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Entendendo Bolsonaro

Plano A do bolsonarismo é minar instituições, e não a ruptura

Entendendo Bolsonaro

06/11/2019 00h02

(Crédito: Adriano Machado/Reuters)

*Clóvis Gruner

Hienas, quando acossadas, reagem em bando e agressivamente, atacando de maneira furiosa quem as ameaça. É o instinto de sobrevivência animal, do qual depende a segurança da alcateia.

Apesar da comparação com o leão naquele vídeo inclassificável, de tão constrangedor, Bolsonaro vem se portando cada vez mais como uma hiena acuada desde, principalmente, a última semana.

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Em uma sequência de eventos, ligados entre si de diferentes maneiras, o próprio presidente, ou seus colaboradores mais próximos, atacaram e intimidaram os veículos de comunicação (os escolhidos dessa vez foram a Rede Globo e a Folha); mobilizaram o aparato estatal para desmentir e intimidar publicamente um porteiro; obstruíram a justiça, se apropriando de provas de uma investigação em curso; e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) ameaçou um "novo AI-5" em caso de uma "radicalização" da esquerda.

São algumas expressões de uma verdadeira máquina de coação e ameaças que se tornou o governo Bolsonaro. A retórica não é nova; Bolsonaro construiu sua campanha a partir dela, não raro com a condescendência de muitos veículos de informação, que insistiam (e ainda insistem, de certa forma) em tratar suas declarações simplesmente como "polêmicas" e "controversas".

Como notou o historiador Murilo Cleto, em artigo para este blog na quarta-feira da última semana, em apenas três episódios recentes, Bolsonaro tensionou ainda mais as instituições, na tentativa de empurrá-las para o corner e deslocar o centro do debate "mais um pouco em direção ao extremo".

Um dia antes, em sua coluna na Folha, o economista Joel Pinheiro da Fonseca se perguntava se Bolsonaro está a planejar um golpe, chamando a atenção para a escalada da retórica beligerante como uma estratégia de mobilização na guerra dos "patriotas conservadores" contra tudo e todos que ameaçam o país.

Mas como disse acima, ainda que mais virulento, nada disso é realmente novo. Ele não era candidato ainda, mas viajava o país com recursos públicos quando vociferou que, em um futuro governo seu, "as minorias se submetem à maioria, ou desaparecem".

Em seu pronunciamento após o primeiro turno, além de acusar uma fraude eleitoral inexistente, condicionou a unificação do país ao fim de "toda forma de ativismo". A "escória vermelha", disse à época, precisava escolher entre o exílio ou a prisão, e aniquilá-la era a condição para melhorar o Brasil. Sua eleição, ele a comemorou com um discurso em que, entre outras coisas, prometeu mandar a oposição para a "ponta da praia".

Diferente do que defendiam os bem-intencionados, não se tratava apenas de um "discurso de campanha". Presidente, Bolsonaro não apenas recrudesceu a retórica truculenta, mas deu início a um processo de aparelhamento das instituições políticas de que o pedido do ministro Moro à Procuradoria Geral da República semana passada é apenas a face mais recente e mais perversamente visível.

Ambas as estratégias – a retórica truculenta e o aparelhamento das instituições – são complementares e fundamentais à escalada autoritária que estamos a testemunhar.

Uma tradição historiográfica que inicia em Hannah Arendt e se estende até historiadores como Robert Paxton e Michael Mann insiste na tese de que a eficácia do fascismo europeu dos anos de 1930 residiu também na capacidade de contrapor, à racionalidade política das democracias liberais, o irracionalismo característico das massas.

O culto ao líder, o elogio da força física e da violência política, em um ambiente de instabilidade e crise, sedimentaram um tipo de unidade que não tardou a reconhecer, na democracia e suas instituições, a razão de um declínio que era, principalmente, moral.

Uma das características de Bolsonaro é que ele conjuga elementos desse fascismo histórico – a irracionalidade, o personalismo, o elogio da força física e da violência, a moralização da política e a fabricação do inimigo, por exemplo –, a formas de autoritarismo cultivadas no terreno fértil de nossa própria história: a escravidão, experiência histórica estruturante do nosso racismo; a violência estatal contra movimentos sociais; o esquecimento da ditadura; a cordialidade, raiz de nossa baixa tolerância à democracia.

Nesse sentido, ganha outro significado a discussão sobre se Bolsonaro está ou não preparando um golpe. É verdade que ele já deixou claro seu afeto por regimes e líderes autoritários – e seus elogios às ditaduras brasileira e chilena, suas homenagens à memória de Stroessner e Ustra e as alegadas afinidades com o príncipe saudita estão aí como testemunho eloquente de suas simpatias políticas.

Mas um golpe não se constrói apenas com o apoio das redes sociais e alguns tuítes. Sem o respaldo institucional, como em 64, Bolsonaro corre o risco de amargar o final melancólico de um Jânio Quadros.

Por outro lado, tuítes e lives no Facebook mobilizam afetos e constroem um ambiente político mais propício a um governo que, sem suporte para um putsch, pode ainda assim destruir o que sobrou de uma democracia que nunca foi reconhecida exatamente por sua robustez.

Em tempos nos quais avançam, a passos largos, os chamados "populismos autoritários", mais que um golpe à moda antiga, a destruição das instituições democráticas e a restrição de direitos podem ser estratégias ainda mais eficientes de consolidação de um governo autoritário.

*Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

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