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Entendendo Bolsonaro

Anti-imigrante, bolsonarismo promete ordem contra inimigo externo

Entendendo Bolsonaro

12/08/2019 22h41

(Crédito: Marcos Corrêa/PR)

* Vinícius Rodrigues Vieira

Num mundo em que as incertezas e, portanto, os riscos aumentam, espera-se que eleitores – não apenas os mais conservadores – pressionem governantes para tomar medidas duras para proteger a nação de eventuais inimigos, garantindo, assim, a ordem nacional. Trata-se de uma lógica que lembra a era da segurança nacional, termo que justificava em grande parte a existência da ditadura militar.

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Para enfrentar a suposta ameaça comunista, um regime arbitrário era necessário nos trópicos – justificativa que, aliás, também esteve por trás do Estado Novo do adorado por muitos à esquerda, Getúlio Vargas, em 1937. No mundo industrializado, aliás, dizia-se durante a Guerra Fria que "o preço da liberdade é a eterna vigilância" – frase que teria sido cunhada mais de um século antes por Thomas Jefferson, um dos pais da independência americana.

Porém, ecoando o herói reacionário Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, seja nos países desenvolvidos, seja no mundo em desenvolvimento, o inimigo agora é outro: ele é estrangeiro, eventualmente encarnado na figura do traficante de substâncias ilícitas, ativista político ou até mesmo jornalista.

Imigrantes não são bem-vindos, como aliás sugeriu ontem o presidente Jair Bolsonaro, ao argumentar que o Rio Grande do Sul pode virar uma nova Roraima (Estado que recebeu grande contingente de venezuelanos que escapam do autoritarismo de Nicolás Maduro) e vir a receber um grande contingente de argentinos caso seu colega Maurício Macri perca a reeleição para a centro-esquerda peronista – derrota que, após o resultado das primárias, parece encaminhada.

Esse é o contexto da Portaria 666, publicada em 25 de julho pelo Ministério da Justiça, que prevê a expulsão sumária de "pessoa perigosa para a segurança do Brasil". Assinada pelo ministro e ex-juiz Sérgio Moro, a portaria, que é considerada inconstitucional por muitos juristas, apoiada por juízes evangélicos, e condenada pela ONU, chamou a atenção não apenas por seu número sugestivo – que ecoa a besta do Apocalipse – mas por ser publicada num momento em que, para muitos bolsonaristas, o inimigo número um do país tem nome e sobrenome "estrangeiros": Glenn Greenwald.

Ele é um dos fundadores do site The Intercept Brasil e lidera a divulgação de conversas de integrantes da força-tarefa da Operação Lava-Jato. Americano e com posições claramente à esquerda, Greenwald – assim como outras pessoas com seu perfil – torna-se um alvo fácil para parcela da opinião pública que abraça cada vez mais um pretenso nacionalismo, não apenas no Brasil, mas também em outras sociedades democráticas.

Compreensível, porém, a preocupação com segurança num mundo em que Estados claramente não detêm o monopólio internacional da força – um princípio clássico da manutenção da ordem internacional. Nesse cenário, alguém perguntaria, por exemplo: como lidar com um traficante estrangeiro, flagrado cometendo ilícitos em território brasileiro?

Cabe às autoridades prendê-lo, julgá-lo e, se for o caso, expulsá-lo e/ou extraditá-lo após o devido processo legal. Enquanto essa pessoa aguarda julgamento, deve-se impedir que ela se comunique com eventuais comparsas. Expulsão sumária é, nesse caso, o reconhecimento do Estado de sua incapacidade de manter um preso isolado de modo a não cometer mais crimes após a prisão. Estado que, aliás, os ditos nacionalistas acreditam ser forte.

Mas há legitimidade estatal e, portanto, soberania de fato quando, no lugar da lei, temos a mão bruta cujo peso não emana da Constituição, mas do governante de turno?

O presidente Jair Bolsonaro – chefe do Executivo e, portanto, sem poder para julgar ou interferir diretamente em decisões judiciais salvo na concessão de indulto presidencial – usou a lógica da "mão bruta" ao sugerir que Greenwald talvez pegue uma "cana" no Brasil, numa referência à prisão dos hackers que, baseados em Araraquara, invadiram os celulares de aproximadamente 1.000 autoridades.

