Entendendo Bolsonaro http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br Uma discussão serena e baseada em evidências sobre a ascensão da extrema direita no mundo. Tue, 16 Mar 2021 02:49:40 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Com eleição de Lira, direita enterra sua própria ilusão da frente ampla http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/02/04/com-eleicao-de-lira-direita-enterra-sua-propria-ilusao-da-frente-ampla/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/02/04/com-eleicao-de-lira-direita-enterra-sua-propria-ilusao-da-frente-ampla/#respond Thu, 04 Feb 2021 14:05:53 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1907

A eleição de Arthur Lira para a Presidência da Câmara deixou evidente uma ironia: a tal “esquerda sectária” foi mais fiel à frente ampla do que os próprios articuladores dessa ilusão. (Crédito: Marcos Correa/PR)

* Igor Tadeu Camilo Rocha

Em 3 de janeiro de 2021, a Folha publicou o editorial intitulado “Filme Antigo“, que entre outras coisas argumentava haver uma oportunidade histórica para que o Partido dos Trabalhadores (PT) abandonasse um histórico sectarismo ao apoiar uma frente ampla contra um inimigo comum – no caso, Jair Bolsonaro e seu governo – na eleição da presidência da Câmara dos Deputados.

Aderindo ao bloco articulado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) em torno do candidato Baleia Rossi (MDB-SP), contra um adversário apoiado por Bolsonaro, Arthur Lira (Progressistas, antigo PP – AL), o PT indicaria disposição a uma articulação em prol da democracia que não girasse em torno do partido, seu protagonismo ou autoridade. Não se repetiria, assim, o “filme antigo”, por exemplo, de quando o partido não renunciou a uma candidatura, em 2018, em detrimento de Ciro Gomes (PDT).

Mais que isso – aí vai uma interpretação minha do editorial – seria um passo fundamental rumo a um consenso ao centro, que ao mesmo tempo neutralizaria pautas à esquerda e se colocaria frente ao fascismo bolsonarista, protegendo a democracia e as instituições dentro de uma grande articulação nacional.

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Pouco menos de um mês se passou do editorial, e veio a contundente derrota dessa frente de Maia para Arthur Lira, candidato do governo. Derrota esperada, diante de vários outros banhos de água fria que vieram na medida em que a frente ampla multipartidária minguava. E é sobre esse processo que discutirei nesse artigo.

Afinal, se faz necessário compreender os entraves para uma frente ampla, que parece ser tão desejada por muitos, mas também tudo indica que esbarra na realidade do jogo político brasileiro. Mais exatamente em pontos tão incômodos como poucas vezes criticados das ideologias e afinidades políticas compartilhadas pelas direitas moderadas brasileiras. Precisamos, ainda, nos perguntar de que frente ampla falamos, quem a deseja e, claro, fundamental também pensar ao que ela deveria servir e como ela funcionaria.

Tentando responder, remeto a um artigo importante no qual a frente ampla é discutida, também publicado na Folha e com grande repercussão. Assinado por Sandro Cabral, Carlos Melo e Milton Seligman e intitulado “O imperativo da união pela democracia“, o texto traz alguns dos questionamentos com os quais gostaria dialogar aqui.

O texto argumenta que partidos e democratas da esquerda e da direita deveriam se unir, mesmo que ao preço de uma trégua entre algumas divergências político-ideológicas – boa parte delas justificáveis, salientam – a fim de derrotar o bolsonarismo. Não fazer isso, explicam, seria pôr a perder tudo o que foi conquistado no Brasil nos últimos 40 anos, em termos de democracia, direitos e instituições.

Parece bem claro qual seria o espírito dessa frente ampla, defendida no artigo como um imperativo ao Brasil atual. Trata-se de uma frente democrática desejada por quem, à direita, centro ou esquerda, defende a democracia e as instituições democráticas construídas no Brasil desde sua redemocratização; sua função seria barrar a escalada autoritária, fundamentalista e destrutiva do bolsonarismo contra essa democracia, de forma que ela sobreviva, até para, posteriormente, o embate político segundo suas regras continuar; e essa frente funcionaria a partir do entendimento de que tais pressupostos são mais urgentes que os interesses políticos e partidários. Construído dessa forma, tudo faz bastante sentido, de maneira a ser bem difícil discordar que tomar a disputa até 2022, pelo menos, por essa chave de leitura e atuação, seja o ideal. E é exatamente nisso que reside um enorme problema.

Mas antes cabe um parêntese para entendermos o tamanho da derrota desse ensaio de frente ampla (acho que podemos entender a articulação de Maia dessa maneira): Arthur Lira venceu para presidente da Câmara com 302 votos, quase a maioria qualificada do Congresso, que são 308. Daí seguem-se outras derrotas, com uma das mais fervorosas olavistas e bolsonaristas do Congresso, Bia Kicis (PSL-DF), sendo indicada para presidir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), considerada por muitos a mais importante das comissões da Casa.

Cabe ainda falar dos 145 votos para o candidato de Maia à presidência da Casa, o que significa uma derrota considerável se levarmos em conta as expectativas criadas quanto a essa articulação. Inicialmente, tratava-se de um grupo de 11 partidos — PT, PSL, MDB, PSB, PSDB, DEM, PDT, Cidadania, PV, PCdoB e Rede. Chegou-se a haver expectativa de se conseguir com ele mais de 280 votos, o que não se concretizou dadas as “traições”, desembarques e diversos outros fatores.

Desnecessário dizer que havia, no mínimo, um otimismo excessivo em acreditar na permanência do PSL, ex-partido de Bolsonaro, no bloco de Baleia Rossi. Mas chamam muito mais atenção outras “traições” ao bloco: PSDB e DEM.

No caso do PSDB, o candidato derrotado no pleito presidencial de 2014 e atual deputado pela legenda, Aécio Neves (MG), articulou um desembarque da legenda do bloco de Rossi, o que foi apenas parcialmente revertido pelo governador de São Paulo, João Doria. Já o DEM, a partir de decisão do presidente da legenda, ACM Neto (BA), liberou o voto dos seus deputados, o que tem gerado uma expectativa grande de cisão interna, até com possível saída de Rodrigo Maia.

Diante disso, é altamente provável que somente uma parte dos 31 deputados do PSDB tenha votado em Rossi, valendo o mesmo quanto aos 30 do DEM. Assim, é plausível conjecturar que mais da metade dos votos a Rossi tenha vindo dos deputados de PT, PDT e PSB (respectivamente com 54, 26 e 30 representantes). Isso significa que a mesma centro-esquerda que despertou a desconfiança de sectarismo como um entrave à frente ampla parece ter sido um bloco mais fiel (ou menos resistente) à tal frente democrática articulada pela centro-direita que os próprios partidos da centro-direita.

Daí, vejo um indício consistente de que a principal barreira para a desejada frente ampla democrática não esteja nem na esquerda e centro-esquerda institucionais e partidárias, muito menos numa esquerda radical, sem representação parlamentar. O problema está na direita moderada, que se apresenta como centro, oferecendo-se como uma alternativa democrática contra o bolsonarismo. Sua atual força política, aparentemente, é superdimensionada por esse campo ideológico e partidário. Além disso, a forma como esse campo apresenta o imperativo de uma frente nos seus termos como uma obviedade, “bom senso”, cobre alguns de seus pressupostos ideológicos, fundamentais para entender os limites de amplitude dessa frente.

Sobre a força real dessa centro-direita, é necessário observar sua retração no curso de uma radicalização do campo nos últimos anos. Uma análise publicada no Nexo ao final do primeiro turno das eleições de 2018, assinada por Fernando Guarnieri e Felipe Munhoz de Albuquerque, já apontava para o encolhimento das direitas tradicionais, em especial MDB e PSDB. Por uma série de motivos que não cabem ser discutidos aqui, o voto da direita saiu desses partidos: as direitas mais moderadas e inseridas no establishment político minguaram frente a figuras mais radicais no mesmo espectro, como Bolsonaro, partidos como PSL e Novo, grupos como MBL e outros, dentro de um processo de hiperpolitização da disputa política no Brasil, entre 2013 e a atualidade.

Por sua vez, a direita que saiu fortalecida nas eleições de 2020 e confirmou sua hegemonia no quadro político atual depois da eleição para a Câmara é a do centrão, grupo caracterizado por orbitar o Poder Executivo, trocando emendas, cargos e posições por apoios, votos e maioria no Congresso. Tradicionalmente, representa interesses do empresariado, além de oligarquias tradicionais e/ou regionais. Não possui agenda muito bem delimitada, tendo como marca distintiva seu adesismo.

E esse grupo não mostra e jamais indicou qualquer razão para aderir a uma frente anti-Bolsonaro ou pela defesa da democracia. Afinal, a democracia, nos moldes da que temos no Brasil, é bem funcional ao centrão, tanto que esse grupo é a marca institucional mais acentuada na política da Nova República e remete a estruturas bem longevas na nossa história política. Muito se fala da vitória de Bolsonaro com a eleição de Lira, mas é necessário entender que o mesmo centrão assumiu de vez o controle do governo, de forma que uma queda significativa de popularidade do presidente ou o não cumprimento dos acordos do Executivo com esse grupo nos próximos meses pode tornar Bolsonaro descartável. Assim, o crescimento do centrão e o encolhimento de uma centro-direita tradicional servem como fatores de fundo estrutural que respaldam a debandada de PSDB e DEM do grupo de Baleia Rossi.

Além disso, entendo haver entre parte dos defensores de (ou sonhadores com) tal frente ampla um wishful thinking de que esses dois partidos, mais alguns quadros do MDB, representam a via moderada entre as disputas ideológicas, tendo a racionalidade e o capital ético necessários para domar o bolsonarismo. Porém, essa forma de ver a política, importante como autorrepresentação dessa centro-direita, não se sustenta. Além disso, esconde afinidades político-ideológicas, diluídas em pós-política (apresentadas como obviedades, bom senso), que aproximam a tal centro-direita mais do bolsonarismo que elas queiram admitir e menos de alternativas democráticas de outros campos ideológicos dispostos a renunciar a algo para uma frente ampla.

Uma dessas afinidades político-ideológicas é quanto à agenda econômica. Uma grande parte da centro-direita brasileira está disposta a repudiar o bolsonarismo, mas defendendo a ferro e fogo o “guedismo”, como se isso fosse possível. Desse ponto de vista, o risco à democracia representado por Bolsonaro é um problema na medida em que impede ou torna mais lenta um conjunto de reformas neoliberais. Mais que isso, o autoritarismo ou o negacionismo do presidente com a pandemia ficam menos inaceitáveis se acontecerem as privatizações, uma reforma administrativa que mantenha privilégios de algumas categorias – judiciário e militares, por exemplo – e precarize as demais, uma reforma tributária que mantenha a estrutura regressiva e, claro, haja a manutenção da Emenda Constitucional 95 e o “teto de gastos” por 20 anos.

Outra afinidade desse tipo é em torno de um anti-esquerdismo, materializado no antipetismo e na própria repulsa à figura de Lula, equiparado por falsa simetria a Bolsonaro. O curioso, novamente, é que esse tipo de narrativa existe junto com a constante expectativa de que PT e toda a esquerda inviabilizem a frente ampla por sectarismo, sendo que a resistência a fazer parte de uma frente com partidos desse campo vem consistentemente dessa centro-direita. Como exemplo recente, cabe lembrar que uma das justificativas para a saída do PSDB do bloco formado por Maia tenha sido evitar o PT na mesa diretora da Câmara.

Uma última afinidade política que impede uma oposição mais aguda ao bolsonarismo da centro-direita se dá em torno do lavajatismo. Mesmo diante das revelações da Vaza Jato, cristalizadas na recente publicização de conversas entre o ex-juiz Sergio Moro e procuradores da “República de Curitiba” no âmbito da Operação Spoofing, a autocrítica dessa centro-direita por ungir a Lava Jato como salvação nacional contra a corrupção está longe de acontecer.

Partidos como PSDB e DEM, bem como variadas figuras políticas desse campo e editoriais de grandes grupos de imprensa, ainda hesitam quanto a isso. Moro aparece frequentemente em pesquisas extemporâneas de intenção de voto para a presidência em 2022, e as conversas mencionadas acima, que desvelam ilegalidades absurdas, repercutiram muito menos que deveriam no debate político.

Esse conjunto de fatores é suficiente para fazer da defesa das instituições ou da democracia uma mera abstração. Diante de imperativos conjunturais e um conjunto de pressupostos ideológicos, a centro-direita brasileira permanece entre o infame “Uma escolha muito difícil” de 2018 e um adesismo de ocasião ao governo Bolsonaro, sendo que neste último aspecto o centrão cobre tal papel com muito mais competência.

Assim, se houve um ensaio geral em 1º de fevereiro de 2021 sobre uma frente ampla em 2022, sabemos que ele foi péssimo. Se havia o objetivo de uma frente que, ao mesmo tempo, esvaziasse agendas de oposição à esquerda e fizesse frente ao bolsonarismo por um viés de centro-direita moderado, isso, na prática, mostrou-se pouco viável. Para 2022, que fique a reflexão sobre tudo o que nos levou a esse quadro. E, claro, que alguns erros sejam deixados de lado até lá.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O “Entendendo Bolsonaro” do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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Pasternak: “Pesquisadores não podem assistir calados ao que acontece” http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/29/pasternak-pesquisadores-nao-podem-assistir-calados-ao-que-acontece/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/29/pasternak-pesquisadores-nao-podem-assistir-calados-ao-que-acontece/#respond Fri, 29 Jan 2021 15:43:33 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1900

“É preciso lidar com política. Precisamos nos preparar para isso e estarmos aptos a conversar com a sociedade, com o governo, com o setor industrial. Não podemos nos omitir, porque a ciência não pode ficar restrita aos laboratórios”. (Crédito: Valor Econômico)

* Cesar Calejon

Embora sejam muito mais populosos do que Brasil e Estados Unidos, China e Índia registraram números inferiores de mortes decorrentes da pandemia. Por quê? Na tarefa de compreender a realidade brasileira, há inúmeros fatores sociais, históricos e culturais a serem considerados. Mas há um aspecto crucial que une Brasil e EUA nessa equação macabra: os negacionismos genocidas avançados pelas administrações Bolsonaro e Trump.

