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Entendendo Bolsonaro

Caso Bienal: no Brasil de ontem e de hoje, a censura é prática recorrente

Entendendo Bolsonaro

10/09/2019 21h51

(Crédito: Reprodução)

*Daniel Trevisan Samways

Na última semana, o prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella solicitou que a história em quadrinhos "Vingadores – a cruzada das crianças" fosse retirada de circulação na Bienal do Livro, evento que ocorreu na cidade até o último domingo (8), com o argumento de que a obra estava sendo comercializada sem a embalagem apropriada, um plástico preto, e sem a advertência de conteúdo sexual.

Após disputa judicial, a palavra final coube ao ministro do STF Dias Toffoli, que, no domingo, atendeu ao pedido da procuradora-geral da República Raquel Dogde e derrubou a liminar que permitia a apreensão de livros.

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A censura não é uma novidade no Brasil, como aponta o livro"Minorias Silenciadas", organizado pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro. Do período colonial ao momento da abertura democrática, o país vivenciou diversas formas de controle sobre a cultura, os livros, o teatro e a imprensa, com a atuação de inúmeros órgãos, como a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP).

Em 28 de junho de 1941, uma ordem do ministro Barros Barreto, presidente do Tribunal de Segurança Nacional, solicitava ao chefe da polícia de São Paulo a apreensão de um perigoso material que circulava pela cidade, e colocava em perigo as inocentes crianças. Seu conteúdo, conforme decisão do ministro, "atentava contra o programa de educação do governo e contra a defesa nacional, predispondo as crianças a doutrinas perigosas e práticas deformadoras de caráter."

Tal solicitação motivou uma grande operação em diversas cidades do estado. Apenas na capital paulista, 142 exemplares do explosivo material foram apreendidos, segundo relatório do DEOPS (Delegacia de Ordem Política e Social).

O "perigoso" livro era uma adaptação de Peter Pan, escrita por Monteiro Lobato, em 1930. Produzido originalmente por J. M. Barrie como uma peça de teatro em 1904 e publicada como romance em 1911, o texto adaptado de Monteiro Lobato aconselhava Pedrinho "a criar uma lei acabando com a pouca vergonha de cobrar altos impostos." Em pleno Estado Novo, tudo que soasse como crítica ao governo era visto como uma grande afronta.

Setenta e oito anos depois, a decisão de Crivella representa nova investida contra uma publicação infanto-juvenil. No Brasil contemporâneo, não se trata de ato isolado. Cabe lembrar a censura à exposição Queermuseu, em 2017, as recentes falas do presidente Bolsonaro sobre a produção de filmes e as tentativas de alterar a legislação educacional, impedindo a discussão de temas políticos e sobre sexualidade nas escolas, colocando em xeque nossa jovem democracia.

Em "O povo contra a democracia", o cientista político Yascha Mounk afirma que muitos países vivem, hoje, uma "democracia iliberal", caracterizada pela manutenção de processos democráticos na escolha de suas lideranças e no acesso ao poder, mas com profundas restrições às liberdades.

Dessa forma, governos eleitos acabam por impor um controle a determinados conteúdos, vistos como perigosos à população e que afrontam certos valores, como a "família", a "pátria", o "bem" ou a "moral".

Tentam controlar a imprensa, o cinema, a educação, as artes e a cultura, almejando criar uma narrativa de união e harmonia. Tudo aquilo que ameaçar a ordem e esses valores pode ser silenciado para o bem da nação.

Políticos como Bolsonaro e Crivella surfam numa onda que foi sendo gestada há tempos, num "moralismo hierarquizador", como bem definiu Angela Alonso no ensaio "A comunidade moral bolsonarista", presente na obra Democracia em risco?:

Ouvidos conservadores apreciaram o refrão da corrupção de costumes. Sua dissonância era com o 'esquerdismo' comportamental, cristalizado nas políticas de afirmação pública de identidades e reconhecimento de direitos associados a novos papéis de gênero e padrões de família, crescidos no decorrer dos governos petistas. A visibilização compulsória dos antes invisíveis ou guetificados desconfortou grupos sociais de orientação religiosa pouco tolerante.

Angela Alonso, "Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil de hoje" (Companhia das Letras, 2019)

A esfera pública, antes o espaço para as diferenças, viu florescer um discurso homogeneizador, que busca silenciar tudo aquilo que abale padrões historicamente estabelecidos. Políticos de matriz populista e conservadora afirmam defender a "verdadeira família", legitimando diversas formas de opressão contra minorias.

Nesse contexto, o beijo de dois heróis homossexuais pode ser visto como uma afronta às famílias, um risco para a harmonia do lar. A escolha para abordar o assunto, segundo esses líderes, deve ser dos pais, em casa, e não em uma feira de livros. O discurso moralista encontra grande eco em nossa sociedade, amplificando o pânico moral e a sensação de ameaça, automaticamente creditados à esquerda e a grupos progressistas.

É preciso garantir que as minorias não sejam novamente silenciadas e que todos, como nos lembra Renato Janine Ribeiro, tenham o direito de sonhar: "Se quisermos combater a censura, não será ridicularizando seus excessos, mas contestando seu cerne. Não será zombando de seus erros, mas defendendo a capacidade que tem o pensamento – e a fantasia – de criar novos mundos".

*Daniel Trevisan Samways é doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM). Atualmente realiza estágio de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP).

Sobre os autores

Pesquisadores e estudiosos da nova direita e suas consequências em diversos campos: da sociologia à psicanálise, da política à comunicação.

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