Amazônia: alinhamento aos EUA compromete política ambiental e soberania
* Vinícius Rodrigues Vieira
O presidente Jair Bolsonaro conseguiu aquilo que sequer políticos populares em suas pátrias obtêm em escala mundial: conquistou unanimidade ao unir vozes dissonantes na condenação ou pelo menos demonstração de preocupação com a política ambiental do Brasil para a Amazônia, afetada por incêndios em larga escala nas últimas semanas.
Toda essa crise ganhou ainda mais projeção com o céu escuro de São Paulo na última segunda, provocado em parte por queimadas vindas não apenas do norte do país, mas também da Bolívia. A Amazônia vai além das fronteiras brasileiras, porém virou um problema do Brasil por causa da má imagem de Bolsonaro no exterior, em particular na Europa.
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Até a noite de sexta-feira, 23 de agosto, nenhum líder mundial — nem mesmo o ídolo número um dos Bolsonaros, o presidente americano Donald J. Trump — tinha se manifestado a favor da abordagem do governo brasileiro em relação às queimadas que devastam trechos da maior floresta tropical do mundo, dando a impressão que, caso o Planalto não reaja à altura, o Brasil virará um pária internacional.
Bolsonaro deu satisfações em cadeia nacional durante o horário nobre, no qual anunciou autorização de emprego das Forças Armadas na Amazônia. Ao longo do pronunciamento, o temível som de panelas batendo de sacadas de bairros de classe média alta voltou a assombrar a Presidência da República pouco mais de três anos depois do impeachment de Dilma Rousseff.
Internacionalmente, um alívio para o presidente: embora sem apoiar explicitamente a política ambiental do Brasil, Trump prometeu ajuda a Bolsonaro para combater os incêndios — embora eles mesmos sejam frutos da retórica pró-agronegócio, anti-ambientalista e anti-científica do governo, resumidas na contestação de dados sobre desmatamento divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
O presidente brasileiro terá de fazer malabarismos retóricos mais complexos que de costume para explicar por que a ajuda americana presta enquanto a dos europeus viola a soberania nacional. Não há, porém, inocentes nesse debate. Tanto a defesa inflamada da preservação da floresta quanto a postura bolsonarista de supostamente defendê-la a todo curso da cobiça estrangeira — desdenhando, por exemplo, da retirada de recursos para a preservação da floresta anunciada por Alemanha e Noruega — embutem interesses econômicos muito bem definidos.
Todavia, isso não significa que ambientalistas e bolsonaristas sejam lados equivalentes nessa disputa política: preservar a floresta, ainda que beneficie alguns atores de mercado e países em detrimento de outros, acaba por ser a melhor alternativa inclusive para o fortalecimento da economia e soberania brasileiras no longo prazo.
No fundo, o tratamento da questão amazônica por Bolsonaro reflete o alinhamento de seu governo com a nova direita global — que tem em Trump seu principal aliado — e sua ojeriza àquilo que a Europa unida representa — a comunhão, ainda que imperfeita, de povos distintos sob o império da democracia e da lei, amparados por princípios iluministas e, portanto, a racionalidade que se esvai das políticas públicas.
No afã de reinventar a roda numa política cujas diretrizes tiveram início ainda sob o também populista de direita Fernando Collor (1990-1992) e chegou ao governo de esquerda da petista Dilma Rousseff (2011-2016) sob o lema —ainda que distante da realidade do malfado ensaio desenvolvimentista da presidente —"Brasil potência ambiental", Bolsonaro fragiliza ainda mais o Brasil no cenário internacional. Exemplo maior disso é a ameaça de França e Irlanda de não ratificarem o acordo comercial MERCOSUL-UE, ironicamente uma demanda histórica do agronegócio.
Uma não-ratificação e sepultamento definitivo do acordo seria do interesse do presidente francês Emmanuel Macron, como bem notou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Isso não apenas porque Bolsonaro o humilhou ao não receber seu ministro das Relações Exteriores pois "preferiu" cortar o cabelo, mas por aumentar as chances de se reeleger em 2022. Afinal, o acordo prejudicaria agricultores franceses, beneficiários do protecionismo agrícola europeu que seria parcialmente desmantelado com a integração econômica com o bloco sul-americano.
Embora pareça odiar Macron, Bolsonaro é seu gêmeo siamês nessa questão, pois também não sairia perdendo nesse cenário. Afinal, tal como o presidente brasileiro já se manifestou, o acordo com a UE pode atrapalhar as negociações, já em curso, com os EUA para um tratado bilateral de livre-comércio.
O debate sobre a Amazônia, portanto, não se trata exclusivamente da defesa nacional, mas reflete as preferências ideológicas do governo além do meio ambiente. Estivessem preocupados com a soberania sobre a Amazônia ou retomando a abordagem ambiental da ditadura, resumida no slogan de atração de investimentos externos "venham nos poluir", Bolsonaro e seus assessores, que já penduraram a farda mas não deixaram no armário velhas concepções de soberania, teriam submetido a um detalhado escrutínio público o acordo de cessão da base de Alcântara, localizado na Amazônia Legal, aos americanos.