Para refletir sobre os estragos causados pelo bolsonarismo na forma como as comunidades médica e científica do Brasil se organizaram no combate à covid-19, o blog entrevistou Natalia Pasternak, microbiologista e divulgadora científica.

“A gestão bolsonarista simplesmente negou que o problema sequer existia e optou por não conduzir o Brasil durante a pandemia. Essa postura negacionista foi adotada desde o início da crise sanitária pelo próprio presidente da República e pelo governo federal. (…) As falas de Jair Bolsonaro são absolutamente anticientíficas e demonstram a total falta de conhecimento sobre como a ciência funciona. (…) Todo o esforço que é feito no sentido de esclarecer os brasileiros, o presidente joga pela janela”, avalia Pasternak, que é presidenta do Instituto Questão de Ciência (IQC) e foi a primeira brasileira a integrar o Committee for Skeptical Inquiry (Comitê para a Investigação Cética), comitê fundado nos anos 1970 por nomes como o astrônomo Carl Sagan e que propõe a investigação crítica de alegações pseudocientíficas a partir de um ponto de vista científico responsável.

Para ela, a ascensão do bolsonarismo afetou a pesquisa e a ciência no Brasil de forma sem precedentes. “O desmonte da pesquisa e do campo científico nunca foi tão intenso quanto no governo Bolsonaro, mas ele já existia antes. A falta do investimento em ciência não surgiu na administração bolsonarista. (…) Contudo, nunca houve um governo que se posicionou tão notoriamente contra a ciência e a educação como essa gestão atual, o que representa um problema enorme, porque são as universidades que desenvolvem as soluções, novas tecnologias e que vêm trabalhando na questão da própria vacina contra a doença, em testes de diagnósticos, esse tipo de ‘balbúrdia’, por exemplo. O bolsonarismo combateu a atuação das comunidades médica e científica com muita ênfase no Brasil durante a pandemia. Basta ver que o ministro de Ciência e Tecnologia (Marcos Pontes) não entende absolutamente nada sobre o tema da pasta e desperdiça R$ 11 milhões com o teste clínico de um remédio para fazer populismo”, afirma a microbiologista.

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Com direito a ampla divulgação pelo governo e cerimônia com presença do presidente Jair Bolsonaro, o antiparasitário Nitazoxanida, vendido no Brasil sob a marca Annita, foi apresentado, na terceira semana de outubro de 2020, no Palácio do Planalto, como um tratamento promissor para a covid-19 no início da infecção.

Esse recurso, nas mãos de uma instituição séria, como o Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas da Universidade de São Paulo, no qual Pasternak atua, seria utilizado de uma forma infinitamente mais produtiva, garante a pesquisadora.

“Nós conseguimos o aporte de R$ 1 milhão do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para desenvolver três tipos de vacinas diferentes contra a covid-19. Onze vezes menos para trabalhar as vacinas contra um remédio que todos sabiam que não tinha plausibilidade biológica nenhuma para funcionar. Trata-se de um governo extremamente populista que se utiliza de pseudociência para se promover a qualquer custo”, ressalta Pasternak.

Sem qualquer dimensão de responsabilidade ou prioridade, o bolsonarismo não somente deixou de investir em todas as vacinas disponíveis contra a doença, mas ainda atacou a Coronavac reiteradamente, desqualificando o imunizante e incutindo medo na população brasileira.

“A recusa de Jair Bolsonaro em aceitar e muitas vezes até atacar deliberadamente a Coronavac prejudicou o plano vacinal brasileiro. Os ataques do presidente podem não ter afetado propriamente o desenvolvimento da vacina, que foi feito por uma multinacional chinesa em parceria com instituições brasileiras, mas comprometeu muito a imagem da Coronavac junto à opinião pública. Basta ver a última pesquisa apresentada pelo Datafolha, que demonstrou que 22% dos brasileiros sentem medo de tomar qualquer vacina contra a covid-19 – número que já é muito alto para uma população que sempre foi extremamente favorável ao uso das vacinas – e 50% afirmam que têm receio especificamente da Coronavac”, pondera a cientista, que destaca a segurança e a eficácia da vacina.

Para ela, a Coronavac “é eficaz e extremamente segura, porque passou muito bem por todos os testes clínicos e foi testada em milhares de pessoas, que foram acompanhadas para a verificação de possíveis reações relacionadas ao uso da própria vacina. Os efeitos colaterais são mínimos, o que é normal considerando que as vacinas elaboradas com base no vírus inativo são muito seguras, geralmente. Trata-se de uma tecnologia simples, que cultiva o vírus inativo, por meio de produtos químicos ou do calor, para que o organismo da pessoa possa desenvolver respostas imunológicas de defesa sem correr o risco de adoecer. (…) Assim são feitas as vacinas contra a gripe e a raiva, por exemplo. É uma tecnologia consolidada, que o Instituto Butantan domina, sabe fazer e é muito confiável”.

No que diz respeito às novas cepas, como a de Manaus, por exemplo, Natalia acredita que as vacinas deverão ser eficazes contra as mutações. “Temos poucas informações consolidadas até esse ponto, mas existem estudos epidemiológicos que sugerem que essas linhagens (do vírus) são mais contagiosas. Não sabemos se elas são mais virulentas e agressivas, mas, com certeza, elas parecem ter alguma vantagem na transmissão e isso é esperado quando você tem um vírus circulando livremente em bilhões de pessoas no planeta. Isso acontece porque qualquer vantagem que uma linhagem tenha sobre a outra acaba sendo determinante para que ela prevaleça. (…) Foi o que aconteceu no começo de 2020, quando a D614G, que era uma linhagem que tinha uma mutação na proteína S, tornou-se prevalente no mundo inteiro. Precisamos de ensaios bioquímicos para determinar com certeza se essas novas cepas são mais letais. Isso não depende somente dos estudos epidemiológicos”, esclarece.

“Sobre o escape da vacina”, prossegue ela, “que é a maior preocupação nesse sentido, os primeiros estudos realizados parecem indicar que as novas cepas não são resistentes às vacinas que nós temos. Houve um trabalho que demonstrou o escape de um anticorpo monoclonal, o que é algo mais específico do que as vacinas. Então, as vacinas deverão dar conta desses mutantes, mas isso também precisa ser testado em laboratório. Uma vacina de vírus inativo, como a Coronavac, por exemplo, tem vantagem de lidar com múltiplos pontos considerando o enfrentamento ao vírus, enquanto as vacinas de vetor ou RNA miram um único alvo, que é a proteína S (proteína da Spike). Com a Coronavac, o alvo é todo o vírus, porque ele está inteiro inativo. Então, caso haja uma mutação na Spike, isso não faz muita diferença para essa vacina, porque ela tem outras partes para atingir. Pode fazer diferença para os outros imunizantes, caso essas mutações sejam muito significativas e alterem muito a estrutura da proteína”.

Contudo, as vacinas genéticas e de adenovírus são muito versáteis. É rápido e fácil trocar a sequência genéticas que elas carregam, de acordo com a microbiologista. “Caso surja uma mutação que demande a atualização dessas vacinas, esse processo deverá acontecer em questão de semanas agora. Existem plataformas que conseguimos atualizar rapidamente caso apareça um vírus mutante muito diferente”, complementa.

No momento em que entidades como o Conselho Federal de Medicina evitam posicionar-se contra a desinformação promovida pelo Planalto, Pasternak aponta para a necessidade de os pesquisadores participarem da política e estabelecerem pontes com a sociedade. “Os pesquisadores e cientistas não podem ficar calados e achar que as coisas serão resolvidas sem a nossa interferência. É preciso lidar com política. Precisamos nos preparar para isso e estarmos aptos a conversar com a sociedade, com o governo, com o setor industrial. Não podemos nos omitir, porque a ciência não pode ficar restrita aos laboratórios. Precisamos investir em cientistas que façam essa ponte, essa interface com membros do governo, o Parlamento, as empresas e a população”.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro “A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI” (Lura Editorial).


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O “Entendendo Bolsonaro” do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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Bolsonarismo é o sintoma e a doença: resta o impeachment http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/24/bolsonarismo-e-o-sintoma-e-a-doenca-resta-o-impeachment/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/24/bolsonarismo-e-o-sintoma-e-a-doenca-resta-o-impeachment/#respond Mon, 25 Jan 2021 00:37:45 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1892

(Crédito: Antonio Cruz/Agência Brasil)

* Cesar Calejon 

Desde a ascensão do bolsonarismo em 2018, alguns dos principais sociólogos, professores e estudiosos das ciências sociais brasileiras têm refletido sobre a natureza do movimento sociopolítico que adoeceu o Brasil para entender duas questões fundamentais: (1) em qual medida as ideias e os seguidores bolsonaristas são o reflexo de uma sociedade previamente doente? (2) em qual medida essa parcela da população e esse conjunto de ideias foram aspectos centrais para agravar o cenário do país no começo dessa nova década?

De forma dialética e complexa, entendo que o bolsonarismo é o sintoma e a própria doença, de maneira que o único caminho possível para salvaguardar o que resta do Brasil é o impedimento do projeto golpista que se iniciou em 2016.

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Enquanto sintoma, o bolsonarismo indica a fragilidade educacional de uma parcela expressiva da população brasileira e o enrijecimento do arranjo sociopolítico doméstico, que foi fundado sobre as premissas escravocratas e assassinas das épocas coloniais e imperiais brasileiras.

Somado ao esgotamento das capacidades regenerativas da modernidade ocidental e alinhado ao consenso hegemônico global, que nesse contexto compreende o neoliberalismo em sua forma mais agressiva (hiperbolizado no Ocidente desde o fim da década de 1980), o consenso do estado fraco (o estado como instrumento de uso do capital financeiro), o consenso liberal democrático (eleições e mercados livres a serem disputados por cidadãos individualistas e competitivos) e a judicialização da política, o governo de Jair Bolsonaro já vinha promovendo o seu projeto de destruição antes sequer da pandemia atingir o Brasil, em março de 2020.

Portanto, essa unidimensionalidade do bolsonarismo vai ao encontro da estrutura de raciocínio que permeia boa parte dos brasileiros: uma forma mais polarizada, reducionista e concreta de perceber o mundo, impulsionada pelo alto consumo de produtos televisivos, em detrimento da ausência de contato com qualquer tipo de literatura.

Por exemplo, por meio desse tipo de pensamento, que os psicólogos chamam de “concreto”, uma pessoa pode concluir que uma carroça e uma bicicleta são a mesma coisa, porque ambas possuem rodas. Com um tipo de pensamento mais elaborado, que foi intitulado “pensamento abstrato generalizador”, o sujeito é capaz de entender as similaridades e as diferenças entre os dois veículos para abstrair o que lhe for útil a compreender a complexidade da questão, neste caso, as diferenças entre a bicicleta e a carroça, apesar de as duas apresentarem rodas. Em última análise e na prática, significa ser capaz de perceber a vida de uma maneira mais integral e elaborada e menos dogmática e polarizada.

Em linhas gerais, os brasileiros passaram a segunda metade do século passado assistindo às telenovelas noturnas e aos programas de palco, organizando a construção da sua realidade de forma concreta por meio de imagens e representações gráficas definidas que deixam pouquíssima margem para o raciocínio e a livre elaboração.

Esse processo propiciou a fragilidade ideal para a proliferação da linguagem que o WhatsApp e os pastores evangélicos avançariam décadas mais tarde. Exatamente por esse motivo, a gestão Bolsonaro combateu de forma tão veemente a literatura e as universidades, que são as duas dimensões da vida social que mais estimulam o pensamento abstrato por meio da constituição do conhecimento e da aquisição de cultura.

O bolsonarismo é o sintoma muito claro de que precisamos repensar todos esses aspectos citados acima, porque, caso contrário, futuros líderes populistas de ultradireita deverão ascender com propostas similares no Brasil durante as próximas décadas. É preciso endereçar a enfermidade de forma mais ampla e não somente os sinais que a manifestam.

Enquanto parte da própria doença, o bolsonarismo acirrou os elitismos históricos e processos de animosidade de todas as ordens (étnicos, de gêneros, raciais etc.), destruiu a soberania brasileira e promoveu, por meio da disseminação do sentimento antissistema, a evangelização, a militarização e a milicianização da política institucional no país.

Ou seja, o bolsonarismo evoluiu as forças obscurantistas que o criaram para o nível seguinte de degradação e despolitização social. O sentimento antissistema e a judicialização da política (Lava Jato) foram catalisados nessas forças sociais que agora ameaçam derradeiramente a democracia brasileira diante de 2022.

Com a economia devastada, o segundo maior número de óbitos registrado em decorrência da covid-19 em todo o planeta, a explosão da violência, da criminalidade e da intolerância, escândalos de corrupção do governo federal, desavenças internas e externas de todas as ordens, indicadores sociais apontando para a deterioração dos padrões de vida e o desmatamento recorde das suas florestas e regiões de preservação, a nação vê-se confrontada com os efeitos práticos que utilizar o ódio, o medo e os elitismos históricos combinados às redes sociais digitais para eleger os seus líderes representativos acarretam, invariavelmente. Assim, lamentavelmente para o Brasil, a ascensão do bolsonarismo ainda coincidiu com a pior pandemia do século.

Apesar do jogo político se dar com base no embate de narrativas muitas vezes antípodas, fatos sempre serão fatos e os indicadores sociais existem para demonstrá-los. Dessa forma, não se pode “discordar” das mortes causadas pela doença, do valor da gasolina, das reservas internacionais, do Produto Interno Bruto, dos alimentos ou do dólar, por exemplo.

Esses indexadores refletem parâmetros práticos e concretos da vida social cotidiana que independem da interferência de quem os observa de forma imediata. Portanto, não são questões abstratas ou partidárias, sujeitas a diferentes interpretações. Fato é que o bolsonarismo potencializou amplamente os estragos da pandemia no Brasil. Cabe avaliar a extensão dos danos e as possíveis saídas e implicações dessas ações criminosas nos próximos anos.

