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Urnas derrotam governo, mas bolsonarismo resiste

Entendendo Bolsonaro

30/11/2020 13h28

Isolado, mas não enfraquecido. Se o governo Bolsonaro foi claramente derrotado nas urnas, não se pode dizer o mesmo do bolsonarismo. (Crédito: Pablo Jacob / Agência O Globo)

Rafael Burgos e Vinícius Rodrigues Vieira

Chegamos ao fim de mais um ciclo eleitoral, sob o risco de aplicar velhas fórmulas para contextos excepcionais como o que o Brasil vive desde a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) para a presidência. Dizemos isso para problematizar a narrativa – aparentemente óbvia – de que o presidente e a extrema direita foram os maiores derrotados nas eleições.

Se, por um lado, é verdade que a oposição adentra 2021 com mais caminhos possíveis rumo à disputa presidencial que os existentes até as eleições municipais, por outro, é preciso delimitar a (crucial) diferença entre o governo Bolsonaro e o bolsonarismo. Enquanto o primeiro foi claramente derrotado no pleito, o segundo sobrevive e deve retomar o seu protagonismo.

Em nenhum momento, Bolsonaro buscou conter o surgimento de adversários competitivos nas eleições deste ano. Isso porque a essência do populismo de direita, que tem no presidente seu representante-mor no Brasil, consiste em manter sua dimensão antissistêmica. Para tanto, o jogo eleitoral – institucionalizado, legitimado pelas leis e pela sociedade – deve ser desacreditado. Nada melhor para atingir tal objetivo do que jogar para a plateia e, além de difamar o sistema de votação eletrônico por meio de suspeitas infundadas, fazer-se de vítima das forças políticas que se opõem ao bolsonarismo-raiz.

Trata-se da antipolítica, evidenciada, sobretudo, na abstenção recorde registrada nas grandes metrópoles do Sudeste, Rio e São Paulo – que haviam votado em peso em Bolsonaro em 2018. Sai o bolsonarismo de ocasião e entra a apatia política – pelo menos até o surgimento de um novo Messias. Nada que fuja ao script de um sistema deixado em terra arrasada pelos pecados dos que dominaram, à esquerda e à direita, a Nova República, assim como devido aos excessos lavajatistas.

Nada demais para um chefe de Estado que ilustrou sua carreira de deputado federal do baixo clero com declarações e ações antidemocráticas. Apenas para a surpresa dos ingênuos (ou dos que se fazem de desentendidos), Bolsonaro manteve o padrão na presidência, solapando sempre que possível a legitimidade das instituições democráticas e do Estado de Direito, tal como quando procurou dar um verniz constitucional a um eventual golpe em maio último. E assim continuará a fazer até 2022 ou enquanto estiver no poder.

Como, então, chamar de "derrotado" quem sequer se esforçou para vencer? Se voltarmos a janeiro de 2019, nos recordaremos de que o presidente deu início a seu governo contando com o apoio do PSL, seu então partido e maior bancada na Câmara, além da boa vontade de partidos à direita que o apoiaram no segundo turno das eleições de 2018. Caso operasse sob as bases racionais do jogo democrático – leia-se, constuir coalizões e maximizar a governabilidade , Bolsonaro faria barba, cabelo e bigode, mantendo sua pauta de costumes e avançando a liberalização econômica tão desejada por figuras de proa do consórcio de centro-direita PSDB-DEM-MDB.

Potencialmente, nesse jogo, a extrema direita buscaria legitimidade pelas beiradas e o Aliança pelo Brasil – partido que Bolsonaro tenta fundar – seria uma realidade. Mas esse nunca foi o seu horizonte, dada a natureza antissistêmica do bolsonarismo. A cessão de cargos para o Centrão não mudou tal tendência, haja vista que, politicamente, cada partido que tende a apoiar o governo em votações seguiu seu próprio caminho em 2020 com o claro intuito de se livrar de Bolsonaro em 2022.

Como resultado, o PSL, 2ª sigla mais rica, ficou sem nenhum prefeito nas cem maiores cidades do país, mesmo tendo lançado candidatos em metade desses municípios. Sem partido e sem vergonha de ser antipolítico, Bolsonaro ganha legitimidade para apontar o dedo para falhas de seus adversários no centro e na direita, como o inegável estelionato eleitoral que o PSDB praticou em São Paulo ao esperar o day after da vitória de Bruno Covas sobre o psolista Guilherme Boulos para anunciar uma regressão no isolamento social contra a covid-19.

Por fim, cabe notar que a antipolítica bolsonarista não se restringe ao jogo doméstico. Um mês atrás, em outubro deste ano, o chanceler Ernesto Araújo reforçou o seu orgulho em transformar o Brasil em pária internacional. Que, por ora, deixemos de lado o cinismo desse discurso para entender a coerência que o sustenta. Em setembro de 2019, após o primeiro discurso de Bolsonaro na ONU enquanto presidente, foi defendido neste blog que, ao optar pelo caminho do confronto e do isolamento internacional, Bolsonaro saía na frente, preparando, desde então, uma consistente narrativa de derrota, da qual precisa o bolsonarismo para apresentar-se como vítima do sistema.

O vazio de alianças políticas aprofundado pelas urnas de 2020, combinado ao cenário internacional pós-trumpismo, aponta para um 2021 de isolamento sem precedentes. Mas, se isso é uma derrota, deve-se dizer que o revés já era precificado. O presidente não está isolado porque se enfraqueceu; isolar-se é a sua única condição de sobrevivência. É da sua natureza autocrática que derivam a sua maior fraqueza e a sua única cartada. Que não nos enganemos: Jair Bolsonaro não lidera um partido, mas um movimento. Em 2022, ele defenderá o legado do bolsonarismo, e não de seu governo.

Vigiai e esperai porque, quando menos esperarmos, as tentações golpistas da extrema direita no Brasil voltarão, se não com força, com barulho suficiente para manter a guerra política viva até a disputa presidencial, cuja legitimidade Bolsonaro já põe em dúvida, num simulacro trumpista. A diferença para os EUA é que eles têm uma democracia de mais de dois séculos, enquanto nós temos uma história repleta de golpes e autogolpes. Parafraseando o saudoso Fernando Vanucci, 2022 é logo ali, democratas! Cuidado com os leões – ou, melhor dizendo, com as hienas golpistas!

Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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Sobre os autores

Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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Uma discussão serena e baseada em evidências sobre a ascensão da extrema direita no mundo.