Espírito reacionário é motor do projeto bolsonarista
*Rafael Burgos
No campo ideológico que permeia o governo Bolsonaro, as últimas semanas foram marcadas por um importante acontecimento político: o rompimento quase definitivo da aliança casual entre o bolsonarismo e o lavajatismo.
- Governo Bolsonaro: ala "técnica" é, também, ideológica
- Ao sugerir evangélico no STF, Bolsonaro reafirma Estado "quase laico"
- Refugiado no cinismo, Bolsonaro governa para indignar opositores
A coalizão que permitiu a Bolsonaro transformar-se em potente fenômeno eleitoral está hoje em processo de ruptura. Com um ministro Moro enfraquecido, surge também um Ministério Público em forte discurso de oposição após o presidente Jair Bolsonaro descumprir uma regra informal, a lista tríplice, como critério de escolha de Augusto Aras como futuro Procurador-Geral da República.
Há, além disso, várias recentes ações do governo que desafiam a independência de órgãos de Estado, como a Polícia Federal.
Considerando a popularidade do ex-juiz Moro e do movimento lavajatista, o bolsonarismo, de natureza reativa, vem radicalizando o seu discurso ao ver no horizonte a potencial perda de apoio com a quebra dessa aliança.
No último domingo (15), o ex-astrólogo e youtuber Olavo de Carvalho publicou vídeo em seu canal no Youtube intitulado "Todo apoio ao Bolsonaro".
Personagem insignificante para o debate brasileiro até 31 de dezembro de 2018, Olavo é hoje considerado o grande ideólogo do governo Bolsonaro, responsável pela nomeação dos titulares de duas das mais importantes pastas do Poder Executivo, o Ministério da Educação e o Itamaraty, comandadas respectivamente por Abraham Weintraub e Ernesto Araújo.
No vídeo em questão, o youtuber prega um movimento de massas em defesa do líder Bolsonaro.
O que tem que fazer agora não é ficar cobrando o Bolsonaro. Vocês têm que se organizar para apoiá-lo. Não é o que ele pode fazer por você, é o que você pode fazer por ele. (…) A coisa mais urgente no Brasil é uma militância bolsonarista organizada. Eu não disse militância conservadora, nem militância liberal. Eu falei militância bolsonarista. A política não é uma luta entre ideias, é uma luta entre pessoas e grupos.
Olavo de Carvalho
É importante dizer que o personagem em questão não apenas nomeia importantes ministros, como é a fonte de inspiração do projeto de poder bolsonarista.
É a longeva pregação de Olavo que confere organicidade e uma aparente consistência ideológica ao bolsonarismo, o qual encontra no ideólogo uma autoridade que legitima a sua natureza reativa.
Segundo Mark Lilla, cientista político, autor de A Mente Naufragada, obra que investiga influentes pensadores reacionários, a visão de mundo reacionária opera como a de um revolucionário com um sinal trocado.
O reacionário é tudo menos um conservador. Ele é uma figura tão radical e moderna quanto o revolucionário, alguém naufragado no presente em rápida mudança e sofrendo de nostalgia por um passado idealizado e por um medo apocalíptico de que a história esteja correndo em direção à catástrofe.
Mark Lilla, "A Mente Naufragada" (Ed. Record, 2018)
É esse senso de emergência histórica, entendido como um constante chamado à guerra, que guia o discurso de Olavo e, pois, o projeto de poder reacionário bolsonarista.
Nesse vídeo de domingo, em resposta à quebra da aliança com o lavajatismo, Olavo fez questão de frisar que o combate à corrupção não é tão necessário quanto o enfrentamento ao fantasma vermelho.
Sob novo escopo, mais radicalizado e segmentado, o bolsonarismo vai, aos poucos, fortalecendo a sua identidade anticomunista e afastando-se da pauta anticorrupção.
Diante de uma oposição cuja pauta democrática confunde-se com a defesa de um passado imerso na lama da corrupção, o bolsonarismo entende ser esta uma briga ganha e que, portanto, pode ser, por ora, deixada de lado, uma vez que à diferença do comunismo, que depende de certa pregação paranóica, o tema da corrupção impõe-se naturalmente ao debate eleitoral.
Iniciado o governo, era grande o debate para descobrir qual seria a verdadeira cara do bolsonarismo no poder, visto que era latente a disputa entre a ala olavista e a ala militar, esta última tida como moderada diante da primeira, a qual flerta abertamente com um projeto autoritário de poder.
Hoje, apesar da divisão persistir, não restam dúvidas sobre a vitória do olavismo neste embate, de modo que importantes ministros de fora desse grupo, como Guedes (Economia) e General Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), estão hoje afinados ao seu tom.
No ensaio Democray Devouring Itself: The Rise of the Incompetent Citizen and the Appeal of Right Wing Populism, publicado em 2018, Shawn Rosenberg, professor de ciência política e psicologia social da Universidade da Califórnia em Irvine, decreta a impossibilidade de sobrevivência das instituições democráticas diante da alternativa posta em jogo pela extrema direita.
O motivo, segundo ele, diz respeito a confiança: acreditar no regime democrático pressupõe uma capacidade de compreender sistemas complexos e contraintuitivos. Sobre a democracia, diz ele:
Ela está pedindo às pessoas que adotem definições de nação e de indivíduo que elas são incapazes de compreender e que internalizem um conjunto de valores que elas são incapazes de aceitar.
Shawn Rosenberg, "Democracy Devouring Itself: The Rise of the Incompetent Citizen and the Appeal of Right Wing Populism" (UC Irvine, 2018)
Na disputa de forças internas do governo, a prevalência da ideologia olavista representa o triunfo de um projeto de poder que enxerga na desconfiança apontada por Rosenberg o seu combustível.
A ideia de um bolsonarismo domado pelas instituições é, em si, incompatível com o espírito reacionário que lhe confere sentido de existência.
*Rafael Burgos é jornalista, autor do TCC "Donald Trump: a redenção pelo regresso".
* * *
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.