De muitas maneiras, do médio para o longo prazo, a eleição de Jair Bolsonaro e a ascensão do bolsonarismo servirão a propósitos elementares para fomentar o desenvolvimento das forças sociais contra-hegemônicas e progressistas ao longo desse século. O problema mais sério diz respeito ao cenário que pode se produzir nas próximas três décadas com base nessa filosofia sociopolítica, a exemplo do que aconteceu na primeira metade do século passado na Europa.

Conforme aponto na obra “A Ascensão do bolsonarismo no Brasil do Século XXI”, o Brasil vem se transformando em uma espécie de teocracia evangélica de caráter miliciano, com ênfase absoluta no agronegócio e no trabalho informal, frágil e a serviço do capital financeiro estrangeiro, fundamentalmente. O golpe organizado pela direita liberal e setores da imprensa brasileira em 2016 acelerou esse processo de forma alarmante.

Contudo, a busca por uma sociedade mais equânime, menos racista e elitista, e a proteção do meio ambiente contra as mudanças climáticas serão as grandes pautas sociopolíticas dessa década nas maiores nações das Américas e em diversas regiões do mundo, o que oferecerá uma oportunidade imensa de desenvolvimento para o campo progressista nacional. De alguma forma, governos como os de Trump e Bolsonaro elevaram o nível de incômodo que mudanças significativas dessa ordem requerem.

Depois da tempestade perfeita, lições coletivas acerca da natureza das nossas escolhas e das origens da nossa sociedade estarão evidentes como em nenhuma outra ocasião do nosso período moderno. Cabe a nós, enquanto cidadãos brasileiros, sermos capazes de aprender com os equívocos de 2018, com todas as suas contradições e divergências, porque esse é o único caminho viável para evitar o projeto obscurantista que se desenhou de forma muito clara no Ocidente durante a segunda metade da década passada. Nesse contexto, o impeachment de Jair Bolsonaro tornou-se uma questão de sobrevivência para o Brasil.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro “A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI” (Lura Editorial).


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O “Entendendo Bolsonaro” do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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Com instituições em sufoco, impeachment ainda é miragem http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/21/com-instituicoes-em-sufoco-impeachment-ainda-e-miragem/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/21/com-instituicoes-em-sufoco-impeachment-ainda-e-miragem/#respond Thu, 21 Jan 2021 16:33:49 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1883

(Crédito: Alan Santos/PR)

Vinícius Rodrigues Vieira

A Presidência da República está, de fato, vaga. Jair Bolsonaro não mais exerce a função de presidente — se é que algum dia já a exerceu. Ele apenas ocupa o cargo de presidente. Sem função, todo cargo é, a princípio, decorativo. Já faz quase um ano que governadores e secretários de Saúde se articulam sem a mediação de Brasília para combater a pandemia, potencializada pelo coquetel de ignorância e incompetência de Bolsonaro.

Foi assim que ele, negligente, rejeitou ampliar o leque de vacinas à disposição dos brasileiros, hoje dependentes apenas da Coronavac, fruto da ação das instituições paulistas sob o comando do tucano João Doria. Portanto, Bolsonaro não é apenas decorativo: ele virou um estorvo sem o qual — pode-se concluir sem nenhum exagero — estaríamos muito melhores na guerra à covid-19. Assim, por que o impeachment ainda é miragem ainda que o assunto tenha voltado com força nas redes e altas rodas do poder?

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São três os fatores principais. Em primeiro lugar, muitos devem pensar como o senador oposicionista Cid Gomes (PDT-CE): não se pode vulgarizar o impedimento de um presidente. Tivemos um (controverso) impeachment há quase cinco anos. Se Bolsonaro for impedido, teremos três dos cinco presidentes eleitos no pós-ditatura impichados. Em tal cenário, apenas FHC e Lula teriam se safado desse destino inglório.

Isso desmoraliza qualquer sistema político — mas, sem dúvida, não compromete ainda mais as nossas instituições, que permanecem funcionais apenas na cabeça daqueles que mantêm o estômago forrado e a consciência intocada apesar das sucessivas crises que enfrentamos desde 2013. Talvez esteja na hora de voltarmos ao debate sobre o parlamentarismo ou, pelo menos, um sistema semipresidencial tal e qual o francês, em que o presidente detém autoridade sobre defesa e política externa, mas nomeia um primeiro-ministro.

Depois temos o fator pandemia. Muito embora Bolsonaro sabote o combate a ela, adicionar instabilidade política à crise sanitária pode ser explosivo. Isso ocorre porque, em meio a uma eventual tentativa de remover o presidente pelos meios legais, há o risco nada negligente de a falta de coordenação entre União, estados e municípios se agravar.

Tal risco está associado ao principal anteparo bolsonarista no poder. Não falamos da militância aguerrida que, para além de bots virtuais, é parte essencial da manutenção da aprovação do presidente em patamares relativamente elevados. JB não fica no poder sem o EB — isto é, o Exército Brasileiro, se bem que, na toada atual, a sigla pode vir a significar, no futuro, Exército Bolsonarista.

O EB se diz uma instituição de Estado, mas caracteriza como golpismo toda e qualquer crítica legítima a um presidente que contradiz seu juramento constitucional de “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Temos tudo, exceto bem-estar nesta pandemia.

Nesse cenário, Bolsonaro continua a não ter papas na língua: disse em meio ao nadir de sua incompetência e má-fé que são as Forças Armadas que garantem a democracia. Vivemos com a espada de Caxias no pescoço desde pelo menos aquele tweet do então comandante do Exército, General Eduardo Villas-Bôas, endereçado ao Supremo Tribunal Federal às vesperas do julgamento que selou o destino de Lula e, portanto, das eleições de 2018. Isso para não citar o temor de golpe às vésperas da eleição, conforme manifestado pelo então presidente do STF Dias Toffoli.

A última chantagem da turma do “braço forte, mão amiga” parece ter sido endereçada via Procuradoria-Geral, que, em nota, sugeriu que o estado de calamidade da pandemia seria a antessala de um Estado de Defesa — recurso que, de maneira justa, Villas-Bôas teria negado no contexto do impeachment de Dilma. Relatório do site jurídico JOTA sugere que o recurso do Estado de Defesa seria cogitado para debelar eventuais ameaças ao mandato de Bolsonaro, que, nessa narrativa auto-indulgente, não conseguiria governar por conta da oposição.

Deus, perdoe os oficiais que empunham a espada de Caxias, símbolo da graduação em Agulhas Negras! Talvez não saibam o que fazem. Aparentemente, em vez de aprenderem a defender a nação, foram treinados para combater inimigos internos, dentre eles um “tigre de papel” chamado comunismo, morto e enterrado desde o início dos anos 1990 (camaradas, a China é uma ditadura, mas é comunista só no nome!).

Quiçá nossos ex-cadetes tenham esquecido não ter havido desonra maior àquela espada senão o conjunto de ações terroristas, em meados dos anos 1980, que levaram à reforma o capitão Bolsonaro — o mal militar, na precisa definição do general Ernesto Geisel, presidente durante a ditadura militar entre 1974 e 1979.

Ironicamente, foi sob Geisel que a política externa brasileira deu seus lances mais ousados, durante a era do pragmatismo responsável. Domesticamente, a busca por alianças políticas no mundo em desenvolvimento se justificava no contexto do II Plano Nacional de Desenvolvimento, que nos legou, por exemplo, a indústria química tal como a temos hoje. Na Índia, por exemplo, esse ramo da economia foi a base de sua monstruosa competitividade no setor farmacêutico, inclusive na produção de vacinas. Sem isso, os indianos não produziriam hoje uma das versões do imunizante desenvolvido pela Astrazeneca em parceria com a Universidade de Oxford.

Geisel deve se remexer em seu túmulo. Além de ter deixado o Brasil de joelhos, implorando por vacinas e insumos para fabricá-las, Bolsonaro representa o triunfo da linha dura que aquele general-presidente debelou ao demitir, em 1977, o general Sylvio Frota. A mesma linha dura que, aliás, teria ganhado sobrevida caso Paulo Maluf tivesse ganhado de Tancredo Neves no colégio eleitoral, em 1985.

De fato, cabe aqui lembrar o que um dos próceres da ditadura, Antonio Carlos Magalhães, disse a respeito da eleição de Maluf: “Trair a revolução de 1964 e a memória de Castello Branco e Eduardo Gomes é apoiar Maluf para presidente. Trair os propósitos de seriedade e dignidade da vida pública é fazer o jogo de um corrupto, e os arquivos dos órgãos militares estão com as provas da corrupção e da improbidade.”

Era o sujo falando do mal lavado, mas, dentro da narrativa do Exército, se o golpe de 1964 foi uma revolução (algo do qual discordo), a eleição de Bolsonaro foi a contrarrevolução dos linhas-duras aliados a pretensos liberais, comprometendo talvez irreversivelmente nossa já combalida estrutura econômica e científico-institucional. Foi sob o governo autoritário que o sistema de universidades federais se consolidou, enquanto a industrialização avançava. Não por coincidência esse nacional-desenvolvimentismo seria emulado, sem sucesso, à esquerda, por Lula e Dilma entre 2006 e 2013.

Muito embora o bolsonarismo tenha afinidades com o tradicionalismo pré-iluminista encarnado em outros movimentos de extrema-direita mundo afora, trata-se sobretudo de uma corrente política que, no contexto brasileiro, vê-se como herdeira do trabalho supostamente incompleto da ditadura. O efeito colateral de tal missão consiste em desmontar aquilo que os militares legaram ao Estado brasileiro e que, com certas diferenças, poderia ter continuado a ser edificado pela democracia de 1946. Cria-se, assim, terreno fértil para poderes paralelos, tais como as milícias, e o patrimonialismo, encarnado na investida de pastores e afins sobre o Estado e suas políticas públicas.

A cereja do indigesto bolo bolsonarista é o centrão, que, aliás, cimenta todo e qualquer pacto político brasileiro desde 1930, desde a posse de JK até o PT no poder, passando pela eleição de Tancredo, o impeachment de Collor e o governo FHC. Com os espaços abertos para exercer o patrimonialismo, o centrão — na figura do candidato de Bolsonaro à Presidência da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) — não tem hoje incentivos para se alinhar a forças progressistas, sejam elas de esquerda ou de direita.

Tal como a Presidência, as ruas estão vazias. Somente o povo no asfalto teria poder para levar os patrimonialistas a caírem em si e se lembrarem que, se as instituições seguirem ladeira abaixo sem freio, não haverá nada para se dilapidar. Ou seja, ao centrão não interessa a desconstrução total do país, nos moldes bolsonaristas e da linha-dura da ditadura. O ponto de ruptura dos patrimonialistas com o bolsonarismo, porém, ainda não surge no horizonte. Por ora, apenas nos perguntamos quantos mais terão de morrer sufocados antes que a democracia brasileira volte a respirar.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O “Entendendo Bolsonaro” do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco

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A história não julgará Bolsonaro, esse é um dever do nosso tempo http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/19/a-historia-nao-julgara-bolsonaro-esse-e-um-dever-do-nosso-tempo/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/19/a-historia-nao-julgara-bolsonaro-esse-e-um-dever-do-nosso-tempo/#respond Tue, 19 Jan 2021 03:46:28 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1868

Houvesse “tribunais da história”, exaltar a memória de um torturador levaria alguém à cadeia, e não à Presidência da República. (Crédito: Isac Nóbrega/PR)

[RESUMO] O apelo ao implacável julgamento da história, além de não fazer sentido sob qualquer perspectiva nos estudos históricos, também denota problemas sérios e incontornáveis sobre como nos posicionamos diante de figuras e realidades que nos oprimem. Julgar Bolsonaro é um dever para a nossa geração, e não para falsos tribunais do futuro.

* Igor Tadeu Camilo Rocha

No dia 24 de maio do ano passado, em sua primeira aparição pública como ex-ministro da Saúde, Nelson Teich foi perguntado sobre os motivos de sua saída do cargo. “Quem vai julgar o presidente é o futuro, não vai ser eu“, disse, introduzindo a sua explicação de que a origem da demissão estaria na falta de convergência entre ele e o presidente Jair Bolsonaro.

Curiosamente, no mês anterior e na ocasião da posse de Teich na pasta da Saúde, foi a vez de Bolsonaro evocar o julgamento da história ao se referir às divergências que teve com o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, à época recém-saído do ministério: “Lá na frente a história vai nos julgar e eu espero que estejamos certo (sic)”, disse o presidente antes de um discreto agradecimento ao ex-ministro.

Em comum, as duas falas citadas ecoam um imaginário um tanto repetido no debate público, que sugere a existência de um “tribunal da história”, implacável com os malfeitores e do qual a verdadeira justiça haveria de brotar. No caso, caberá à história, segue o raciocínio, dizer se Bolsonaro ou seus ex-ministros estão certos em relação ao que pensaram e planejaram diante da pandemia.

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Neste começo de 2021, temos assistido atônitos e revoltados o caos vivido pela capital do Amazonas, que atravessa novamente um colapso de seu sistema de saúde provocado pela covid-19. Junto às terríveis notícias, vimos o atual ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já ciente da iminente escassez de oxigênio em Manaus, montar uma força tarefa de médicos defensores de um inexistente tratamento precoce para a doença causada pelo novo coronavírus, promovendo esse engodo nas Unidades Básicas de Saúde da cidade.

Na mesma semana, Bolsonaro voltou a mentir em rede nacional, dessa vez no programa “Brasil Urgente”, da Band, em que, diante do apresentador José Luiz Datena, afirmou que a inação do governo federal se deve a um impedimento feito pelo Supremo Tribunal Federal de ele agir junto aos estados e municípios, uma falácia já desmentida incontáveis vezes desde o primeiro semestre do ano passado.

Na mesma entrevista, o presidente soltou a pérola de que o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação (o “diferenciado”, nas suas palavras) Marcos Pontes estaria desenvolvendo uma vacina brasileira, dizendo em seguida não saber em qual laboratório isso estaria sendo feito. “Não faço ideia, pergunta pro Marcos Pontes”, respondeu Bolsonaro a Datena quando perguntado sobre a informação que deu.

