retórica escolhida pelo Partido Democrata para confrontar Donald Trump. Nem mesmo o debate sobre costumes privados dos candidatos parece ter mais efeito sobre o eleitorado americano. Se no passado houve candidatos de peso como o democrata Gary Hart, franco favorito a vencer as primárias para 1987, que acabaram renunciando por conta de escândalos sexuais, o histórico promíscuo de Trump não impediu a reedição da aliança com evangélicos conservadores em 2020. O puritanismo vira um mero detalhe quando o assunto é conquistar o poder e, como tal, Trump legará a seus novos amigos conservadores uma maioria confortável na Suprema Corte às custas de um jogo sujo que permitiu a indicação da ultraconservadora Amy Coney Barnett mesmo às vésperas da eleição.
Se essa tímida vitória no colégio eleitoral deixa alguma lição aos democratas, é de que o antitrumpismo – entendido como um antagonismo de viés personalista em vez de programático –, no atual cenário de crescente polarização, revela-se uma estratégia arriscada, e com pouca margem para erro, considerando o atual caráter da adesão ao Partido Republicano – marcado pelo culto à liderança e por um alto nível de fidelidade partidária. Quatro anos depois, provamos o que disse, em 2016, nos dias seguintes à vitória de Trump, o economista italiano Luigi Zingales: a maneira mais inteligente de se enfrentar um populista, a experiência com Berlusconi nos revelava, é, na medida do possível, tratá-lo como um adversário comum, minando assim a sua profecia autorrealizável.
Se aprender a lição, a presidência de Joe Biden será uma oportunidade para o Partido Democrata deixar de lado o seu caráter anti-Trump para recuperar o antagonismo com o próprio Partido Republicano. Isso significa evidenciar as principais divergências que opõem ambos no âmbito de políticas públicas, como na área da saúde, campo em que, mesmo se deixarmos de lado a terrível gestão da pandemia, Trump fracassou de maneira monumental em sua incapacidade de construir uma alternativa ao popular Obamacare.
Pesquisas indicam como, no campo das políticas públicas, há afinidades a serem melhor exploradas pelos democratas. A conservadora Fox News questionou os eleitores sobre as suas preferências a respeito de questões como o tamanho do Estado, regulações ao porte de armas e planos de saúde. Nos três assuntos, prevaleceu um alinhamento aos democratas, com destaque para o total de 72% de eleitores que são, em algum grau, favoráveis à intervenção estatal no mercado dos planos de saúde, maioria essa que acaba subaproveitada, já que o tema da saúde ainda é pouco decisivo para os eleitores na hora de escolherem os seus candidatos.
Esse nos parece o melhor caminho, mas, para tal, será necessário conter os ânimos da ala mais progressista do Partido Democrata, que vem ganhando sucessivamente uma maior representatividade interna, em defesa de uma plataforma que, em tese, satisfaz o paladar identitário do eleitorado jovem e não branco, alienando o restante da população, que ainda é majoritária, e assim dificultando a tarefa de trazer à luz um alinhamento que já existe. Conciliar esses interesses com uma estratégia eleitoral vencedora para tempos normais – diga-se, não pandêmicos – pode se revelar uma tarefa traiçoeira. Falhar nessa tarefa implicará numa administração Biden em que os democratas detêm o poder, mas não governam de fato, como bem definiu o conservador Wall Street Journal.
Pode haver uma armadilha no caminho e olhar para a excepcionalidade desta eleição já seria um bom ponto de partida. Considerando que Biden esteve a anos luz de uma lavada, sob as condições econômicas pré-pandemia, o discurso moral anti-Trump não teria sido suficiente para captar o eleitorado do cinturão de ferro, sobretudo do Wisconsin e Michigan, regiões frustradas pelas falsas promessas econômicas do trumpismo e, nesse momento, dois dos estados que mais sentem os efeitos do vírus. A grande ironia é que, a partir de 20 de janeiro de 2021, Joe Biden será presidente dos Estados Unidos porque a covid-19 poupou os democratas de suas próprias ilusões. É a economia, estúpidos!
* Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV
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