EUA ensinam que impeachment sai mais barato que engolir fascismo
Entendendo Bolsonaro
07/01/2021 12h46
(Crédito: Bill O'Leary/Washington Post)
* Vinícius Rodrigues Vieira
A tentativa de golpe durante a sessão do Congresso americano que oficializou Joe Biden e Kamala Harris como presidente-eleito e vice-presidente-eleita dos Estados Unidos ensina que populistas do naipe de Donald Trump devem ser defenestrados do poder assim que houver uma oportunidade balizada pela Constituição. Os lamentáveis eventos que ocorreram em Washington na última quarta-feira (6) devem fortalecer entre as forças democráticas brasileiras a impressão de que sairá caro para nossa República manter Jair Bolsonaro no poder até 2022, com chance de reeleição.
Não se prega aqui, obviamente, um golpe contra o presidente, mas sim a aplicação do direito pátrio, que bem esclarece os crimes de responsabilidade pelos quais o chefe de Estado pode responder. A gestão da pandemia pelo governo federal é um acinte contra o povo e nossa existência como nação. Estamos à beira dos 200 mil mortos pela covid enquanto Bolsonaro retorna de 17 dias de férias, cometendo reiteradas barbaridades como solapar qualquer tentativa de vacinar a população contra o coronavírus.
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Um impeachment, seguindo os ritos constitucionais, seria um favor que os congressistas fariam ao país e a Bolsonaro, que reconheceu ser incapaz de ser presidente ao afirmar que o Brasil quebrou e nada pode fazer para consertá-lo. Parafraseando o ex-senador Romero Jucá (PMDB-RR), quando do controverso impedimento de Dilma Rousseff (PT), a remoção por vias legais de Bolsonaro do Planalto depende de um grande acordo nacional, não apenas com o apoio do Supremo (ou seja, setores do Judiciário), demandando ainda o beneplácito das Forças Armadas. Ilusão não reconhecer que desde 2018, quando Lula foi impedido de ser candidato por um STF com a faca no pescoço, e houve movimentações golpistas após a facada desferida contra Bolsonaro, somos, de fato, uma democracia tutelada por militares.
O prolongamento da pandemia — efeito direto do negacionismo bolsonarista — enquadra-se perfeitamente em atos que configuram crimes de responsabilidade. Conforme definição do artigo 4 da lei que regula o impedimento de ocupantes de cargos públicos, atentar contra "o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais" é justificativa para impichar o presidente.
Com a pandemia, nossas possibilidades de protestar e comparecer, em novembro último, aos locais de votação foram limitadas, enquanto as consequências socioeconômicas da crise ameaçam a estabilidade doméstica. Bolsonaro não trouxe, claro, o coronavírus ao país, mas, ao tratar a pandemia como algo meramente potencializado por uma "mídia sem caráter", limitando a compra de insumos necessários para combatê-la, o presidente claramente atua contra nossos direitos. Tratam-se, portanto, de atos por meio dos quais Bolsonaro serve-se "… das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder" (Artigo 6º), notadamente o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
Em política externa, o alinhamento automático a Trump enquadra-se como crime de responsabilidade contra a existência política da União, pois configura um ajuste que compromete a dignidade da Nação (Artigo 5º), sem lhe trazer qualquer benefício. Ademais, o alinhamento a outros governos conservadores somado à animosidade contra parceiros comerciais relevantes, notadamente a Argentina, a China e a União Europeia, tem tornado o país um pária, o que compromete seu status perante a comunidade internacional.
O crime de responsabilidade mais evidente até agora, porém, é o de "… proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" (Artigo 7º). Podemos tolerar um presidente que faz questão de ser fotografado ao lado de milicianos e suspeitos de crimes? Ou que ainda oferece seu consentimento a um gabinete do ódio instalado em plena sede do Poder Executivo?
O custo de um impeachment, ainda que em meio a uma pandemia, será menor que aquele que pagaremos caso sigamos nesta toada até 1º de janeiro de 2023. Com Bolsonaro finalizando seu mandato, aguardemos em Brasília cenas explícitas de emulação do que se passou no Capitólio, estimuladas por um presidente que fala em fraude eleitoral sem apresentar provas. Isso tudo com um agravante inexistente nos Estados Unidos: temos a tradição de recorrermos às Forças Armadas em momentos de crise política aguda.
Tal cenário, sim, escancararia as portas a um golpe militar para além da tutela que vivemos. Vamos seguir inertes e pagar para ver? Pense na democracia como um circo. Se a lona queimar na base, a fumaça atinge o público antes de chegar ao picadeiro e acabar com o palhaço. Ele é sempre o último a desaparecer. Antes, porém, deixa a terra arrasada, para que disputemos os restos do poder político a paus, pedras e quaisquer outros instrumentos que expressem o que de pior o fascismo desperta em nós.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV
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