Esses e outros descalabros – como a embaraçosa negociação do Brasil com o governo da Índia a respeito da compra de 2 milhões de doses da vacina AstraZeneca – normalizaram no debate público a ideia de que o destino de Bolsonaro e apoiadores – declarados ou tácitos – seja a lata de lixo da história, como se houvesse em algum lugar do tempo-espaço um implacável julgamento, a ser feito pela História, com “H” maiúsculo, e no qual a verdade, seja ela qual for e doa a quem doer, inevitavelmente aparecerá e colocará cada qual no seu lugar de merecimento. Essa lata de lixo estaria, nesse sentido, reservada a todos os criminosos, negacionistas e inimigos da liberdade e do progresso humano em geral. Mas será que isso existe? Tentarei aqui esboçar uma breve reflexão sobre isso.

Antecipando a resposta, digo que, apesar do uso retórico e de uma função muitas vezes bem definida nos embates políticos, esse apelo ao implacável julgamento da história, além de não fazer sentido sob qualquer perspectiva nos estudos históricos, também denota problemas sérios e incontornáveis sobre como nos posicionamos diante de figuras e realidades que nos oprimem.

Esse julgamento da história, que pode colocar figuras como Bolsonaro numa lata de lixo da memória histórica de um país, remete a uma concepção específica da história já há muito colocada em posição, no mínimo, marginal pelos historiadores, ao sugerir que exista uma história que independa das ações humanas e se desenvolva de maneira autônoma. Pois cabe à humanidade, sob essa perspectiva, quando muito, trazer essa história à luz, revelando-a. Esse entendimento da história caminha próximo de outro que a entende como um caminho inexorável ao progresso, um rumo certo sempre a um futuro melhor que o agora, ainda que haja vez ou outra algum tipo de desvio.

Unindo esses dois entendimentos da história, concepções já abandonadas pela historiografia, mas que possuem algum enraizamento no senso comum e que aparecem nos usos políticos das narrativas sobre o passado, chegamos à ideia de que a história julgará, por exemplo, figuras como Bolsonaro e apoiadores pelos seus atos irresponsáveis na pandemia que matou mais de 200 mil brasileiros. Fica a ideia de que em algum ponto do futuro, quando as coisas – incluindo nós mesmos, enquanto brasileiros e humanidade – forem melhores, a justiça será feita.

Contudo, essa concepção de como as coisas acontecem na história só se sustenta de um ponto de vista metafísico. O problema de entender a história dessa maneira é que, segundo esse raciocínio, há pouco (ou nenhum) espaço para a ação humana nos processos históricos. Ao longo dos dois últimos séculos, a história tem sido pensada, de modos diversos, como produto de ações humanas, conduzidas por pessoas que com seus desejos, medos, organizações, tensões e todas as demais formas de lidar com o mundo desencadeiam processos que movimentam a história.

Ela, a história, é feita e contada por pessoas a partir de diversos embates e tensionamentos, que envolvem suas relações com o passado e presente, além de suas expectativas com o futuro; que também envolvem as relações sociais, lugares a partir dos quais narramos o passado e pensamos o futuro, construindo experiências e identidades; envolvem ainda conflitos e as diversas disputas de narrativas e intersubjetividades que são próprias da construção permanente do passado.

Tudo isso pode parecer muito abstrato, mas um breve olhar sobre os usos que Bolsonaro e apoiadores fazem da história dá mais concretude a esse raciocínio. A ditadura militar brasileira (1964-1985) é exaltada por ele em toda a sua vida pública, além de não raras vezes o atual presidente render homenagens ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Pela concepção metafísica da história que citei acima, esse período e esse tipo de figura já deveriam ter sido julgados e colocados no pior lugar possível na memória de qualquer sociedade minimamente democrática, mas não o foram. Pelo contrário, recorrer a ambos rende capital político para que um presidente seja eleito.

E isso aconteceu não porque tal julgamento da história ainda está por vir ou porque ele falhou: a questão aqui é que as disputas reais entre diversos atores sociais e a construção de uma memória nacional sobre a ditadura – o que envolve o não julgamento dos torturadores, a lei de anistia, a transição pactuada pela democracia, entre outros fatores – estiveram e ainda estão repletas de espaços para que leituras positivas sobre ela possam ganhar espaço.

Como analisou Pierre Vidal-Naquet sobre os negadores do holocausto nazista, no livro Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo (1988), negar os horrores de um período como a ditadura e crimes de torturadores a serviço do Estado produz um assassinato da memória das suas vítimas, privando-as mesmo do direito ao luto e o trauma com o passado, além de construir identidades políticas e sociais em torno dessas negações, aglutinando pessoas e discursos que não possuem qualquer pudor em louvar a barbárie.

Poderia citar outros exemplos de passados mal resolvidos que são retomados, via de regra, reforçando problemas atuais – como é o caso do nosso passado escravista e a estrutura social brasileira – mas o ponto principal aqui é dizer que a história, por ela mesma, não se guiará por algum caminho natural para uma condenação quanto às mortes pela covid-19 a Bolsonaro, Pazuello, disseminadores de fake news ou emissoras de televisão e rádio que deram espaço para negacionistas.

Ao contrário, esse julgamento se inicia hoje, e será fruto de disputas feitas por pessoas como nós ocupando ativamente o debate público nos dias, meses e anos que se seguem à barbárie. A história é feita e escrita por pessoas de carne e osso, comuns, dentro de contextos sociais e vivenciando todos os seus percalços e dramas. E são essas pessoas, nos seus embates, disputas e tensões que definem quem será homenageado ou jogado na lata de lixo da memória coletiva.

Essa confiança no inevitável julgamento da história – na concepção metafísica da qual falei brevemente – diz muito a nosso respeito. Ela revela sobre nós tanto um otimismo de que tudo dará certo num futuro incerto, quanto uma sensação de mal estar e impotência em relação a tudo que vivenciamos, no nosso caso a partir de março de 2020, quando as distopias do governo Bolsonaro e a pandemia global se encontraram.

Essas sensações, de otimismo e impotência, são complementares: o otimismo de que um dia os defensores do “tratamento” preventivo para covid-19, por exemplo, serão julgados, seus crimes revelados e marcados nas memórias das próximas gerações gera um certo conforto, talvez necessário diante da exaustão gerada em nós a cada absurdo diário que vemos nos noticiários.

Porém, concluindo, é necessário estar ciente de que esse julgamento não acontecerá. Pelo menos não naturalmente, como um fato incontornável de um suposto progresso contínuo pelo qual passaríamos como humanidade. A história não julga ninguém sozinha. Aliás, ela sequer existe sozinha, independente do que fazemos.

A decisão sobre qual lugar ocupará na memória do país um indivíduo que minimizou e fez piadas sobre a morte de centenas de milhares de pessoas dependerá de como tentamos, da forma como podemos, expor e desconstruir cada mentira e negacionismo, denunciar e combater cada crime, cada irresponsabilidade e cada política pública pensada para qualquer outra finalidade que não o bem-estar de todos.

São e sempre serão essas disputas permanentes em torno de narrativas no debate público, e não um caminho inevitável e natural das coisas, que definirão quem vai ou não para essa tal da lata de lixo da história. Como toda sociedade democrática, o Brasil possui caminhos institucionais para lidar com autoridades criminosas, tornando-as responsáveis pelas atrocidades cometidas contra os cidadãos. Julgar Bolsonaro, esse é um dever para a nossa geração, e não para falsos tribunais do futuro.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O “Entendendo Bolsonaro” do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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Bolsonaro tentará emular Trump, mas Brasil tem suas vacinas http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/10/bolsonaro-tentara-emular-trump-mas-brasil-tem-suas-vacinas/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/10/bolsonaro-tentara-emular-trump-mas-brasil-tem-suas-vacinas/#respond Mon, 11 Jan 2021 01:44:06 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1860

(Crédito: Adriano Machado/Reuters)

Vitor Marchetti

Não é novidade que Bolsonaro compartilha do mesmo método de Donald Trump para vencer eleições e governar. Um dos eixos fundamentais desse método é deslegitimar e lançar toda a sorte de dúvidas sobre as instituições do país. Faz anos que o presidente norte-americano acusa o sistema eleitoral dos Estados Unidos de fraudar os resultados eleitorais. Seu mais ferrenho seguidor dentre as lideranças mundiais age igual por aqui, mesmo tendo sido eleito sete vezes deputado federal e vencido a última eleição presidencial.

É importante, porém, marcarmos algumas diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos antes de afirmarmos que o mesmo que ocorreu por lá ocorrerá por aqui. Ou, pelo menos, cabe avaliarmos as vacinas disponíveis por aqui contra o espírito antidemocrático do presidente.

1) Governança eleitoral: a democracia norte-americana não conta com instituições nacionais consolidadas para organizar e gerir as suas eleições. Este fato passou incólume pelos últimos séculos, mas, desde pelo menos as eleições de 2000, quando Bush foi derrotado em número de votos e a eleição foi decidida pela Suprema Corte em razão dos litígios na contagem de votos na Flórida, o debate cresceu e ganhou bastante espaço entre especialistas e acadêmicos.

Com todos os defeitos que a governança eleitoral brasileira possa ter, uma de suas virtudes é a de garantir uma gestão bastante eficiente das eleições, reduzindo e muito qualquer margem de questionamento sério sobre os resultados eleitorais. O mesmo não pode ser dito sobre os EUA, onde a ausência de coordenação nacional e as idiossincrasias regionais abrem brechas bastante preocupantes para o questionamento dos resultados.

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2) Sistema eleitoral: o sistema de eleição indireta do presidente, por meio de um Colégio Eleitoral, torna o modelo norte-americano único no mundo. Aquele que poderia ser considerado um grande símbolo do seu pacto federativo e de como operam as históricas relações entre os governos regionais e o governo central tem produzido grandes distorções.

Em primeiro lugar, porque abre a possibilidade do presidente ser eleito apesar de receber menos votos (para se ter uma ideia, apenas cinco presidentes foram eleitos nessas condições ao longo de toda a história, três no século XIX, mas dois bastante recentes, 2000 e 2016). Em segundo lugar, o sistema acaba supervalorizando os resultados regionais, uma vez que o vencedor leva todos os delegados no Estado, mas não define nenhum critério nacional comum para a realização dessas eleições. Daí que derivam calendários e métodos distintos e desencontrados, gerando toda forma de se computar o voto que a criatividade humana é capaz de produzir.

No caso brasileiro, além da bem-sucedida experiência da urna eletrônica, temos uma governança eleitoral que garante a padronização do voto em todo o território. Além disso, o sistema majoritário em dois turnos com voto em uma única chapa tem conferido racionalidade e legitimidade ao sistema. Muito maior, inclusive, do que já praticamos por aqui entre 1946 e 1964, quando não havia a obrigatoriedade do voto em chapas (o eleitor poderia votar em um candidato de determinado partido para a presidência e um candidato de partido rival para vice-presidente) e quando era preciso formar apenas maioria relativa dos votos para ser eleito.

3) Suporte no Parlamento: a força do sistema partidário norte-americano possibilitou que Trump constituísse bom suporte no Parlamento. Mesmo nesse momento em que radicalizou sua posição, conseguiu a adesão de mais de uma centena de deputados e uma dezena de senadores. Ademais, pôde se manter no mandato por todo esse tempo contando com uma base sólida no Congresso.

Por aqui, a grande fragmentação do sistema partidário e a baixa organicidade do bolsonarismo oferecem obstáculos importantes para a concentração de poderes no presidente e forçam aberturas de negociação com o Legislativo. Por isso, é tão importante a próxima eleição das presidências das casas. Um presidente da Câmara não alinhado a Bolsonaro pode ser uma barreira institucional decisiva ao espírito autoritário do presidente.

4) Força dos mecanismos nacionais de controle: há anos debatemos as consequências do ativismo exacerbado de nossos órgãos de controle democrático. Do ativismo dos ministros do Supremo Tribunal Federal ao voluntarismo dos procuradores do Ministério Público, as últimas décadas da política brasileira foram marcadas por um deslocamento excessivo das arenas decisórias tradicionais da política para novas arenas, fundamentalmente as judiciais.

Independente do diagnóstico acerca dos efeitos desse fenômeno sobre a qualidade da democracia brasileira, foi por meio desses órgãos e de seus altos graus de autonomia que se constituíram freios ao espírito autoritário e golpista de Bolsonaro, de seus filhos e de seus seguidores. O inquérito das fake news no STF e dos disparos em massa no TSE são bons exemplos disso. Não há qualquer razão para acreditar que estes órgãos possam aderir de modo coeso a uma aventura golpista do bolsonarismo, muito menos que possam ser solapados passivamente por uma frente golpista (ao menos do que podemos ver hoje).

5) Base social: exatamente por causa da atuação desses mecanismos de controle, algumas lideranças autoritárias foram confrontadas até aqui. Há diversos casos de prisões, dissolução de redes de movimentos antidemocráticos e outros que preferiram pelo autoexílio. Claro que Bolsonaro conta com a simpatia e a adesão de parcela significativa dos membros de forças policiais regionais, mas, sozinhas, elas não são capazes de consumar um golpe. Para tanto, seria necessário que as Forças Armadas do país as endossassem, e há boas razões para afirmarmos que não há espaço para uma ruptura democrática aos moldes de 1964.

Certamente, Bolsonaro tentará emular Trump, mas o Brasil dispõe de boas vacinas para combater esse mal. Seja pela medicina tradicional, por meio de regras eleitorais sólidas e uma governança eleitoral consolidada, seja pela medicina experimental (que nem sempre gera bons resultados, mas que pode ser aplicada para quadros atípicos), por meio da hipertrofia e da grande autonomia dos órgãos nacionais de controle, além de um sistema partidário altamente fragmentado que acaba por propiciar fortes medidas contramajoritárias.

