Convulsão no Chile é o álibi de Bolsonaro para a ruptura
* Murilo Cleto e Rafael Burgos
Com o aumento da resistência popular à degradação institucional do País, o governo tem subido o tom das ameaças à oposição. E o que antes poderia parecer exceção agora é o novo normal da política brasileira.
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Em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo na semana passada, o vice-presidente Hamilton Mourão atacou manifestantes e instituições e defendeu a repressão aos protestos. O presidente Bolsonaro, por sua vez, está cada vez mais despudorado quanto ao trato com os demais poderes e chegou até a compartilhar live do jurista Ives Gandra defendendo a estapafúrdia interpretação de que o artigo 142 pode ser utilizado para que as Forças Armadas intervenham em favor do Poder Executivo.
Seja como for, essa não é a primeira ofensiva retórica do bolsonarismo em direção à ruptura institucional. Ela começou um pouco mais tímida, às vésperas da eleição – com desmentidos e recuos táticos – , e foi ficando mais constante, estridente e sem recuos à medida que escalou a crise política junto à pandemia. E, entre todos os eventos, lá estava o Chile.
"Não podemos deixar que o Brasil se transforme no que foi há pouco tempo o Chile", disse Bolsonaro na última quarta (3) ao repreender atos de rua que, nesse domingo (7), ganharam nova investida. Mas não é de hoje que a convulsão social chilena é uma verdadeira obsessão para o bolsonarismo
Conforme dados obtidos junto à consultoria Bites – empresa que monitora as redes bolsonaristas – , num intervalo de cinco meses, entre outubro do ano passado e março deste ano, a família do presidente fez um total de 33 postagens com menções diretas aos protestos que se alastraram a partir de Santiago e fizeram despencar a popularidade de Sebastian Piñera.
A quase totalidade desses posts (30) é de autoria do deputado federal Eduardo Bolsonaro, figura-chave na articulação do bolsonarismo com os movimentos internacionais de extrema direita.
Em entrevista à jornalista Leda Nagle, o filho do presidente cogitou a possibilidade de um novo AI-5 em caso de radicalização similar. Paulo Guedes e o general Augusto Heleno o acompanharam depois.
Em outro gráfico abaixo, podemos ver a distribuição de 294 mil posts com associações entre Bolsonaro e Chile feitas pela rede bolsonarista no intervalo de quase um ano (jun/19 – mai/20).
Há, notoriamente, dois momentos de pico: um em setembro, com as repercussões da briga entre Bolsonaro e a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, e o outro em outubro, com a repercussão dos protestos.
Quando o Chile foi às ruas, as manifestações contra o governo no Brasil ainda eram razoavelmente tímidas, excetuando sobretudo as primeiras marchas contra os cortes na Educação. Em outras palavras, a retórica do inimigo interno soava extremamente frágil.
E é nesse sentido que o vizinho sul-americano entraria, então, como álibi para uma eventual ruptura por aqui: a imagem da desordem que viria de fora para dentro, numa questão de tempo, razão pela qual o governo Bolsonaro precisaria radicalizar.
Para isso, o bolsonarismo recorria, principalmente, à caricatura do Foro de São Paulo. Tratava-se de um esforço para reduzir as arestas internas do governo através da paranoia. É nesse anticomunismo difuso que o olavismo e os militares encontram conexão.
Basta recordarmos, novamente, o artigo de Mourão da semana passada, quando, no parágrafo inicial, o general ressalta como "registros da internet deixam claro quão umbilicalmente ligados (os protestos pró-democracia estão) ao extremismo internacional".
"Foro de São Paulo" ou "extremismo internacional", pouco importa, ambos servem à mesma narrativa, no intervalo entre a desordem chilena e aquilo que, hoje, prestes a concretizar a sua última tentação contra as instituições, o bolsonarismo pretende pintar como a desordem brasileira.
A armadilha retórica está pronta. À medida que se avolumarem os confrontos na rua, o bolsonarismo poderá bradar como, desde lá atrás, ele havia avisado. E, então, o Chile terá sido a profecia autorrealizável de um governo que, adepto do cinismo, produz o caos no intuito de atribui-lo aos seus adversários.
* Murilo Cleto é historiador, especialista em História Cultural, mestre em Ciências Humanas: Cultura e Sociedade e pesquisador das novas direitas no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.
* Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".
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