No meu entender, ele [Glenn] cometeu um crime. Em qualquer outro país, ele estaria já em uma outra situação. Espere que a Polícia Federal chegue realmente, ligue os pontos todos.

Jair Bolsonaro

De fato, um jornalista como Greenwald não está imune à lei mesmo em países que são democráticos. Jornalistas podem pegar "cana" caso tenham ido além de seu papel profissional – ou seja, de mero divulgador de informações de interesse público. No caso Vaza Jato, esse papel terá sido excedido, caso, por exemplo, provem que a ação de hackers – não necessariamente os que foram presos – tenha sido encomendada pelo jornalista para a obtenção das conversas divulgadas. Até agora, isso não passa de ilação, e a fala de Bolsonaro, uma tentativa de impor medo a um opositor de seu governo.

No Brasil, causa estranheza a ojeriza cada vez mais explícita a imigrantes, não porque – ecoando o senso comum -somos um povo diverso e miscigenado, mas pela baixa proporção de estrangeiros na nossa população. Segundo dados do IBGE, seriam menos de 0,4%, índice baixo o suficiente para descartamos a hipótese de que manifestações xenófobas decorreriam de uma eventual competição entre nativos e imigrantes por escassos postos no mercado de trabalho. O problema, porém, está no fato de acreditarmos que temos 75 vezes a quantidade absoluta de estrangeiros que temos de fato – cerca de 1 milhão.

Ademais, o conservador brasileiro médio muito provavelmente defende um nacionalismo de asterisco – ou seja, com uma nota de rodapé para acomodar salientes contradições. Dado que Bolsonaro angariou ampla maioria entre os estratos mais ricos dos estados do Sul e Sudeste, arrisco-me a dizer que boa parte de seus eleitores são descendentes de migrantes que chegaram há, no máximo, 100 anos nestas terras. Migrantes como minha avó Isaura, que era portuguesa.

Tendo desembarcado aos cinco anos ao Brasil, em 1940, tempos depois, na década de 1970, já durante a ditadura militar, ela recebeu uma intimação no interior do Paraná – onde morava com o marido e os quatro filhos (sendo um com pouco mais de um ano) – por estar irregular no país. Teve de viajar por 600 km até Santos, onde fica o porto em que desembarcara com o pai, a mãe e dois irmãos.

Certa vez, vovó contou-me ter dito aos policiais que não poderia ser deportada porque precisava criar os filhos. E se, por acaso, essa justificativa não tivesse sido aceita? Poderia ela ser considerada uma criminosa por estar irregular, embora, conforme descobri em 2016, seu nome conste numa das listas de desembarque no país hoje sob custódia do Museu do Imigrante, em São Paulo?

Um conservador – como ironicamente vovó era – diria: "quem não deve, não teme". Assim, minha vó jamais teria sido deportada segundo essa lógica. Mas quem define o quanto uma pessoa "deve" às autoridades ou não? Simples: a lei e o devido processo legal. Das leis, a Constituição – talvez caiba lembrar nesta conjuntura – é a mais importante. Portanto, qualquer legislação inferior ou a opinião do guarda da esquina não podem se sobrepor à Carta Magna. Simples assim.

Antes de apoiar a Portaria 666, eleitores bolsonaristas deveriam, portanto, pensar não apenas em seus ancestrais estrangeiros, mas também na essência da vertente política que eles dizem defender: o conservadorismo, o qual implica ceticismo acerca da bondade humana, fazendo-se, assim, necessário manter a ordem.

Sem lei, frases de efeito como "quem deve, não teme" são – como o próprio nome já diz – apenas frases de efeito, cujo significado depende do humor da autoridade de plantão. Um Estado forte e soberano concretiza-se com a aplicação da lei, sem poderes paralelos, como as milícias.

A lei, por sua vez, só tem legitimidade se referendada democraticamente e, posteriormente, demonstra-se eficaz em seus objetivos. Neutralizar criminosos – sejam eles brasileiros ou não – depende mais de inteligência policial e do devido processo legal que de portarias emitidas em circunstâncias duvidosas. Sem lei, não há ordem: resta apenas o medo, sejamos brasileiros ou não.

* Vinícius Rodrigues Vieira é professor visitante do Departamento de Relações Internacionais da USP.

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