Vitor Marchetti é cientista político e professor do Bacharelado e da Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC)


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O “Entendendo Bolsonaro” do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco

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Como 163 deputados tentaram tirar dinheiro da Educação (e perderam) http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/08/como-163-deputados-tentaram-tirar-dinheiro-da-educacao-e-perderam/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/08/como-163-deputados-tentaram-tirar-dinheiro-da-educacao-e-perderam/#respond Fri, 08 Jan 2021 17:12:47 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1851

(Crédito: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)

[RESUMO] Os 163 deputados que, no apagar das luzes de 2020, formaram uma frente ampla para retirar recursos da educação pública; e que foram rechaçados por uma frente ainda maior e ainda mais ampla.

* Fernando Cássio e Fernanda Moura

Ironicamente, o ano que tantas pessoas gostariam de esquecer terminou com uma ótima notícia para a educação brasileira: em pleno 25 de dezembro de 2020, Jair Bolsonaro sancionou a lei que regulamenta o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), principal mecanismo de financiamento da educação básica pública no Brasil, tornado permanente em agosto através da Emenda Constitucional (EC) 108/2020.

A Lei 14.113/2020, originada do PL 4.372/2020, estabelece os cálculos e procedimentos para a distribuição dos recursos do novo Fundeb. Além de novas regras de cálculo para reduzir as desigualdades de financiamento educacional entre as redes públicas, a complementação da União ao Fundeb passará de 10 para 23% nos próximos seis anos, o que significa que as escolas públicas dos estados e municípios mais pobres receberão mais recursos. Além disso, o horizonte remuneratório dos profissionais da educação ficará objetivamente menos sombrio nos próximos anos.

O caminho para a regulamentação do Fundeb, porém, foi bem mais tortuoso do que sugerem as sucintas matérias de imprensa que noticiaram a aprovação da lei, a derrota do bolsonarismo nas tentativas de apropriação privada do fundo e, finalmente, a sanção presidencial sem vetos no dia de Natal. Em meio ao caos que o governo Bolsonaro deliberadamente promove nas políticas públicas, a comemoração das boas notícias tem prevalecido sobre a análise dos processos políticos. No caso do Fundeb, isso significa perder duas preciosas oportunidades: a de identificar quem são, hoje, os inimigos da educação pública no Brasil; e a de aprender com uma experiência verdadeira de frente ampla na defesa de direitos.

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É preciso lembrar, antes de tudo, que Jair Bolsonaro e Paulo Guedes sempre se opuseram à constitucionalização do Fundeb. Foram várias as tentativas de descaracterizá-lo. Primeiro, o governo regateou o aumento da complementação da União ao fundo; e que, para a infelicidade do ministro da Economia, terminou ampliada. Depois, Guedes sugeriu drenar os recursos do Fundeb para um benefício voltado a crianças no programa Renda Brasil, induzindo a privatização da educação pública via distribuição de vouchers.

O ministro, como se sabe, é um grande entusiasta do modelo chileno. O governo também manifestou o interesse de eliminar a vinculação mínima de 70% dos recursos do fundo para o pagamento dos profissionais da educação, mas foi ignorado pela Câmara. Por fim, o Executivo propôs adiar a votação do novo Fundeb para 2021, o que levaria o financiamento da das redes estaduais e municipais ao colapso, pois a vigência do Fundeb regulamentado na Lei 11.494/2007 iria expirar em 31 de dezembro de 2020.

Como tantos outros absurdos, arrancar dinheiro de escolas públicas e vilipendiar profissionais da educação não são coisas que constranjam o governo Bolsonaro e seus apoiadores. Assim, com o Fundeb, eles foram literalmente constrangidos pelo Congresso Nacional, tendo sido duplamente derrotados: primeiro com a EC 108 e depois com a aprovação do PL 4.372 sem as alterações que visavam conspurcar o caráter público do fundo.

As idas e vindas do PL 4.372/2020

Após a aprovação da PEC 15/2015 na Câmara (PEC 26/2020 no Senado e, depois, EC 108), por amplíssima maioria, analisamos neste blog o perfil dos sete parlamentares bolsonaristas que contrariaram a orientação do governo e votaram contra a constitucionalização do Fundeb. Mostramos que não era especificamente o bolsonarismo que unia aquele grupo de parlamentares, mas a sua vinculação com o movimento Escola sem Partido. Como argumentamos, era uma questão de coerência, já que o subfinanciamento educacional sempre foi funcional às agendas do reacionarismo escolar.

Em dezembro, durante a votação do PL de regulamentação do Fundeb, os argumentos privatistas daqueles sete dissidentes foram reproduzidos por um grupo substantivamente maior, incluindo parlamentares como Soraya Santos (PL/RJ), Luísa Canziani (PTB/PR), Eduardo Barbosa (PSDB/SP) e Tiago Mitraud (Novo/MG), que apresentaram emendas para modificar o texto do PL 4.372 e desviar parte dos recursos do Fundeb para instituições privadas.

Fonte: www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1950046&filename=Tramitacao-PL+4372/2020

Apesar de não recomendadas pelo relator, o deputado Felipe Rigoni (PSB/ES), essas emendas foram votadas e aprovadas na Câmara (10 dez. 2020), contrariando acordos internos que previam que as bancadas retirariam as emendas de pauta naquele ponto da votação. A emenda 10, que legalizava repasses do Fundeb para matrículas em instituições privadas nos ensinos fundamental e médio – e aprovada por ampla maioria de votos: 311 a 131 –, foi uma das que mais escancararam a tentativa de apropriação privada do fundo público. Durante a votação das emendas, causou estranheza que o relator da matéria não tenha sido lá muito enérgico na defesa de seu próprio texto e dos acordos que viabilizaram a sua votação no plenário.

Em Nota Técnica publicada alguns dias depois (14 dez. 2020), a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação) estimaram que, se o texto final do PL 4.372 fosse aprovado no Senado com as emendas privatizantes, as escolas públicas brasileiras poderiam perder pelo menos R$ 15,9 bilhões ao ano.

Transferir recursos públicos a instituições privadas em etapas e modalidades da educação básica com sabida suficiência de matrículas públicas afronta o artigo 213 da Constituição Federal, cujo §1º prevê que a “compra” de vagas em instituições privadas só pode ocorrer em caso de insuficiência de oferta na rede pública, “ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade”.

E, como apontou Nalú Farenzena, professora da UFRGS e presidenta da Fineduca, o atual volume de matrículas nos ensinos fundamental e médio em escolas conveniadas no país é ínfimo; portanto, no limite da exceção admitida pela Constituição (insuficiência de vagas públicas). A emenda 10, da deputada Soraya Santos (PL/RJ), estimulava, portanto, a privatização da educação pública, ao fixar 10% como o limite “máximo” para os repasses do Fundeb a instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas.

Assim que chegou ao Senado Federal, o texto modificado (e inconstitucional) do PL 4.372 recebeu uma série de novas emendas, a maioria delas com o intuito de desfazer as alterações propostas pelos deputados. Apenas cinco dias depois da votação na Câmara (15 dez. 2020), diversos senadores afirmaram o caráter público do Fundeb e a necessidade de o Congresso Nacional manter o seu compromisso com as expectativas sociais criadas a partir da promulgação da EC 108. Até senadores sem vínculos manifestos com pautas populares – como Esperidião Amin (PP/SC), Jorge Kajuru (Cidadania/GO) e Rose de Freitas (Podemos/ES) – defenderam que os recursos do Fundeb deveriam ir integralmente para a educação pública estatal. Outros, como o senador José Serra (PSDB/SP), o fizeram no Twitter.

O relator designado para a matéria, o senador Izalci Lucas (PSDB/DF), demorou a entender que o clima pendia para a eliminação das emendas privatizantes, e produziu um relatório preliminar ratificando o desvio de recursos do Fundeb para instituições filantrópicas, confessionais e comunitárias. O relator do PL 4.372 no Senado é vinculado à educação privada, notório defensor da voucherização e proponente, enquanto deputado federal, do primeiro PL “Escola sem Partido” apresentado no Congresso e de um PL pela proibição de debates de gênero nas escolas. Apesar disso, foi convencido por seus pares a apoiar um substitutivo que restituía o texto original de Felipe Rigoni descaracterizado pela Câmara.

O Senado aprovou o texto por unanimidade, em um claro recado aos deputados. O substitutivo do Senado foi à votação no plenário da Câmara dois dias depois (17 dez. 2020), sendo aprovado por 470 a 15. Votaram contra o texto os parlamentares Adriana Ventura (Novo/SP), Alexis Fonteyne (Novo/SP), Bia Kicis (PSL/DF), Eduardo Bolsonaro (PSL/SP), Gilson Marques (Novo/SC), Guilherme Derrite (PP/SP), Junio Amaral (PSL/MG), Kim Kataguiri (DEM/SP), Lucas Gonzalez (Novo/MG), Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL/SP), Marcel van Hattem (Novo/RS), Paulo Ganime (Novo/RJ), Pedro Lupion (DEM/PR), Tiago Mitraud (Novo/MG) e Vinicius Poit (Novo/SP). Desses 15, apenas Bia Kicis, Junio Amaral e Luiz Philippe de Orleans e Bragança também faziam parte do grupo dos sete que, em julho, se opuseram à constitucionalização do Fundeb.

Após a votação do texto principal, deputados do Novo insistiram em votar o destaque que devolvia ao PL 4.372 o conteúdo da emenda 10, estimulando repasses inconstitucionais do Fundeb para matrículas em instituições privadas nos ensinos fundamental e médio. Além da bancada do Novo, orientaram pela aprovação do destaque as bancadas do PSL, PL, Republicanos e Solidariedade. As bancadas do PP, PSD, PTB, PROS, PSC, Avante e Patriota liberaram o voto de seus deputados, enquanto os demais partidos orientaram o voto pela manutenção do texto original.

O destaque acabou rejeitado por 286 a 163. Vitória da escola pública e da mobilização do campo educacional! Apesar de o resultado final ter sido a preservação do caráter público do Fundeb naquilo que se refere à transferência de recursos para instituições de ensino privadas, não deixa de ser chocante que 163 parlamentares tenham tentado, até o último minuto, incluir um mecanismo para retirar quase R$ 16 bilhões por ano das escolas públicas brasileiras.

Violaram acordos internos, deram de ombros para a surpreendente mostra de dignidade do Senado Federal e riram da cara de educadores e ativistas que questionaram as suas posições privatizantes nas redes sociais. No final de dezembro, os aloprados do Fundeb já não se resumiam a sete figuras isoladas e orgulhosas por estarem à direita de Bolsonaro; representavam quase 32% dos deputados da Câmara e deram mostras de que continuarão tentando fustigar os recursos da educação pública em 2021.

Aloprados do Fundeb

A deputada Joice Hasselmann (PSL/SP) estava no grupo dos 163 deputados que tentaram desviar recursos do Fundeb para instituições privadas. Em pronunciamento na tribuna da Câmara durante a última sessão de votação do PL 4.372 (17 dez. 2020), ela reconheceu a falta de clima político para a aprovação do destaque do partido Novo. “O Senado cedeu (…) à pressão dos sindicatos, comprou uma narrativa absolutamente enganosa (…)”. Uma narrativa, segundo ela, ancorada no “preconceito com escolas [filantrópicas e confessionais] que são de altíssima qualidade, porque são ligadas a entidades religiosas”. A deputada prosseguia, em discurso no plenário da Câmara no dia 17 de dezembro:

“São entidades que já oferecem vagas em creches, por exemplo. Os pais, as famílias têm o direito de escolher onde querem que seus filhos estudem. Os pais, as famílias têm o direito de escolher quais são os valores que serão passados para aquela criança. E hoje essas crianças são muito bem atendidas em creches, nessas vagas, mas, quando chega a hora de ir para o primeiro ano, acontece o quê? O desespero dos pais, porque essas escolas não dão conta da demanda”.

A comparação entre o conveniamento para a oferta de vagas em creches e a transferência de recursos para instituições privadas proposta para o PL 4.372 é esdrúxula, pois a Constituição não proíbe o conveniamento em situações de reconhecido déficit de vagas, como ocorre com as creches em tantos municípios do país. Ao contrário do que afirmou a deputada, os dados do Censo Escolar são eloquentes em mostrar que não há falta de vagas públicas para o primeiro ano do ensino fundamental. De todo modo, Hasselmann não estava mesmo se referindo a uma demanda coletiva por educação pública estatal – um direito social –, mas por uma escola privada com determinados “valores” e financiada com recursos públicos.

Refutando os analistas que atribuíram os ataques ao Fundeb ao governo Bolsonaro, Joice Hasselmann enfatizou que a ideia da emenda 10 não viera do Executivo:

“Não foi pedido do governo, não foi ideia do governo. Eu apresentei (…) a primeira emenda (…). Esse texto foi construído em São Paulo, com todos os bispos, cardeais e o arcebispo (…), em uma reunião da qual inclusive o presidente desta Casa, o deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ), participou com representantes das igrejas evangélicas, com representantes das igrejas judaicas, e, em consenso, o texto foi apresentado. Aí sim o governo interveio, porque achou que a minha emenda era ampla demais, e a deputada Soraya [Santos] apresentou outra emenda [a emenda 10] com os 10% (…) do Fundeb que poderiam ir para essas escolas confessionais”, frisou a deputada.

Em seguida, prosseguiu: “Conversei há pouco com Dom Carlos [Lema Garcia] (…) e também com representantes da bancada evangélica na Câmara. (…) Nós apresentaremos um projeto de lei que vai tratar especificamente das escolas confessionais e filantrópicas ligadas a essas entidades religiosas (…). Esse projeto vai ser apresentado por mim. Há pouco, conversei com a deputada Soraya, que também abraçou essa luta, que é uma luta justa e uma luta de liberdade para as famílias, para que elas possam escolher o que acham melhor para seus filhos. Infelizmente, a ideologia atropelou um texto que faria grande diferença para as escolas e para as crianças do nosso país”.