Mas, voltando ao assunto do momento, se a preocupação dos europeus com a Amazônia esconderia interesse pelas riquezas materiais do "pulmão do mundo", a solidariedade americana seria mero ato de altruísmo? A contradição acerca da visão de Bolsonaro sobre o papel da UE e dos EUA na atual crise poderia como que num milagre fazer com que o Planalto pare de bater cabeça e a use para o bem do governo, do país e, sem exageros, do futuro do planeta.
O primeiro passo consistiria em aceitar ajuda de qualquer outro país — um gesto de boa vontade para com a comunidade internacional. Com isso, nosso agronegócio — que ajudou a eleger Bolsonaro e agora teme pela aceitação de seus produtos no mercado internacional haja vista a convocação de boicotes ao Brasi — manteria sua competitividade em escala mundial.
Bolsonaro, porém, não vai seguir esse roteiro. Afinal, interesses não são puramente racionais, passando sempre por um filtro ideológico — para ser mais preciso, um filtro identitário. Sem dúvida, o Brasil tem a ganhar com uma maior aproximação aos EUA depois de anos privilegiando relações Sul-Sul, em particular com a China.
Todavia, tais ganhos não implicam perder outras parcerias, conforme já sugeri em post anterior. Porém, uma vez que tal aproximação é balizada pelas afinidades entre Trump e Bolsonaro e não por interesses mútuos de longo prazo envolvendo Brasil e EUA, alianças com outros países passam a ser vistas por Brasília como contradizendo o interesse nacional.
Alguns argumentariam, num primeiro momento, que Bolsonaro e a ala militar no seu entorno, como o general Villas-Boas — que vê ameaça militar nas ações da França a respeito da crise — , ainda veem o mundo sob o ângulo do tradicional conceito de soberania. Tendo a maior parte da Amazônia em seu território, o Brasil, portanto, tem a última palavra em assuntos relativos à porção da floresta sob sua soberania.
Um exame mais detalhado, porém, sugere que o pensamento estratégico vigente no Planalto passa ao largo da sofisticação intelectual. Bolsonaro esquece-se ou não sabe — dado seu baixo desempenho acadêmico em seus anos de cadete na Academia Militar de Agulhas Negras — que toda soberania é negociada. Um Estado é apenas soberano se reconhecido como tal por outros Estados — principalmente as grandes potências.
Por exemplo, o G7, grupo das economias mais fortes do mundo antes da ascensão dos países emergentes, se reúne neste fim de semana e foi provocado por Macron para discutir a crise amazônica. Os EUA — junto com Reino Unido, Japão e Itália, segundo o governo brasileiro — podem aliviar a barra de Bolsonaro recusando-se, por exemplo, a impor sanções ao Brasil e vetar um eventual comunicado do grupo cobrando-nos ação mais enérgica contra queimadas. A fatura, porém, será alta, via, por exemplo, concessões do Brasil no provável acordo de comércio com Washington e eventualmente num tratado de comércio com Londres pós-Brexit.
Portanto, no longo prazo, a política ambiental bolsonarista mina a soberania nacional ao deixar o Brasil econômica e politicamente vulnerável às grandes potências tradicionais — isto é, EUA e europeus como a França, agora encarnada na UE. Até agora, as novas potências — os parceiros brasileiros dos BRICS que Bolsonaro adora desprezar, incluindo China e Índia, para não citar a Rússia, cujo poder não é tão novo assim, remontando aos tempos áureos da antiga União Soviética — não moveram uma palha para defender a soberania brasileira sobre a questão. Isso porque talvez lhes interesse um Brasil internacionalmente fraco, eventualmente sujeito a sanções.
Muito antes da era das fake news, apareceu nos anos 2000 na internet um suposto livro didático americano que trazia um mapa da América do Sul em que a Amazônia figurava como uma zona internacional. Era um resquício de eventos ocorridos havia dez anos antes pelo menos. Recém-saído da ditadura e enfrentando a crise da dívida externa e, sobretudo, a hiperinflação, nos anos 1980 o Brasil era uma presa fácil a esses discursos, que tinham, porém, um fundo de verdade, não sendo mera paranoia à esquerda e à direita.
Líderes como o presidente francês Francois Mitterrand (1981-1995) — que Macron hoje ecoa indiretamente ao chamar a Amazônia de "nossa casa" — chegaram a defender abertamente a internacionalização da floresta, segundo relata o capítulo 9 do livro "The Fate of the Forest", publicado em 2010 pela editora da Universidade de Chicago.
O Brasil de então limpou sua barra combatendo o desmatamento e organizando a Rio 92, a maior conferência sobre o meio ambiente até então. Bolsonaro, por sua vez, só faz sujar nossa imagem até agora. No afã de fazer-nos soberanos, o presidente só reduz o status do país fora. Trump — em busca de aliados — e outros membros da nova direita ao redor do mundo agradecem.
De volta às manchetes globais como bom-moço, Macron também deve estar feliz. Quem perde são a Amazônia e o mundo, isto é, todos, sejamos brasileiros ou não, obrigados a enfrentar mudanças climáticas profundas e políticos egoístas e egocêntricos como jamais talvez se tenha visto.
* Vinícius Rodrigues Vieira é professor visitante do Departamento de Relações Internacionais da USP.
ERRATA: O general Villas Bôas ocupa hoje o cargo de assessor do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), de titularidade do general Augusto Heleno, e não faz parte do grupo de ministros militares do governo, como dito anteriormente. Pedimos desculpas pelo erro.
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