A “ideologia” que atropelou o texto defendido pelas deputadas Joice Hasselmann e Soraya Santos atende pelo nome de Constituição Federal. Dom Carlos Lema Garcia, citado por Hasselmann, é bispo-auxiliar da Arquidiocese de São Paulo/SP e Vigário Episcopal para a Educação e a Universidade. Desde 2010, também ocupa o cargo de Diretor Espiritual da Opus Dei no Brasil. A demanda por recursos públicos em escolas confessionais tem, como se vê, nome, sobrenome, cargo no episcopado e apoiadores no parlamento. A já mencionada deputada Soraya Santos é outra que possui uma leitura bem particular da Constituição Federal:

“É preciso que este plenário resgate a verdade, constante do caput do artigo 213 (…), que nivela a todos – setor público, entidades filantrópicas sem fins lucrativos e entidades privadas sem fins lucrativos –, para reconhecer o trabalho que as escolas maristas, salesianas, de campanhas comunitárias e evangélicas prestaram ao longo dos anos neste país”, destacou.

“Não é verdade que este plenário discutia colocar dinheiro em iniciativa privada! (…) Se inconstitucional fosse”, prosseguiu ela, “não poderíamos estar aprovando o convênio com as mesmas entidades no ensino infantil (…). E, se pode para o ensino infantil (…), obviamente pode para o ensino fundamental. (…) Esta Casa não pode entrar na guerra ideológica. Esta Casa em momento algum parou para discutir o conteúdo que essas crianças estão recebendo. Esta Casa tem que mostrar a convivência harmônica que houve, durante a formação de todo o processo da educação deste país, entre o setor público e o setor de assistência e de educação filantrópicas”.

“Estudei toda a vida em escola pública. Só passei um período como aluna dos salesianos. Terminei a minha formação numa universidade também pública. Eu sou de família de educadores. Sou professora. Defendo a educação. Mas, acima de tudo”, finalizou a deputada, “acho que nós precisamos, diante de toda essa discussão, resgatar a verdade, porque a experiência que eu tive com os salesianos é a experiência que eu gostaria que todos tivessem. (…) Dom Orani [Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro/RJ], Dom Carlos [Lema Garcia], Dom Tarcísio [Scaramussa, salesiano, bispo da diocese de Santos/SP], todos eles se movimentaram para dizer que estavam indignados – indignados! – ao ouvir que parlamentares estavam dizendo (…) que a educação que eles prestam era privada e que eles nem sequer faziam assistência social. Subo (…) a esta tribuna para resgatar a verdade e falar da qualidade do ensino que prestam essas entidades, que sempre conviveram com o setor público”.

O “resgate da verdade”, induziu a deputada, implicava em reconhecer os préstimos das instituições de ensino católicas à educação brasileira injetando-lhes alguns bilhões de reais em recursos públicos. Talvez seja coincidência o fato de Soraya Santos ser casada com o ex-deputado Alexandre Santos, presidente da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC), rede de escolas comunitárias denunciada em 2019 por atraso nos pagamentos a professores.

O debate do Fundeb, segundo a deputada, também deveria passar pelo “conteúdo que essas crianças estão recebendo”. Estaria ela se referindo a conteúdos de Geografia e Matemática, ou falando a partir de suas experiências como estudante de escola católica e de seus interesses familiares com as escolas cenecistas? De toda forma, as discussões sobre políticas curriculares e as idiossincrasias da deputada não guardam relação com a juridicidade e as tecnicalidades da regulamentação do Fundeb.

Falando pela bancada do Novo, Tiago Mitraud comparou o mecanismo inconstitucional de transferência de recursos que propunham para o Fundeb com as transferências de recursos públicos para universidades privadas via Prouni e Fies, dois objetos incomensuráveis. Mitraud também questionou os números divulgados para o potencial desvio do Fundeb que circulavam na imprensa:

“Esses cálculos [do desvio de recursos] são estimativas extremamente exageradas e às vezes até um pouco mal-intencionadas para levar o debate para um campo que não é o da lógica, mas o da narrativa, que, infelizmente, acabou ganhando ao longo desse último tempo. Também não é verdade que os recursos seriam destinados para as igrejas. Seriam destinados, sim, para escolas conveniadas, confessionais e filantrópicas, sejam elas ligadas a igrejas ou não. E se forem ligadas a igrejas, qual é o problema? O que importa é a educação de qualidade para as nossas crianças. Eu mesmo estudei numa escola franciscana e não tive nenhuma doutrinação religiosa nessa escola. Mas alguns especialistas em educação falaram que há essa doutrinação em escolas vinculadas a igrejas. Então, infelizmente, esse preconceito, essa intolerância religiosa, acabou também dominando esse debate”, frisou, em discurso no plenário da Câmara.

O deputado, que também estudou em escola católica (mas salienta: “não tive nenhuma doutrinação”), criticava o “preconceito” dos que defendiam a escola pública e o estrito cumprimento da Constituição Federal, tratados por ele como gestos de “intolerância religiosa”. Ainda bem que Mitraud opera no campo da lógica e não do das “narrativas”.

Com essas e outras falas, ficou claro que os defensores dessas emendas são profundamente ignorantes em relação à legislação educacional e à realidade das escolas públicas expressa nos dados, que contradizem cada uma de suas afirmações. Na verdade, estão se lixando para a escola pública e para os profissionais da educação, tal como Bolsonaro está se lixando para a pandemia. Negacionistas, não se vexam em violar a Constituição para favorecer seus grupos de apoio ou para nutrir as suas próprias crenças.

Críticos da “doutrinação” – das esquerdas, do gênero, das leituras críticas da história do Brasil, dos vacinistas –, os aloprados do Fundeb defendem um financiamento público massivo do ensino confessional para o exercício privado da liberdade religiosa, atuando abertamente contra a laicidade do Estado. É certo que o grupo inclui bolsonaristas e suas versões de sapatênis do Partido Novo, mas ele é bem mais amplo do que isso. Os negacionistas da escola pública que tentaram rapinar o Fundeb compuseram uma frente ampla.

Em “defesa da vida”; contra a renda básica

Apenas cinco parlamentares (3%) do grupo dos 163 se declaram professoras(es) de carreira, versus 39 (7,6%) parlamentares no universo de 513 deputados da Câmara. São elas(es): Adriana Ventura (Novo/SP), Aline Sleutjes (PSL/PR), Giovani Cherini (PL/RS), Maria Rosas (Republicanos/SP) e Professora Dayane Pimentel (PSL/BA) – todas(os) com vínculos um tanto incipientes com a defesa da escola pública.

A deputada Maria Rosas trabalhou em escola pública durante oito anos, mas atuou bem mais tempo do que isso em instituições filantrópicas, cujo trabalho defende com ardor. Ela é autora do PL 5.616/2019, que proíbe a “divulgação de conteúdos que estimulem a sexualidade precoce em materiais didáticos ou produções culturais voltadas para crianças”. Projetos do tipo “infância sem pornografia” que preveem censura a materiais didáticos, são um clássico do reacionarismo escolar.

Defensora das agendas do Escola sem Partido, a Professora Dayane Pimentel adota o “professora” em seu nome parlamentar e se declara “professora universitária” (é licenciada em Letras e especialista em “Ensino Superior”), mas nunca lecionou em faculdades. Professora de Educação Física com atuação em escolas privadas do interior do Paraná, a deputada Aline Sleutjes é outra que prega por escolas sem viés político e sem ideologia de gênero.
A doutora em Administração de Empresas Adriana Ventura é professora de “gestão e empreendedorismo” na Fundação Getulio Vargas de São Paulo.

Juntamente com Aline Sleutjes e Paula Belmonte (Cidadania/DF) – outra deputada do grupo dos 163 – Ventura é coatutora do PL 5.594/2020, que torna a educação atividade essencial em todo o território nacional e, com isso, obriga as escolas a abrirem as portas durante a pandemia. Paradoxalmente, as três deputadas que pretendem forçar a retomada das atividades presenciais nas redes públicas, expondo milhões de estudantes e profissionais da educação a riscos sanitários em escolas precárias, votaram pela emenda que pretendia retirar recursos destas mesmas escolas.

Em 2016, o deputado federal Giovani Cherini criticou o bacharelismo e a desmesurada importância conferida aos diplomas no Brasil. Todavia, o palestrante e coaching de terapias holísticas se apresenta como educador cooperativista e professor universitário. Formado em neurolinguística, Namastê, ontopsicologia e educação emocional, o professor Cherini atua na Cooperativa Universidade de Líderes “Juventude sem Fronteiras”, fundada por ele próprio.

O baixo número de professores na lista dos aloprados do Fundeb é compensado pela grande quantidade de empresários (33), pastores evangélicos (30), membros (ou ex-membros) das forças de segurança (26) e advogados (21), que representam 70% do grupo. Embora a ocupação “empresário” seja também a mais comum entre os 513 deputados federais, a distribuição de ocupações no grupo dos 163 é bem diferente da distribuição de ocupações na Câmara. A proporção de pastores evangélicos e policiais, por exemplo, é muito maior entre os aloprados do Fundeb do que no universo da Câmara.

Figura 1. Ocupação dos aloprados do Fundeb (N=163). Fontes: biografias dos parlamentares disponíveis na rede. *Denominações religiosas dos pastores evangélicos: Assembleia de Deus (12), Igreja Universal do Reino de Deus (11), Evangelho Quadrangular (2), Outras (5). Vinculações dos profissionais das forças de segurança: Corpo de Bombeiros Militares (1), Forças Armadas (reserva) (5), Polícia Civil (4), Polícia Federal (4), Polícia Militar (reserva) (8), Polícia Militar (reformado) (4). A categoria “Outros” inclui arquiteto (1), cantor gospel (1), estudante de Direito (1), gerente de projetos (1), político (1), procuradora (1) e radialista (1).

Além do perfil ocupacional desses 163 parlamentares, investigamos a sua representatividade e como eles estão distribuídos em um conjunto de 59 frentes parlamentares (FP) relacionadas a educação, saúde, cultura, direitos humanos, direitos sociais, livre mercado, empreendedorismo, filantropia, religião, segurança pública, armas e aborto.

Sobrevoando o quadro geral, vemos que o grupo tem muito mais afinidade com agendas reacionárias e ultraliberais (armas, aborto, redução da maioridade penal, ensino militar, homeschooling, livre mercado) do que com agendas de direitos humanos, econômicos, sociais e culturais (antirracismo, democracia, renda básica, crianças e adolescentes, favelas, comunidades quilombolas, educação no campo, incentivo à leitura). O número médio de deputados nas 59 frentes analisadas é 211, ou seja, 41,1% do total da Câmara. A representatividade dos 163 deputados nessas frentes se afasta bastante da média geral.

A partir da composição de cada FP, observamos que os aloprados do Fundeb, que somam 31,7% dos deputados da Câmara, estão hiper-representados em frentes como: Frente Parlamentar Mista (FPM) contra o Aborto e em Defesa da Vida (52,6%), FPM de Enfrentamento à Pedofilia (52,2%), FP em Defesa da Vida e da Família (47,8%), FPM da Redução da Maioridade Penal (47,7%), FP Armamentista (47,1%), FP pelo Livre Mercado (46,8%), FP Evangélica do Congresso Nacional (46,2%) e FP de Apoio ao Ensino Militar no Brasil (46,0%). Ao mesmo tempo, o grupo está subrepresentado em frentes como FPM em Defesa da Renda Básica (11,7%), FPM em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos (11,8%), FPM pelo Fortalecimento do SUS (13,4%) e FPM Brasil-África de Enfrentamento ao Racismo (14,8%).

Diferentemente do que fariam supor os discursos em favor da prestação de serviços públicos “não estatais” na educação, usados para justificar a depleção de recursos do Fundeb em favor de escolas comunitárias, filantrópicas e confessionais, a participação do grupo nas frentes relacionadas a instituições privadas que prestam serviços públicos por conveniamento – FPM em Defesa das Comunidades Terapêuticas e APACs (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados; “Amando o Próximo, Amarás a Cristo”) (35,9%), FP do Comércio, Serviços e Empreendedorismo (35%); FP do Terceiro Setor e Filantropia (32,4%); FPM em Defesa das APAEs, Pestalozzis e Entidades Coirmãs (29,8%); FPM em Defesa das Universidades Comunitárias (29,7%); e FP de Apoio às Santas Casas, Hospitais e Entidades Filantrópicas (27,0%) – é menor do que a sua participação em frentes parlamentares com agendas explicitamente reacionárias e ultraliberais.

Figura 2. Representatividade dos 163 aloprados do Fundeb (%) em 59 frentes parlamentares. A linha vermelha representa a proporção do grupo no total de deputados da Câmara (163/513); a linha verde representa o número médio de deputados nas frentes analisadas em relação ao total de deputados (211/513). FP: Frente Parlamentar; FPM: Frente Parlamentar Mista (inclui deputados e senadores). Fontes: https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frentes.asp; https://www.camara.leg.br/presenca-comissoes/votacao-portal?reuniao=60214&itemVotacao=36588

Ao que tudo indica, na votação do PL 4.372, a bancada cristã atuou conjuntamente na defesa de seus interesses e contra a laicidade do Estado. A participação do grupo dos 163 na FPM Católica Apostólica Romana (31,9%) é compatível com a sua representatividade no universo de deputados da Câmara, e é substantivamente maior na FP Evangélica do Congresso Nacional (46,2%). Ainda que isso sugira uma diferença de adesão à pilhagem do Fundeb entre católicos e evangélicos, é preciso destacar que as duas frentes costumam atuar conjuntamente no Congresso Nacional.

Em 2015, durante o lançamento da FPM Católica Apostólica Romana em evento da CNBB, o criador da frente parlamentar e então deputado federal Givaldo Carimbão (MDB/AL), declarou que as frentes Católica e Evangélica trabalhariam juntas em agendas comuns (p. ex. contra o aborto e contra a eutanásia). De fato, alguns parlamentares participam simultaneamente das duas frentes. Outra prioridade da FMP Católica Apostólica Romana é a defesa das escolas católicas, que dominou os discursos pela rapinagem do Fundeb durante a sessão de votação (17 dez. 2020) e expôs a intensa atuação do lobby católico para abocanhar parte dos recursos do fundo.

Nem Joice Hasselmann e nem Soraya Santos fazem parte da FMP Católica Apostólica Romana. A primeira se declara evangélica batista e a segunda faz parte da FP Evangélica do Congresso Nacional, além de ter relações, como vimos, com o ramo das escolas confessionais. Essa concertação entre católicos e evangélicos para drenar recursos do Fundeb, que não necessariamente encontra correspondência na composição das frentes parlamentares, também serve para mostrar alguns limites das análises de comportamento parlamentar baseadas na composição de frentes no Congresso Nacional.

Algumas frentes parlamentares cujos nomes sugerem adesão a pautas progressistas – e que por vezes contam com participação expressiva dos aloprados do Fundeb – são, na verdade, fundadas e coordenadas por deputados do próprio grupo: p. ex. FPM pela Juventude (Chris Tonietto, PSL/RJ), FPM da Juventude (Julio Cesar Ribeiro, Republicanos/DF), FPM em Defesa dos Direitos Humanos e pela Justiça Social (Roberto de Lucena, Podemos/SP) e FP em Defesa da Liberdade Religiosa e da Cultura de Paz (Carla Zambelli, PSL/SP).

Em novembro de 2020, a deputada Chris Tonietto (PSL/RJ), uma das mais reacionárias do Congresso Nacional e uma das sete que votaram contra a constitucionalização do Fundeb, atuou através da FPM pela Juventude, em articulação com as frentes Católica e Evangélica, pela retirada de pauta no STF da ADI 5.668, ajuizada pelo PSOL para reconhecer o dever constitucional das escolas públicas e particulares de prevenir e coibir o bullying homofóbico, bem como de respeitar a identidade de crianças e adolescentes LGBT no ambiente escolar, dando cumprimento ao artigo 214 da Constituição Federal. Tonietto não participou da votação de 17 de dezembro de 2020 por estar em licença maternidade. Não fosse por isso, ela certamente faria parte da lista de aloprados do Fundeb; assim como Junio Amaral (PSL/MG), que chegou a votar contra o texto do PL 4.372, mas não participou da votação do destaque que ocorreu na sequência.

Olhando agora para a distribuição desses 163 deputados nas 59 frentes parlamentares, observamos que quase 70% fazem parte das FPs da Segurança Pública e em Defesa do Homeschooling, representando, respectivamente, 36,9 e 46,3% do total dessas frentes. Esse dado sugere que, para além da fração mais reacionária que integra as frentes armamentista, em “defesa da vida” e pela redução da maioridade penal, o grupo dos aloprados do Fundeb é mais amplo do que o bolsonarismo orgânico e suas variações farialimers.

O mapa da distribuição dos 163 parlamentares por partido e por orientação da bancada na votação do destaque ao PL 4.372 mostra que os inimigos da escola pública no Brasil são isso e muito mais: fundamentalistas religiosos, privatistas de todos os matizes, brucutus militaristas, arautos do empreendedorismo, inimigos do serviço público, parlamentares com interesses estritamente pessoais ou familiares.

Nesta frente suprapartidária, a defesa dos usuários do SUS (eles são 30,2% da FPM em Defesa dos Usuários do SUS) tem maior relevância do que o fortalecimento do próprio SUS. A defesa abstrata da educação importa mais para os aloprados do Fundeb do que a defesa bem mais concreta do Plano Nacional de Educação (PNE), da Educação no Campo e da escola pública e dos profissionais da educação.

Eles disputam a FPM da Educação e abarrotam a FPM de Enfrentamento à Pedofilia, mas pouco se aproximam das frentes de Enfrentamento à Violência nas Escolas, de Combate ao Trabalho Infantil, de Valorização das Universidades Federais, de Defesa do Serviço Público e de Promoção dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Suas estratégias para o enfrentamento da violência nas escolas, armamentistas que são, vão na direção da militarização escolar e à desescolarização massiva via homeschooling. Estão, ao mesmo tempo, em “defesa da vida” e contra a renda básica.

Figura 3. Distribuição dos aloprados do Fundeb (%) nas 59 frentes parlamentares, por partido. As famílias de cores identificam partidos que liberaram a bancada (azul) e que orientaram voto favorável (laranja) ou contrário (verde) ao destaque no PL 4.372/2020. FP: Frente Parlamentar; FPM: Frente Parlamentar Mista (inclui deputados e senadores). Fontes: https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frentes.asp; https://www.camara.leg.br/presenca-comissoes/votacao-portal?reuniao=60214&itemVotacao=36588

A lição da frente ampla

Apesar de a orientação das bancadas ter pesado no voto contra a escola pública (note o tamanho da porção laranja no gráfico da Figura 3), o volume de votos favoráveis ao destaque privatizante ao PL 4.372 também foi alto na soma dos partidos que liberaram bancadas e que orientaram voto contrário. Esses deputados, como se vê no mapa de distribuição nas frentes parlamentares, se aproximam das agendas reacionárias e ultraliberais do bolsonarismo e seus apaniguados, o que corrobora diversas análises já feitas sobre as afinidades ideológicas no Congresso Nacional.

Entre os que tentaram drenar os recursos da escola pública, há três deputados do PSB, um do PDT e uma do Cidadania, legendas autodeclaradas de centro-esquerda e que orientaram voto contrário ao destaque. Os quatro deputados do PSB e do PDT são pastores evangélicos: Jefferson Campos (PSB/SP), Liziane Bayer (PSB/RS), Rodrigo Coelho (PSB/SC) e Alex Santana (PDT/BA). Paula Belmonte (Cidadania/DF) é casada com o advogado Luís Felipe Belmonte, primeiro suplente do senador Izalci Lucas e principal operador político do Aliança pelo Brasil, partido de Jair Bolsonaro.

Nenhum deputado de Rede, PCdoB, PSOL e PT votou a favor do destaque, assim como nenhum deputado do Novo e a maioria esmagadora do PSL votaram contra. Mas como nenhuma bancada consegue, sozinha ou mesmo acompanhada dos aliados mais próximos, obter a maioria dos votos da Câmara, a vitória da escola pública no destaque ao PL de regulamentação do Fundeb se deveu a duas coisas: (1) a formação de uma ampla frente de partidos; e (2) taxas mais altas de abstenção e infidelidade partidária na base do governo do que entre os que defenderam o caráter público do Fundeb.

Figura 4. Contagem de votos ao destaque do PL 4.372/2020, por partido (17 dez. 2020). A totalização (N=512) inclui parlamentares não votantes, mas exclui o voto do presidente Rodrigo Maia, também contabilizado no painel. Elaboração própria. Fonte: https://www.camara.leg.br/presenca-comissoes/votacao-portal?reuniao=60214&itemVotacao=36588

A aprovação das quatro emendas privatizantes na primeira passagem do PL 4.372 pela Câmara (10 dez. 2020) representou uma derrota para o campo educacional comprometido com a defesa da escola pública. Em resposta, a pressão da sociedade civil sobre os deputados e senadores aumentou significativamente na semana de 14 de dezembro, e foi decisiva para viabilizar a formação de uma frente (ainda mais) ampla de afirmação do caráter público do Fundeb. Isso já tinha sido realizado entre julho e agosto, quando o texto da PEC 15, relatado na Câmara pela deputada Professora Dorinha (DEM/TO), alcançou um elevado nível de legitimidade nas duas casas legislativas e selou a constitucionalização do Fundeb.

Na votação do PL 4.372, a emenda aprovada na Câmara por 311 a 131 (10 dez. 2020) foi derrotada apenas sete dias depois, na mesma casa, por 286 a 163, com votos de deputados de todos os partidos de direita (à exceção do Novo). A esmagadora maioria dos votos de PP, PSD, Podemos, PSDB e MDB foram a favor da escola pública. Nesse interregno, com uma saraivada de discursos encomiásticos e mesuras desproporcionais, o Senado Federal conseguiu convencer o reacionário senador Izalci Lucas, privatista empedernido, a manifestar um inédito gesto de grandeza para com a educação pública brasileira.

Confirmada a vitória na Câmara, diversas organizações reivindicaram protagonismo pelos movimentos de pressão no parlamento e pelo sofisticado trabalho de articulação política que produziu uma frente mais ampla e numerosa que a dos aloprados do Fundeb. É bom que se diga que a consolidação de uma frente ampla no Legislativo e na sociedade civil em defesa do caráter público do Fundeb levou à derrota os inimigos da escola pública, mas não fez desaparecer os papéis desempenhados pelos diferentes atores sociais ao longo dos cinco anos de tramitação do Fundeb no Congresso Nacional. Aliás, é assim que funcionam as frentes amplas: as pessoas se sentam juntas, negociam termos e põem algumas diferenças de lado em benefício de uma causa comum; as diferenças, contudo, não se apagam após as comemorações.

Diferentemente de quando o Congresso promulgou a EC 108, Bolsonaro não tentou capitalizar politicamente com a regulamentação do Fundeb. Aprovado o PL 4.372, o Palácio do Planalto se limitou a informar que a “sanção […] representa um importante avanço da legislação no sentido de tentar assegurar de modo perene o repasse de recursos para os fins atinentes ao desenvolvimento da educação básica e da valorização dos profissionais que a operacionalizam”.

O tom protocolar da nota tem lá sua razão de ser. A regulamentação do Fundeb não se encerrou na Lei 14.113. Em 2021, ainda devem ser regulamentados por meio de leis complementares o CAQ (Custo Aluno-Qualidade), o Sinaeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) e o SNE (Sistema Nacional de Educação). E, a julgar pelos movimentos desses 163 parlamentares, novas tentativas de minar o Fundeb e a educação pública brasileira ainda estão por vir. Não podemos nos dar o luxo de ser ingênuos, mas a derrota dos aloprados do Fundeb no final de 2020 mostra que é possível vencer o reacionarismo e o retrocesso social.

Fernando Cássio é doutor em Ciências e professor da UFABC. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

* Fernanda Moura é mestra em Ensino de História pela UFRJ. Integra o coletivo Professores Contra o Escola Sem Partido e o Observatório da Laicidade na Educação


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O “Entendendo Bolsonaro” do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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200 mil mortos: o fim da margem de manobra da pandemia brasileira http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/07/200-mil-mortos-o-fim-da-margem-de-manobra-da-pandemia-brasileira/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/07/200-mil-mortos-o-fim-da-margem-de-manobra-da-pandemia-brasileira/#respond Thu, 07 Jan 2021 22:57:06 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1846

Luto interminável: o Brasil enterra 200 mil vítimas pela covid-19. (Crédito: Getty Images/A.Coelho)

[RESUMO] Para o neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste, o Brasil transita, hoje, no limiar de um desastre sem precedentes, restando como única saída a decretação de um lockdown nacional para conter a disseminação da covid-19.

* Miguel Nicolelis

No momento em que o Brasil atinge oficialmente a trágica marca de 200 mil mortos em decorrência da covid-19 – a maior perda de vidas brasileiras associada a um único evento em toda a nossa história – avizinha-se no horizonte uma crise ainda mais grave do que aquela vivida na primeira onda da pandemia em 2020.

Como enumero abaixo, neste momento vários fatores de risco estão convergindo rapidamente para gerar, em questão de semanas, uma “tempestade perfeita” que pode atingir em cheio o país caso as autoridades sanitárias não se organizem, em nível nacional, para tentar evitar ou ao menos reduzir o impacto deste segundo tsunami que promete varrer todo o território brasileiro.

Como ocorreu na pandemia de influenza em 1918, esta segunda onda da pandemia de covid-19 tem gerado recordes diários de novos casos e óbitos em nível mundial. No Brasil, desde as primeiras semanas de novembro de 2020 tem-se notado um crescimento rápido no número de novos casos da doença, muito provavelmente em decorrência de uma campanha eleitoral e de dois turnos de votações que jamais deveriam ter ocorrido durante uma pandemia fora de controle.

Todavia, este aumento é bem diferente do ocorrido nos primeiros meses de 2020 e, caso este crescimento de pessoas infectadas continue a se acelerar, o Brasil corre um enorme risco de sofrer não apenas um colapso sanitário e hospitalar no primeiro trimestre de 2021, mas também de mergulhar numa grave crise social, econômica e política em decorrência da inação de seus governantes.

Mas quais são os fatores que estão nos tragando para este redemoinho? Em primeiro lugar, diferentemente do ocorrido nos primeiros meses do ano passado, hoje todas as cinco regiões brasileiras apresentam uma aceleração dos casos de covid-19 ao mesmo tempo. Este crescimento síncrono envolve o aparecimento de grandes surtos nas capitais, em suas regiões metropolitanas e nas cidades do interior. Pior, em algumas capitais de estado (por exemplo, Aracaju), as curvas de novos casos estão crescendo numa velocidade ainda maior do que a que foi observada nos meses de março e abril de 2020.

Em decorrência desta total sincronia da pandemia em vários estados espalhados por todo o país, como Amazonas, Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, as taxas de ocupação de leitos de UTI também começam a cruzar o patamar crítico de 80%. Estas altíssimas taxas de ocupação foram atingidas mesmo antes de serem computadas as dezenas de milhares de casos graves que certamente ocorrerão nas próximas semanas em decorrência das inúmeras aglomerações e festas realizadas durante o final de ano.

Soma-se a este crescimento disseminado de casos o fato de o espaço aéreo brasileiro ter permanecido aberto durante os últimos meses, mesmo depois da identificação, realizada por cientistas do Reino Unido, de uma nova cepa do SARS-Cov-2, cuja taxa de transmissão é quase 70% maior do que a das cepas que circularam pelo Brasil no ano de 2020. Desta forma, o país certamente recebeu uma nova carga de pessoas infectadas com esta nova cepa durante as festas de final de ano. Detectada em São Paulo, ela já deve estar circulando por todo o território nacional neste exato momento.

A estes dois fatores devemos ainda acrescentar três outras variáveis ainda mais críticas. Como o sistema de saúde pública do país, já depauperado pelos cortes orçamentários dos últimos anos, foi fortemente abalado pelas consequências da primeira onda de internações hospitalares que acometeu o país durante 2020, batendo todos os recordes históricos, uma segunda onda explosiva de casos graves de covid-19 pode levar a um colapso não mais regional, mas nacional, de todo o sistema de saúde brasileiro.

Durante 2021, assolado por uma enorme perda de profissionais de saúde, redução dos estoques de medicamentos básicos e um desgaste sem precedentes de toda a sua força de trabalho, o SUS ainda vai ter que lidar com uma demanda crescente e gigantesca de pacientes acometidos por sequelas graves da covid-19 (como insuficiência respiratória e renal, e distúrbios neurológicos), bem como de todos os outros pacientes portadores de doenças crônicas que não puderam ter acesso a serviços hospitalares ao longo de 2020.

A esta demanda reprimida deve-se somar ainda toda a necessidade natural e rotineira de leitos de enfermaria e UTI num país recordista de acidentes de trânsito, doenças cardiovasculares e neurológicas e toda sorte de enfermidades.

Todos estes fatores fizeram com que pessoas que outrora conseguiam pagar planos de seguro-saúde privado, hoje, devido aos aumentos extorsivos impostos pelas operadoras brasileiras e à queda de renda gerada pela crise econômica, só tenham o SUS como alternativa de auxílio médico. Finalmente, a total ausência de um cronograma e de um plano operacional para vacinação em massa no Brasil, a cada dia que passa, atrasa o fim da pandemia e contribui decisivamente para o agravamento da crise sanitária do país.

Em face deste quadro potencialmente cataclísmico, toda a margem para omissões, adiamentos, postergações e negacionismo da verdadeira face da crise brasileira foi consumida e eliminada. O país hoje transita no limiar de um desastre sem precedentes e que pode levar décadas para ser revertido.

Tendo acompanhado o desenvolvimento desta crise por quase um ano, não vejo outra saída a não ser a decretação de um lockdown nacional, acompanhado do fechamento do espaço aéreo brasileiro e da instituição de barreiras sanitárias em todas as principais rodovias e aeroportos brasileiros, culminando com a imediata aprovação de todas as vacinas contra o SARS-CoV-2 que tenham sido aprovadas por organismos reguladores internacionais de reconhecida competência, depois de terem demonstrado eficácia e segurança garantida na fase 3 de estudos clínicos.

Além disso, dada a relutância, a inoperância e o atraso inexplicável do governo federal em produzir um plano nacional de imunização e um cronograma emergencial para o país, seria essencial a criação de uma Comissão Nacional de Vacinação Independente, que, respaldada consensualmente por todos os 27 governadores do país, se encarregaria de produzir, em caráter emergencial, uma estratégia de aquisição de vacinas e insumos e um plano operacional de vacinação, de forma a garantir que todo brasileiro tenha acesso gratuito a uma vacina eficaz e segura.

Em suma, o Brasil precisa criar imediatamente um estado-maior de manejo de crise que tenha competência científica reconhecida, disposição técnica e liderança política à altura para enfrentar o embate decisivo de uma verdadeira guerra que o país enfrenta, há quase um ano, de forma totalmente caótica.

Até o presente momento, a verdade nua e crua é que o Brasil ainda não se engajou de maneira apropriada, e na escala e seriedade requeridas, para sair vitorioso desta que é a maior batalha da humanidade do século XXI. Caso isso não ocorra, o número de brasileiros mortos em 2021 e em anos futuros será muito maior do que as 200 mil vidas ceifadas até a presente data. Além disso, a crise social e econômica sem precedentes que será instalada no país pode perdurar por muitos anos ou, muito pior, se transformar num evento irreversível.

* Miguel Nicolelis é professor de Neurobiologia e Engenharia Biomédica da Duke University e coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste


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Fim trágico da Era Trump expõe novo lugar da direita no imaginário popular http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/07/fim-tragico-da-era-trump-expoe-novo-lugar-da-direita-no-imaginario-popular/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/07/fim-tragico-da-era-trump-expoe-novo-lugar-da-direita-no-imaginario-popular/#respond Thu, 07 Jan 2021 20:39:12 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1825

Na janela dos representantes do povo, uma insurreição jamais vista. De grande defensora da democracia representativa a seu maior algoz, a direita ganha nova cara. (Crédito: Olivier Douliery/AFP)

Rafael Burgos

Que ano, meus amigos, em que a direita é revolucionária e a esquerda é reacionária”. Como registrado por Fábio Zanini, na Folha, foi assim que reagiu Italo Lorenzon, famoso youtuber bolsonarista, às cenas da invasão ao Congresso americano perpetrada por apoiadores de Donald Trump na última quarta (6).

A frase é sintomática de uma nova era, muito bem compreendida pela extrema direita global e bem menos pela esquerda, que, apaixonada pela própria imagem, tem ficado para trás na busca por mobilizar afetos e conquistar uma maioria de eleitores em países como o Brasil, ou mesmo nos Estados Unidos, já que, não fosse a pandemia, o que hoje se insiste em compreender como um repúdio aos quatro anos de Trump estaria dando lugar a análises de teor oposto, diante do segundo mandato que se desenhava antes da peste.

Se os últimos eventos têm algo a nos ensinar é de que, na disputa política, mais importante do que debater a verdade objetiva dos fatos é reconhecer as percepções que predominam na sociedade, assim como os imaginários compartilhados e, por sua vez, assimilados em identidades.

Quero dizer, com isso, que não seremos capazes de compreender o que move o trumpismo — ou o bolsonarismo — por meio de um fact-checking da fala de Lorenzon. Realidade à parte, o fato é que a extrema direita incorpora, hoje, um ethos de revolução, enquanto a esquerda patina para compreender que, na clivagem político-ideológica que vem se desenhando, ela tornou-se o campo conservador do debate.

Desde que passamos a nos situar politicamente por meio desta divisão esquerda-direita — há dois séculos e meio — , grosso modo, as disputas de poder nas sociedades ocidentais estiveram divididas entre a promessa de transformações (sociais, econômicas, culturais) no corpo social e o medo de mudanças bruscas, aliado ao apego por aquilo que, concretamente, é considerado um patrimônio conquistado. Na crise do século XXI, ou na “Era do Imprevisto”, como definida pelo sociólogo Sérgio Abranches, a extrema direita inova ao subverter estes referenciais de ordem e transformação, respectivamente atribuídos à direita e à esquerda.

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Se, no fim da década de 60, ser “contra o establishment” significava incorporar os valores da contracultura na defesa de liberdades individuais e da justiça social, hoje, mais de 50 anos depois, o sistema é visto como lugar comum às representações políticas tradicionais, um espaço há muito assimilado pela esquerda pretensamente revolucionária de ontem.

Em 2021 — e certamente não precisaríamos da pandemia para dizer isso — , o futuro soa sempre como um lugar distante e temido. Como disse o sociólogo Zygmunt Bauman, se antes os sonhos coletivos eram formados “à medida da escassez”, agora, as nossas utopias — ou retrotopias — são construídas “à medida da superabundância”. Em outras palavras, quando sobrava segurança, anseávamos por liberdade; hoje, quando parece sobrar liberdade, voltamos a clamar por segurança. A revolução de nossa época é interromper o curso da História.

Trazendo este debate para o Brasil, otimistas são os que acusam Jair Bolsonaro de pretender desfazer a Constituição de 88 e retornar à época da ditadura civil-militar do último século. O imaginário que permeia o bolsonarismo, e o movimento de extrema direita global do qual ele faz parte, não está em desarranjo com as conquistas das últimas décadas; ele está em desarranjo com os rumos da História desde, pelo menos, o Iluminismo. Na narrativa bolso-olavista, o retrovisor não ilumina décadas de infortúnio, mas séculos; não se trata de pôr um fim às amarras da Nova República, mas de eliminar a separação entre Igreja e Estado.

Essas são algumas das balizas do novo imaginário popular sustentado pela direita no atual momento histórico. Ainda mais melancólico, contudo, é concluir que este é o único imaginário em disputa na arena política institucional. De nada adianta, portanto, apontar as mentiras e conspirações sobre as quais estão construídas as narrativas do trumpismo e do bolsonarismo, sem, antes disso, batalhar pelos espaços simbólicos e de representação de mundo que eles carregam.

Se “é este o século“, parafraseando o jornalista Diego Viana, aproxima-se o derradeiro momento, para a esquerda, de superar a própria imagem. Se, por natureza, ela será incapaz de se reconhecer como o novo campo conservador do debate público, a sua sobrevivência política no atual arranjo dependerá da capacidade de resistir à inversão de papéis pretendida pela extrema direita, forçando uma disputa entre dois imaginários anti-establishment, para usar a palavra da moda.

O trágico fim da Era Trump, simbolizado na invasão ao Congresso americano, é sintomático deste novo papel assumido pela direita com altivez — ainda que sem qualquer escrúpulo. Temos ali o genuíno palco da insurreição, a fonte de esperança por destruição num mundo sem utopias.

Vencer disputas circunstanciais no varejo não significará, sob nenhuma medida, desmobilizar esta força. O dilema político ainda não resolvido neste começo de década não é sobre projetos, ele é existencial. Que a imagem do Capitólio sirva de lição ao mostrar a dimensão deste espantalho conservador que se continua a pintar. O jogo mudou e, agora, como bem disse Lorenzon, “a direita é punk”.

Rafael Burgos é jornalista e editor do blog Entendendo Bolsonaro. Autor do TCC “Donald Trump: a redenção pelo regresso”


Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O “Entendendo Bolsonaro” do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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EUA ensinam que impeachment sai mais barato que engolir fascismo http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/07/eua-ensinam-que-impeachment-sai-mais-barato-que-engolir-fascismo/ http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2021/01/07/eua-ensinam-que-impeachment-sai-mais-barato-que-engolir-fascismo/#respond Thu, 07 Jan 2021 15:46:38 +0000 http://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/?p=1821

(Crédito: Bill O’Leary/Washington Post)

Vinícius Rodrigues Vieira

A tentativa de golpe durante a sessão do Congresso americano que oficializou Joe Biden e Kamala Harris como presidente-eleito e vice-presidente-eleita dos Estados Unidos ensina que populistas do naipe de Donald Trump devem ser defenestrados do poder assim que houver uma oportunidade balizada pela Constituição. Os lamentáveis eventos que ocorreram em Washington na última quarta-feira (6) devem fortalecer entre as forças democráticas brasileiras a impressão de que sairá caro para nossa República manter Jair Bolsonaro no poder até 2022, com chance de reeleição.

Não se prega aqui, obviamente, um golpe contra o presidente, mas sim a aplicação do direito pátrio, que bem esclarece os crimes de responsabilidade pelos quais o chefe de Estado pode responder. A gestão da pandemia pelo governo federal é um acinte contra o povo e nossa existência como nação. Estamos à beira dos 200 mil mortos pela covid enquanto Bolsonaro retorna de 17 dias de férias, cometendo reiteradas barbaridades como solapar qualquer tentativa de vacinar a população contra o coronavírus.

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Um impeachment, seguindo os ritos constitucionais, seria um favor que os congressistas fariam ao país e a Bolsonaro, que reconheceu ser incapaz de ser presidente ao afirmar que o Brasil quebrou e nada pode fazer para consertá-lo. Parafraseando o ex-senador Romero Jucá (PMDB-RR), quando do controverso impedimento de Dilma Rousseff (PT), a remoção por vias legais de Bolsonaro do Planalto depende de um grande acordo nacional, não apenas com o apoio do Supremo (ou seja, setores do Judiciário), demandando ainda o beneplácito das Forças Armadas. Ilusão não reconhecer que desde 2018, quando Lula foi impedido de ser candidato por um STF com a faca no pescoço, e houve movimentações golpistas após a facada desferida contra Bolsonaro, somos, de fato, uma democracia tutelada por militares.

O prolongamento da pandemia — efeito direto do negacionismo bolsonarista — enquadra-se perfeitamente em atos que configuram crimes de responsabilidade. Conforme definição do artigo 4 da lei que regula o impedimento de ocupantes de cargos públicos, atentar contra “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais” é justificativa para impichar o presidente.

Com a pandemia, nossas possibilidades de protestar e comparecer, em novembro último, aos locais de votação foram limitadas, enquanto as consequências socioeconômicas da crise ameaçam a estabilidade doméstica. Bolsonaro não trouxe, claro, o coronavírus ao país, mas, ao tratar a pandemia como algo meramente potencializado por uma “mídia sem caráter”, limitando a compra de insumos necessários para combatê-la, o presidente claramente atua contra nossos direitos. Tratam-se, portanto, de atos por meio dos quais Bolsonaro serve-se “… das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder” (Artigo 6º), notadamente o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

Em política externa, o alinhamento automático a Trump enquadra-se como crime de responsabilidade contra a existência política da União, pois configura um ajuste que compromete a dignidade da Nação (Artigo 5º), sem lhe trazer qualquer benefício. Ademais, o alinhamento a outros governos conservadores somado à animosidade contra parceiros comerciais relevantes, notadamente a Argentina, a China e a União Europeia, tem tornado o país um pária, o que compromete seu status perante a comunidade internacional.

O crime de responsabilidade mais evidente até agora, porém, é o de “… proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (Artigo 7º). Podemos tolerar um presidente que faz questão de ser fotografado ao lado de milicianos e suspeitos de crimes? Ou que ainda oferece seu consentimento a um gabinete do ódio instalado em plena sede do Poder Executivo?

O custo de um impeachment, ainda que em meio a uma pandemia, será menor que aquele que pagaremos caso sigamos nesta toada até 1º de janeiro de 2023. Com Bolsonaro finalizando seu mandato, aguardemos em Brasília cenas explícitas de emulação do que se passou no Capitólio, estimuladas por um presidente que fala em fraude eleitoral sem apresentar provas. Isso tudo com um agravante inexistente nos Estados Unidos: temos a tradição de recorrermos às Forças Armadas em momentos de crise política aguda.

Tal cenário, sim, escancararia as portas a um golpe militar para além da tutela que vivemos. Vamos seguir inertes e pagar para ver? Pense na democracia como um circo. Se a lona queimar na base, a fumaça atinge o público antes de chegar ao picadeiro e acabar com o palhaço. Ele é sempre o último a desaparecer. Antes, porém, deixa a terra arrasada, para que disputemos os restos do poder político a paus, pedras e quaisquer outros instrumentos que expressem o que de pior o fascismo desperta em nós.

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


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